Tema 1. O anseio de Deus

No fundo do espírito humano encontramos uma sede de felicidade que se dirige à esperança de um lar, de uma pátria definitiva. Somos terrenos, mas aspiramos ao eterno, desejamos a Deus. Um Deus que podemos conhecer, com certeza, como sendo a luz e origem do universo e como sumo bem, através do mundo e da pessoa humana.

Sumário:


    1. O anseio de Deus: a pessoa humana é capaz de Deus, deseja a felicidade plena e deseja a Deus.

    “O homem foi criado para ser feliz, assim como o pássaro para voar”, escreveu um literato russo do século XIX. Todo mundo busca a felicidade (o próprio bem) e orienta a sua vida do modo que lhe parece mais adequado para alcançá-la. Poder gozar de bens humanos que nos enriquecem e aperfeiçoam, nos torna felizes. Mas, enquanto vivermos, a felicidade estará sempre atravessada por uma sombra. Não só porque nos acostumamos às coisas boas depois de obtê-las (o que acontece com frequência quando recebemos algo que desejávamos); mas, de modo mais radical, porque nenhum bem criado é capaz de preencher o desejo de felicidade do homem e porque os bens criados são passageiros.

    Somos seres humanos, feitos de corpo e espírito em unidade, somos seres pessoais. Essa dimensão espiritual nos torna capazes de ir além das realidades concretas com as quais nos relacionamos: pessoas, instituições, bens materiais, instrumentos que nos ajudam a crescer... O fato de conhecermos os diversos aspectos da realidade não consome nem preenche a nossa capacidade de conhecer, e também não elimina os nossos questionamentos; sempre podemos conhecer novas coisas ou entendê-las com mais profundidade. Algo semelhante ocorre com a nossa capacidade de querer: não existe nenhuma criatura que nos sacie por completo e para sempre; podemos amar mais, podemos amar coisas melhores. De algum modo nos sentimos inclinados a tudo isso: alcançar novos objetivos nos faz felizes, agrada-nos compreender melhor os problemas e as realidades que temos à nossa volta, descobrir novas situações e adquirir experiência. Procuramos realizar tudo isso na nossa vida e ficamos deprimidos quando não o alcançamos. Sentimos desejos de plenitude. Tudo isso é sinal de grandeza, do fato de que em nós existe algo infinito que ultrapassa cada realidade concreta da nossa vida.

    O mundo, no entanto, é passageiro. Nós próprios somos passageiros e tudo o que nos rodeia também é. As pessoas que amamos, as metas que alcançamos, os bens de que usufruímos..., não há nada que possamos reter para sempre. Gostaríamos de amarrá-los, tê-los para sempre conosco porque melhoram a nossa vida, alegram-nos com seus dons e qualidades, nos deleitam. No entanto, no fundo da consciência notamos que são passageiros, que não nos acompanharão sempre e que às vezes prometem uma felicidade que somente podem dar-nos por um tempo. “Tudo traz em si o selo da caducidade, oculto entre promessas. Porque o horror e a vergonha das coisas é serem caducas, e, para cobrirem essa chaga vergonhosa e enganarem os incautos, disfarçam-se com trajes coloridos”[1]. Essa sombra que possui tudo o que é terreno, nos toca profundamente e – se pensarmos bem – nos assusta, nos leva a desejar que não seja assim, que exista uma saída para o nosso desejo de vida e de plenitude. São anseios de salvação, que aí estão, presentes no coração do homem.

    Encontramos então dois tipos diferentes de aspirações humanas que indicam a “fome de transcendência” que o homem sente. Perante as diversas experiências transcendentes do bem, despertam dentro de nós anseios de plenitude (de ser, de verdade, de bondade, de beleza, de amor). E perante as diversas experiências do mal, da perda desses bens, despertam anseios de salvação (sobrevivência, retidão, justiça, paz). Essas experiências de transcendência nos deixam uma nostalgia do eterno. Porque “o homem foi criado para ser feliz como o pássaro para voar”, mas a vivência indica que a felicidade neste mundo não é completa, que a vida nunca é plenamente satisfatória, que vai além das nossas tentativas de alcançá-la, sempre vislumbrada e nunca alcançada. Por isso há no fundo do espírito humano um desassossego, uma insatisfação, uma nostalgia de felicidade que aponta para uma secreta esperança: a esperança de um lar, de uma pátria definitiva, na qual seja realizado o sonho de uma felicidade eterna, de um amor para sempre. Somos terrenos mas ansiamos pelo eterno.

