Viver para os outros

O Senhor quer – demonstrou-o com o exemplo da Sua vida – que os cristãos pensem naqueles que os rodeiam e sirvam a sociedade. Está aí também o segredo da felicidade cristã.

Durante a Jornada Mundial da Juventude de 2010, o Papa Bento XVI refletiu sobre a herança recebida das gerações passadas e animou os que o ouviam a construir, com a sua vida cristã firme, uma sociedade e um mundo um pouco mais humanos[1].

Cada geração deve pensar no que deixará à sociedade, às pessoas que virão, no que fazer – e como – para que no futuro encontrem um mundo melhor. “A fé ensina-nos que em Cristo Jesus, Verbo Encarnado, conseguimos compreender a grandeza da nossa própria humanidade, o mistério da nossa vida na terra e o sublime destino que nos espera no Céu (cf. Gaudium et spes, n. 24). A fé ensina-nos também que somos criaturas de Deus, feitas à Sua imagem e semelhança, dotadas de uma dignidade inviolável e chamadas à vida eterna”[2]. A mensagem cristã permite reconhecer a verdadeira dignidade do homem e proporciona os meios para agir de acordo com a verdade.

A sociedade necessita do espírito evangelizador da Igreja, que nos transmite, sempre atuais, os ensinamentos de Jesus Cristo; e o Senhor quer – demonstrou-o com o exemplo da Sua vida – que os cristãos pensem naqueles que os rodeiam e sirvam a sociedade. Está aí também o segredo da felicidade cristã: fazer-se portador da mensagem de Jesus.

O apostolado, manifestação da caridade

O apostolado nasce precisamente da consciência da missão de caridade a que Deus nos chama. O cristão é testemunha da caridade de Cristo entre os outros homens e da comunhão. Por isso, o apostolado não pode converter-se numa técnica, nem numa estratégia para levar as almas a Deus; tão pouco consiste num conjunto de deveres, pois a partir do amor, sai naturalmente, e sempre tem de se ter presente que a eficácia é divina, embora Deus conte com a disposição das pessoas.

Caridade e apostolado vão de mãos dadas; mais, pode dizer-se que são inseparáveis, pois a caridade aguça o engenho para descobrir como melhorar o nível do serviço aos outros. A mensagem recebida por S. Josemaria fala também da relação entre caridade e apostolado e indica-nos que ambas – a caridade apostólica, o apostolado vivido por amor – se identificam com a amizade: A caridade exige que se viva(…) a amizade[3]. Em um cristão, em um filho de Deus, amizade e caridade formam uma só coisa: luz divina que dá calor[4]. A virtude da caridade aproxima-nos profundamente do próximo; com a ajuda da graça, o cristão descobre no outro um irmão, um filho de Deus, irmão de Jesus Cristo; encontra o próprio Deus que nos entrega a Sua imagem feita homem para que a respeitemos e lhe demos a honra devida. O apostolado, que tende a identificar-se com a amizade, não é senão venerar – insisto – a imagem de Deus que há em cada homem, procurando que também ele a contemple, para que saiba dirigir-se a Cristo[5].

A caridade verdadeira é distinta da sociabilidade natural e vai muito além dos laços de sangue e de camaradagem entre amigos de diversão ou de jogos; também se distingue da compaixão que podemos sentir pela solidão e miséria alheias. A sua medida é o amor que Cristo expressou no “mandamento novo”, o amor divino, um carinho como o que tive e continuo mantendo vivo, porque nasce do próprio interior da Vida da Trindade. Um amor que não se detém nos defeitos físicos ou de caráter, um desejo de estar com os filhos dos homens que não foi freado, nem pelo pecado, nem pelo repúdio, nem pela Cruz. A virtude da caridade é o próprio Amor que Deus põe no coração do cristão para assumir e elevar sobrenaturalmente os amores humanos, os nossos desejos e aspirações.

Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor[6]. Parafraseando São João, poderíamos acrescentar que quem não ama também não conhece o seu próximo, porque não é capaz de reconhecer a imagem de Deus nos outros. A falta de caridade embota tanto a inteligência e as outras potências que torna a pessoa insensível aos pedidos do Senhor e impede-a de dar o agradecimento devido ao próximo. Mas o que é ainda mais grave, torna impossível que o Senhor reconheça a pessoa na qualidade de Seu filho: é como se impedisse a Deus de tocar a alma de quem se fechou completamente à graça.

A importância de cada pessoa

A caridade adquire o seu pleno sentido quando nos colocamos ao serviço dos outros; quando aceitamos que a vocação cristã consiste em ser um dom para os outros, de modo que muitos encontrem a Cristo.

Foi o exemplo que o próprio Jesus nos deixou e de que nos falam as testemunhas da Sua passagem pela terra: alegra-se com as alegrias dos seus amigos[7], e sofre diante da sua dor[8]. Teve sempre tempo para se deter com os outros: sobrepôs-Se ao cansaço para falar com a samaritana[9]; deteve-Se com a hemorroísa, quando O esperavam na casa de Jairo[10]; e na dor da Cruz, começa um diálogo com o bom ladrão que lhe abre as portas do Céu[11]. Além disso, o Seu carinho foi um carinho concreto: vemo-lo preocupado com o alimento dos que O rodeiam e a pôr os meios para satisfazer essa necessidade material[12]; interessa-Se pelo descanso dos discípulos e leva-os para um lugar afastado para desfrutarem de sua companhia[13]. Os exemplos poderiam multiplicar-se, mas no fundo todos nos indicam a categoria que Deus atribui a cada pessoa.

Nisto se manifesta a amizade: pôr em primeiro lugar os outros e dedicar-lhes tempo, ou seja, relacionamento pessoal. Foi essa a chave que nos deu S. Josemaria para mostrar Cristo e Jesus ensinou isso a nós com a Sua vida: teve sempre tempo para se dedicar a cada um, para se deter com todos. A caridade conquista o seu verdadeiro sentido quando a vida do outro se converte em prioridade da minha vida. As pessoas que se aproximam de um cristão autêntico descobrirão o amor pessoal de Deus, ao sentirem como são tratadas, como são valorizadas, como são ouvidas, como são consideradas suas virtudes, como se lhes fazem participar desta aventura sobrenatural.

Como ajudar as almas nessa direção espiritual que, talvez sem esse nome, se dá no apostolado? Medita: os instrumentos mais fortes e eficazes, se os tratamos mal, ficam amassados, desgastam-se e se inutilizam[14]. Dito de uma forma positiva, trata-se de fazer ver a cada pessoa os talentos que recebeu de Deus e alguns modos de pô-los ao serviço daqueles que o rodeiam; estimula-se a sua iniciativa, como fez Jesus com os apóstolos formando-os um a um, procurando que todos deem o melhor de si; interessamo-nos pela sua situação, pelos seus imperativos familiares ou profissionais, colocando-nos no seu lugar; compartilhamos os projetos, os desafios da sociedade de hoje, a missão da Igreja e da Obra num mundo que clama por sal e luz, ainda que sem o saber.

E tudo isso, temperado com o sal da caridade. A caridade é paciente, a caridade é bondosa; não é invejosa, não é orgulhosa, não é arrogante, não é ambiciosa, não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda rancor, não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade; tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta[15]. A caridade está disposta a procurar o bem de todos, por isso requer um coração grande, generoso, que aprenda a superar os defeitos próprios e os alheios, as impaciências, o mau humor, as respostas desagradáveis. É paciente, com fortaleza de espírito: sabe esperar, não humilha, suporta qualquer coisa por amor. Não murmura nem se alegra com a dor ou com as contrariedades dos outros, não procura sobressair. Tem sempre à mão uma palavra amável de compreensão e de serenidade.