    Este desejo por si só, não explica a religiosidade natural, mas é um “indicador” de Deus. O homem é um ser naturalmente religioso porque a sua experiência do mundo o leva a pensar espontaneamente em um ser que é fundamento de toda a realidade: esse “a quem todos chamam Deus”, como dizia São Tomás ao concluir as famosas cinco vias de acesso a Deus (cfr. Summa Theologiae, I, q. 2, a.3). O conhecimento de Deus é acessível ao senso comum, ou seja, ao pensamento filosófico espontâneo que todo homem pratica em sua experiência de vida pessoal: maravilhar-se diante da beleza e ordem da natureza, surpreender-se pelo dom gratuito da vida, alegrar-se ao perceber o amor dos outros. Essas vivências levam a pensar no “mistério” do qual tudo isso procede. As diversas dimensões da espiritualidade humana, como a capacidade de refletir sobre si mesmo, de progredir cultural e tecnicamente, de avaliar a moralidade das próprias ações, também demonstram que, de modo diferente dos outros seres corpóreos, o homem ultrapassa o cosmo material e apresenta-se como um ser espiritual superior e transcendente.

    O fenômeno religioso não é – como pensava Ludwig Feuerbach – uma projeção do subjetivismo humano e dos seus desejos de felicidade, mas surge de uma consideração espontânea da realidade tal como ela é. Isso explica o fato de que a negação de Deus e a tentativa de excluí-lo da cultura e da vida social e civil, sejam fenômenos relativamente recentes e limitados a algumas áreas do mundo ocidental. As grandes questões religiosas e existenciais permanecem invariáveis no tempo, o que acaba desmentindo a ideia de que a religião seja parte de uma fase “infantil” da história humana, destinada a desaparecer com o progresso do conhecimento.

    A constatação de que o homem é um ser naturalmente religioso, levou a alguns filósofos e teólogos à ideia de que Deus ao criá-lo já o tinha preparado de algum modo para receber o dom da sua vocação última e definitiva: a união com Deus em Jesus Cristo. Tertuliano, por exemplo, ao notar como os pagãos do seu tempo diziam de modo natural “Deus é grande” ou “Deus é bom”, pensou que a alma humana estaria orientada para a fé cristã e no seu livro Apologético escreveu: “Anima naturaliter christiana” (17,6)[2]. São Tomás, considerando o fim último do homem e a abertura ilimitada do seu espírito, afirmou que os seres humanos têm um “desejo natural de ver a Deus” (Contra Gentiles, lib. 3, c. 57, n. 4). A experiência demonstra, no entanto, que não podemos saciar esse desejo com as nossas forças, pois só pode ser realizado se Deus se revelar e sair do seu mistério, se Ele mesmo vier ao encontro do homem e se mostrar como é. Este é o objeto da Revelação.

    O Catecismo da Igreja Católica resumiu de modo sintético algumas dessas ideias no n. 27: “O desejo de Deus está inscrito no coração do homem, já que o homem é criado por Deus e para Deus; e Deus não cessa de atrair o homem a si, e somente em Deus o homem há de encontrar a verdade e a felicidade que não cessa de procurar”.

    2. O conhecimento racional de Deus

    O intelecto humano pode conhecer a existência de Deus através de um caminho que parte do mundo criado e que tem dois itinerários: as criaturas materiais (via cosmológica) e a pessoa humana (via antropológica).

    Estas vias da existência de Deus, não são propriamente “provas” no sentido que a ciência matemática ou natural dá a esse termo, mas argumentos filosóficos convergentes, que – segundo o grau de formação e reflexão de quem os considera cfr. Catecismo, 31) – serão argumentos mais ou menos convincentes. Também não são “provas” no sentido das ciências experimentais (física, biologia, etc.) porque Deus não é objeto do nosso conhecimento empírico: não é possível observá-lo como se contempla um pôr do sol ou uma tempestade de areia para chegar a conclusões.

    As vias cosmológicas partem das criaturas materiais. A formulação mais conhecida deve-se a São Tomás de Aquino: são as célebres “cinco vias” elaboradas por ele. De modo sintético e simplificado, poderíamos resumi-las assim: as duas primeiras propõem que as cadeias de causa e efeito que observamos na natureza não podem se estender ao passado até o infinito; há de existir uma origem, um primeiro motor e uma primeira causa. A terceira via parte da ideia de que as coisas que vemos no mundo podem existir ou não existir e chega à conclusão de que isso não pode ser assim para toda a realidade: deve haver algo ou alguém que necessariamente exista e não possa não existir, pois de outro modo existiria nada. A quarta via considera que todas as realidades que conhecemos possuem boas qualidade, e deduz que deve existir um ser que seja a fonte de todas elas. A última via (quinta) observa a ordem e a finalidade presentes no mundo, as leis que regulam a natureza e conclui que existe uma inteligência ordenadora que explique essas leis e que ao mesmo tempo seja a causa final de tudo (cfr. Summa Theologiae, I, q.2).

    Juntamente com as vias que partem da análise do cosmo, existem outras de tipo antropológico; nelas a reflexão começa a partir da realidade do homem, da pessoa humana. Estas vias têm mais força entendidas de modo concatenado do que consideradas isoladamente uma por uma. Em primeiro lugar, o caráter espiritual do homem marcado por sua capacidade de pensar, sua interioridade e sua liberdade, não parece ter sua causa em nenhuma outra realidade do cosmo. Também não teria sentido o desejo insatisfeito de felicidade que há no homem, se não existisse um Deus que pudesse saciá-lo. Vemos, além disso, na natureza humana, um senso moral de solidariedade e caridade, que leva o homem a abrir-se aos demais e a reconhecer em si mesmo a vocação de transcender o próprio eu e os seus interesses egoístas. Perguntamos por que estamos aqui: por que o homem é capaz de pensar de modo não utilitarista? Por que percebe que algumas coisas estão de acordo com sua dignidade e outras não? Por que sente culpa e vergonha quando age mal e alegria e paz quando se comporta com justiça? Por que é capaz de extasiar-se diante da beleza de um pôr de sol, de um céu estrelado ou de uma obra de arte especial? Nada disto pode ser atribuído à obra cega do cosmos, ao produto impessoal das interações da matéria. Tudo isso não poderia ser sinal de um ser infinitamente bom, belo e justo, que colocou em nós uma centelha do que Ele é e do que deseja para nós? Esta segunda opção é mais lógica e satisfatória. Certamente essa vias poderiam ser questionadas, mas trazem em si uma lógica que é luminosa para aqueles que enxergam a realidade com simplicidade.

    O Catecismo da Igreja Católica resume estas vias deste modo: “com sua abertura à verdade e à beleza, com seu senso do bem moral, com sua liberdade e a voz de sua consciência, com sua aspiração ao infinito e à felicidade, o homem se interroga sobre a existência de Deus. Mediante tudo isso percebe sinais de sua alma espiritual. Como "semente de eternidade que leva dentro de si, irredutível à só matéria" sua alma não pode ter origem senão em Deus” (Catecismo, 33. A citação é de Gaudium et spes, 18).