O valor da amizade

São Josemaria deu um exemplo de como ser amigo dos nossos amigos. O amigo, como disseram os clássicos, é como um outro eu. Alguém que nos ajuda a tornar a vida mais agradável, que nos acompanha nos apuros e compartilha as alegrias e penas. É alguém em quem confiamos, porque nos podemos fiar dele. Costumava dizer que necessitamos deapoiar-nos uns nos outros, para percorrer o caminho da vida, converter em realidade os nossos anseios, superar as dificuldades, gozar do produto dos nossos afãs.

A amizade é algo que se comunica, que se nota, que quase se pode tocar: sente-se que estamos em sintonia com o amigo, que há afinidade, que estamos bem. Para um cristão, a amizade é assumida e elevada pela graça; consiste, no fim de contas, em comunicar aos outros a vida de Cristo. A amizade transforma-se assim num verdadeiro presente de Deus, inseparável da caridade.

Cada um deve aprofundar no valor que atribui à amizade, para sair do círculo limitado de pessoas com quem convive. O cristão deve fomentar um sadio espírito de diálogo com todo o tipo de pessoas, evitando que as opiniões próprias o conduzam a discriminações injustas, ou que o seu modo de ser ou de dizer se torne odioso para os que pensam de modo diferente. Para consegui-lo, é importante ouvir as razões do outro, interiorizar os seus argumentos; de outro modo não haveria verdadeiro diálogo, porque notariam que não nos interessa o que dizem: é preciso também saber olhar do seu ponto de vista.

Isto não significa transigir em questões que não nos pertencem, pois são de Deus, ou que – com medo de contristar – se ocultem ou alterem os ensinamentos de Jesus. Uma atitude assim implicaria enganar aqueles que amamos, ou fechar-lhes o caminho de acesso à única verdade que pode satisfazer plenamente os seus corações e aplacar as suas inquietações. Pelo contrário, a caridade de Cristo robustece as próprias opiniões ao mesmo tempo em que tranquiliza o coração e suaviza a maneira de dizer. Desta forma, tornamos mais próxima a mensagem de Jesus, portadora de esperança e salvação: ao dar um conselho, ou ao corrigir uma atitude, o carinho faz com que as nossas palavras não firam, nem pressuponham que se está julgando o interessado; faz, de fato, que sejam compreendidas como o que são: desejo sincero de que os nossos amigos sejam felizes.

“O cristianismo
não é obra de persuasão,
mas de grandeza”
Santo Inácio de Antioquia

Experimenta-se, então, a profundidade daquelas palavras de Santo Inácio de Antioquia: “O cristianismo não é obra de persuasão, mas de grandeza”[16]. Essa grandeza é a caridade de Cristo, pois as pessoas aproximar-se-ão de Deus não tanto pelos nossos argumentos, mas principalmente pelo que somos, com a graça de Deus.

Cada geração de cristãos tem que redimir e santificar o seu próprio tempo: para isso, precisa compreender e compartilhar os anseios dos outros homens, seus iguais, a fim de lhes dar a conhecer, com dom de línguas, como devem corresponder à ação do Espírito Santo, à efusão permanente das riquezas do Coração divino. Compete-nos a nós, cristãos, anunciar nestes dias, a esse mundo a que pertencemos e em que vivemos, a mensagem antiga e nova do Evangelho[17].

J.M. Martín y C. Cavazzoli


[1] Cfr. Bento XVI, Discurso, 17-07-2008; Homilia, 19-7-2008.

[2] Bento XVI, Homilia, 19-07-2008.

[3] Questões atuais do Cristianismo, n. 62.

[4] Forja, n. 565.

[5] Amigos de Deus, n. 226.

[6] 1 Jo 4, 8.

[7] Cf. Lc 10, 21.

[8] Cf. Jo 11, 35.

[9] Cf. Jo 4, 6 ss.

[10] Cf. Mc 5, 30-32.

[11] Cf. Lc 23, 42-43.

[12] Cf. Mt 14, 15-16.

[13] Cf. Mc 6, 31.

[14] Sulco, n. 391.

[15] 1 Co 13, 4-7.

[16] Santo Inácio de Antioquia, Epistola ad Romanos, 3, 3.

[17] É Cristo que passa, n. 132.