    As diversas argumentações filosóficas para “provar” a existência de Deus não levam necessariamente à fé n’Ele; apenas asseguram que essa fé é razoável. No fundo, nos dizem muito pouco sobre Deus e com frequência se apoiam em outras convicções que nem sempre estão presentes nas pessoas. Por exemplo, na cultura atual o conhecimento mais científico dos processos da natureza, poderia objetar que ainda que o universo tenha uma certa ordem, beleza e direcionamento em seus fenômenos, também possui uma boa dose de desordem, caos e tragédia: muitos fenômenos parecem ocorrer de modo fortuito (azar, caos) e sem concatenação o que pode ser causa de tragédia cósmica. De modo análogo, se uma pessoa pensa que o ser humano é só um animal um pouco mais desenvolvido que os outros e que seu modo de agir é regulado por compulsões instintivas, não aceitará as vias antropológicas que se referem à moralidade ou à transcendência do espírito, porque identifica a sede da vida espiritual (mente, consciência, alma) com a corporeidade do cérebro e dos processos neurológicos.

    Podemos responder a estas objeções com argumentos que mostram que a desordem e o acaso podem ter um lugar dentro de um direcionamento geral do universo (e portanto dentro de um projeto criador de Deus). Albert Einstein disse que nas leis da natureza “uma mente tão superior é revelada que toda a inteligência posta pelos homens em seus pensamentos é em presença dela apenas um reflexo absolutamente nulo”[3]. Analogamente, podemos demonstrar que a mente humana não pode ser reduzida ao cérebro, pois constatamos a auto transcendência da pessoa e o seu livre arbítrio (ainda que esteja em certa medida condicionado pela natureza). Isto está em concordância com o que diz o Compêndio do Catecismo: “Partindo da criação, ou seja, do mundo, e da pessoa humana, o homem pode, simplesmente com a razão, conhecer com certeza a Deus como origem e fim do universo e como sumo bem, verdade e beleza infinita” (n. 3). Mas, para adquirir essa certeza é preciso entender aspectos complexos da realidade, que geram ampla margem de discussão, o que explica porque as vias racionais de acesso a Deus não sejam – com frequência – persuasivas.

    3. Características atuais das pessoas e da sociedade com relação ao transcendente

    Apesar do fenômeno da globalização, as atitudes em relação a Deus e a visão religiosa da vida diferem consideravelmente em diversas partes do mundo. Em termos gerais, para a maioria das pessoas a referência à transcendência, embora tenha expressões religiosas e culturais muito distintas, continua sendo um aspecto importante da vida.

    Nesse panorama geral, uma exceção é o mundo ocidental, e principalmente a Europa, onde vários fatores históricos e culturais determinaram uma extensa atitude de rejeição ou de indiferença para com Deus e para com a religião que foi historicamente dominante no Ocidente, ou seja, o cristianismo. Pode-se resumir essa mudança com palavras do sociólogo da religião Peter Berglar, com a ideia de que na sociedade ocidental a fé cristã perdeu a sua “estrutura de plausibilidade”: em certas épocas passadas bastava deixar-se levar para ser católico, mas em nossos dias basta deixar-se levar para não sê-lo. Pode dizer-se que o desejo de Deus parece ter desaparecido na sociedade ocidental. “Em amplos setores da sociedade Ele já não é o esperado, o desejado, mas sim uma realidade que deixa indiferentes, face à qual nem sequer se deve fazer o esforço de se pronunciar”[4].

    As causas dessa mudança são muitas. Por um lado, as grandes conquistas científicas e técnicas dos últimos dois séculos, que trouxeram tantos benefícios à humanidade, suscitaram, no entanto, uma mentalidade materialista que considera as ciências experimentais como as únicas formas válidas de conhecimento racional. Difundiu-se uma visão do mundo na qual só é autêntico o que pode ter uma verificação empírica, o que se pode ver e tocar. Essa visão reduz o “horizonte da plausibilidade” já que, além de desvalorizar as formas não científicas de conhecimento (por exemplo, a confiança no que os outros nos dizem), leva a interessar-se somente por buscar os instrumentos que tornam o mundo mais confortável e prazeroso. Esse processo, no entanto, não necessário. Considerar a misteriosa beleza e grandeza do mundo criado, não conduz a idolatrar a ciência, mas ao contrário, conduz a admirar as maravilhas que Deus colocou na sua criação. Hoje, como no passado, muitos cientistas continuam a se abrir à transcendência, ao descobrir a perfeição contida no universo.

    Um segundo aspecto, ligado ao anterior, é a secularização da sociedade, isto é, o processo pelo qual muitas realidades que antes se relacionavam com as noções, crenças e instituições religiosas, agora perderam esse significado e passaram a ser vistas em termos puramente humanos, sociais ou civis. Esse aspecto está ligado ao anterior porque o progresso científico permitiu conhecer as causas de muitos fenômenos naturais (no campo da saúde, dos processos vitais, das ciências humanas) que anteriormente se relacionavam diretamente com a vontade de Deus. Por exemplo, na antiguidade uma peste podia ser entendida como um castigo divino pelos pecados dos homens, mas atualmente se considera como resultado de condições higiênicas, de vida, etc., que podemos identificar e determinar. Esse melhor conhecimento da realidade é, em si mesmo, algo bom e também ajuda a purificar a ideia que temos do modo de agir de Deus, que não é uma mera causa dos fenômenos naturais. Deus está em outro nível e por isso quando as pessoas fazem questionamentos mais profundos é normal que entrem nesse espaço no qual Deus se torna imprescindível.

    Outro aspecto importante do enfraquecimento da orientação para Deus na cultura atual do Ocidente está ligado à atitude individualista que configura profundamente o modo de pensar da coletividade. Essa atitude é um dos frutos do processo de emancipação que caracterizou a cultura desde a época do Iluminismo (século XVIII). Esse processo também tem – como os anteriores – aspectos positivos, pois seria contrário à dignidade humana que, com pretextos religiosos ou de outro tipo, o homem fosse colocado “sob tutela” e se visse obrigado a tomar decisões em nome de doutrinas impostas que não são evidentes. No entanto, difundiu também a ideia de que é melhor não depender de ninguém e não se ligar a ninguém para não ficar amarrado e poder assim, realizar o que se deseja. Quem não ouviu às vezes – formulada de diversos modos – a ideia de que o principal é “ser autêntico”, “viver a própria vida”, e vivê-la como quisermos? Essa atitude leva a tratar os relacionamentos de modo utilitarista, buscando não ter vínculos, para não ficar preso nem ter restrições à espontaneidade pessoal. Só são admitidas as relações que proporcionam satisfação.

    A partir dessa perspectiva, uma relação com Deus seria incômoda, pois a submissão aos seus preceitos não se sentiria como algo que nos libertasse do próprio egoísmo; a religião teria espaço somente na medida em que proporcionasse paz, serenidade e bem estar, sem nos comprometer. Nesse sentido, a atitude individualista dá lugar a formas leves de religiosidade com pouco conteúdo e pouca ligação a instituições, dando primazia ao subjetivismo e à afetividade e mudando facilmente a sua orientação segundo a necessidades pessoais. Uma prova disto é a orientação atual em direção a algumas práticas orientais muito “customizáveis”.

    Poderiam acrescentar-se outros traços para descrever a mentalidade que domina atualmente nas sociedades ocidentais. Características como o culto da novidade e do progresso, o desejo de compartilhar emoções fortes com os demais, o predomínio da tecnologia que marca o modo de trabalhar, relacionar-se ou descansar... têm sem dúvida um impacto na atitude para com a realidade transcendente e para com o Deus cristão. É certo também que há muitos aspectos positivos nesses processos: as sociedades ocidentais conheceram um longo período de paz, de desenvolvimento material, tonaram-se mais participativas e procuraram incluir a todos os seus membros nesses processos benéficos. Em tudo isso há muita influência do cristianismo. No entanto, também é evidente que muitos fogem do tema “Deus” e não raramente demonstram indiferença ou rejeição para com ele.

    Perante uma sociedade com estas características, refratária ao que é transcendente, o cristão só será convincente se evangelizar, em primeiro lugar, com o testemunho da própria vida. Testemunho e palavra: as duas coisas são necessárias, mas o testemunho tem prioridade. No início recordávamos que “o homem foi criado para ser feliz assim como a ave para voar”. A felicidade está ligada ao amor e o cristão sabe pela fé que não há amor mais puro e verdadeiro que o amor de Deus por nós, que se manifestou na Cruz de Cristo e se comunica na Eucaristia. O único modo de mostrar a uma sociedade que virou as costas a Deus que vale a pena comprometer-se com Ele, é manifestando na própria vida cristã a presença desse amor e dessa felicidade.

    “Nem todas as satisfações produzem em nós o mesmo efeito: algumas deixam uma marca positiva, são capazes de pacificar o ânimo, tornam-nos mais ativos e generosos. Outras, ao contrário, depois da luz inicial, parecem desiludir as expectativas que tinham suscitado e às vezes deixam atrás de si amargura, insatisfação ou um sentido de vazio”[5]. A felicidade daqueles que acreditam somente no que se pode ver e tocar, ou daqueles que estão dominados por uma visão utilitarista da vida, ou dos individualistas que não querem se comprometer com nada, é uma felicidade passageira: “dura enquanto durar” e precisa ser continuamente renovada porque acaba. É, com frequência, uma felicidade que não melhora as pessoas. Por outro lado, os que servem de coração a Jesus têm outra vida e uma felicidade diferente: mais profunda, mais duradoura e que produz fruto neles mesmos e nos outros.

    Vale reler o famoso texto da Epístola a Diogneto (V e VI) sobre a vida dos cristãos no mundo:

    Os cristãos, de fato, não se distinguem dos outros homens, nem por sua terra, nem por língua ou costumes (...). Vivendo em cidades gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-se aos costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto, testemunham um modo de vida social admirável e, sem dúvida, paradoxal. Vivem na sua pátria, mas como forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam tudo como estrangeiros. Toda pátria estrangeira é pátria deles, e cada pátria é estrangeira. Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos. Põem a mesa em comum, mas não o leito; estão na carne, mas não vivem segundo a carne; moram na terra, mas têm sua cidadania no céu; obedecem às leis estabelecidas, mas com sua vida ultrapassam as leis; amam a todos e são perseguidos por todos; são desconhecidos e, apesar disso, condenados; são mortos e, desse modo, lhes é dada a vida; são pobres, e enriquecem a muitos; carecem de tudo, e têm abundância de tudo; são desprezados e, no desprezo, tornam-se glorificados; são amaldiçoados e, depois, proclamados justos; são injuriados, e bendizem; são maltratados, e honram; fazem o bem, e são punidos como malfeitores; são condenados, e se alegram como se recebessem a vida. Pelos judeus são combatidos como estrangeiros, pelos gregos são perseguidos, e aqueles que os odeiam não saberiam dizer o motivo do ódio. Em poucas palavras, assim como a alma está no corpo, assim os cristãos estão no mundo”.

    Antonio Ducay


    Bibliografia básica

    – Catecismo da Iglesia Católica, n. 27-49.

    – Francisco, “A Raiz humana da crise ecológica”, Encíclica Laudato si’.

    – Bento XVI, “O Ano da Fé. O desejo de Deus”, Audiência, 7/11/2012.

    – Bento XVI, "O ano da fé. Os caminhos para chegar ao conhecimento de Deus”, Audiência, 14/11/2012.

    Leituras recomendadas

    – J. Burgraff, Teologia Fundamental - Manual de Iniciação, Diel, cap. II.

    – A. López Quintás, Cuatro filósofos en busca de Dios, Rialp, Madrid 1989.


    [1] J. L. Lorda, O sinal da Cruz, Quadrante, São Paulo 2003, pp. 75.

    [2]Todos nós temos uma alma cristã por natureza.

    [3]A. Einstein, Como vejo o mundo, Tradução e edição 2021 por ©David De Angelis.

    [4] Bento XVI, Audiência, 7/11/2012.

    [5] Ibidem.

    Antonio Ducay