Conhecê-l'O e conhecer-te (4): Quando sabemos pôr-nos à escuta

A vida de Moisés ensina-nos que, para cumprirmos a missão a que somos chamados, precisamos de ser transformados pelo Espírito Santo, através da escuta de Deus, em diálogo filial com Ele.


O Senhor pensou em Moisés para uma missão crucial: conduzir o Seu povo numa nova etapa da História da Salvação. Com a sua cooperação, Israel foi libertado da escravidão no Egito e conduzido à terra prometida. Pela sua mediação, o povo judeu recebeu as Tábuas da Lei e os fundamentos do culto a Deus. Como chegou Moisés a ser quem foi? Como alcançou essa sintonia com Deus que, com o tempo, o levou a ser um grande bem para tantas pessoas, nada menos que para todo o seu povo e para todos os que viríamos depois?

Embora Moisés tivesse sido escolhido por Deus desde o nascimento – basta considerar a sua milagrosa sobrevivência na perseguição do Faraó –, é curioso que ele não tenha encontrado o Senhor até terem passado muitos anos. Na sua juventude, não parecia ser mais que um homem comum, certamente preocupado com os da sua raça (cf. Ex 2, 15). Talvez o que melhor explique essa posterior transformação seja a sua capacidade de ouvir o Senhor[1]. Também nós, para chegarmos a ser o que estamos chamados a ser, precisamos de nos transformar através da escuta. É verdade que não é fácil experimentar o que o livro do Êxodo nos conta: «o Senhor falava com Moisés face a face, como se fala com um amigo» (Ex 33, 11). É um processo que geralmente leva anos – a vida inteira – e muitas vezes é preciso recomeçar a aprender a fazer oração, como se estivéssemos no princípio do nosso diálogo com o Senhor.

"Moisés, Moisés!"

Descobrir a necessidade da oração é saber que «Ele nos amou primeiro» (1Jo 4, 19) e, seguindo essa reflexão, que também Ele nos falou primeiro: "Deus criou o homem à Sua imagem, à imagem de Deus o criou. Homem e mulher os criou. E Deus abençoou-os e disse-lhes…» (Gn 1, 27-28)[2]. Deus, que tomou a iniciativa de nos criar por amor e de nos escolher para uma determinada missão, também se nos adianta na vida de oração. No nosso diálogo com o Senhor, é Ele quem diz a primeira palavra.

DEUS ADIANTA-SE A NÓS NA VIDA DE ORAÇÃO DIZENDO ELE A PRIMEIRA PALAVRA

Essa palavra inicial pode já reconhecer-se no desejo de Deus que Ele mesmo semeou no nosso coração e que desperta através de mil experiências variadas. A primeira aparição a Moisés ocorreu em Horeb, também chamado “o monte de Deus”. Ali, «o anjo do Senhor manifestou-se-lhe na forma de uma chama de fogo no meio de um arbusto. Moisés olhou: a sarça ardia mas não se consumia. E disse para si mesmo: “vou aproximar-me e examinar esta visão extraordinária: porque não se consome a sarça”» (Ex 3, 2-3). Não é mera curiosidade sobre um evento prodigioso, mas sim a clara perceção de que algo transcendente, superior a ele, está a acontecer. Na nossa vida, também nos podemos surpreender perante factos que nos abrem uma dimensão mais profunda da realidade. Pode ser uma descoberta íntima, de alguma coisa que antes talvez nos tivesse passado despercebida: intuímos a presença de Deus ao reconhecer alguns dos Seus dons ou vendo como as contradições nos fizeram amadurecer e nos prepararam para enfrentar circunstâncias ou tarefas diferentes. Também pode ser uma descoberta na realidade que nos cerca: na família, nos amigos, na natureza... De uma maneira ou de outra, sentimos a necessidade de rezar, de agradecer, de pedir... E dirigimo-nos a Deus. Esse é o primeiro passo.

«O Senhor viu que Moisés se aproximava para ver e chamou-o da sarça: – Moisés, Moisés! Ele respondeu: – “Aqui estou”» (Ex 3, 4). O diálogo estabelece-se quando o nosso olhar se encontra com o de Deus, que já estava a olhar para nós. E as palavras – se é que são necessárias – fluem quando deixamos que as Suas venham primeiro. Se tentarmos isso sozinhos, não conseguiremos rezar. O melhor é pôr o nosso olhar no Senhor e recordar a Sua promessa consoladora: «Sabei que Eu estou convosco todos os dias até ao fim do mundo» (Mt 28, 20).

Portanto, uma fé confiada em Deus é o ingrediente básico de qualquer oração sincera. Muitas vezes a melhor maneira de começar a fazer oração é pedir ao Senhor que nos ensine. Foi o que fizeram os Apóstolos e é o caminho que S. Josemaria nos anima a seguir: «Se não te consideras preparado, recorre a Jesus, como faziam os Seus discípulos: ensina-nos a fazer oração. Comprovarás como o Espírito Santo ajuda a nossa fraqueza, pois que, não sabendo sequer o que havemos de pedir nas nossas orações, nem como nos devemos exprimir, o mesmo Espírito Santo facilita as nossas súplicas com gemidos inexplicáveis, que não se podem contar porque não existem modos apropriados para descrever a sua profundidade»[3].

«Tira as sandálias dos pés»

Ao finalizar uns dias de retiro espiritual, a Bem-aventurada Guadalupe Ortiz de Landázuri escrevia a S. Josemaria: «Da minha relação íntima com Deus, da oração, etc., já lhe falei de outras vezes: quando faço um pouco da minha parte, o Senhor facilita-me a vida e rendo-me totalmente»[4]. A iniciativa da oração – e a própria oração – são um dom de Deus. Ao mesmo tempo, convém também perguntarmo-nos qual o papel que nos corresponde a nós. O diálogo com o Senhor é uma graça e, por isso mesmo, não é uma coisa meramente passiva, pois para a acolher é necessário de alguma forma querer recebê-la.

UMA ATITUDE DE REVERÊNCIA E DE ADORAÇÃO AJUDA-NOS A RECONHECER COM QUEM ESTAMOS

Que mais poderemos fazer para ter uma vida de oração intensa, para além de nos pormos em modo recetivo? Um bom princípio pode ser apercebermo-nos da Pessoa diante de quem estamos, correspondendo com uma atitude de reverência e de adoração. No diálogo do monte Horeb, «Deus disse: – Não te aproximes daqui. Tira as sandálias dos pés, porque o lugar em que te encontras é sagrado. E acrescentou: – Eu sou o Deus de teus pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob. Moisés escondeu o rosto, pois não se atrevia a olhar para Deus» (Ex 3, 5-6).

Tirar as sandálias e cobrir o rosto foi a reação do maior profeta do povo de Israel no seu primeiro encontro com Deus. Com estes gestos, ele expressava a sua consciência de estar diante do Deus transcendente. Nós podemos ter alguma atitude semelhante quando nos aproximamos de Jesus no sacrário, para O adorar. Durante uma vigília de oração, diante de Jesus sacramentado, Bento XVI exprimia-se com palavras que nos falam de como adorar o Senhor: «Aqui, na Hóstia consagrada, Ele está diante de nós e no meio de nós. Como então, esconde-se misteriosamente num silêncio sagrado e como então, revela precisamente assim o verdadeiro rosto de Deus. Ele fez-se para nós grão de trigo que cai na terra e morre para dar muito fruto até ao fim do mundo (cf. Jo 12, 24). E está presente, como naquela época estava presente em Belém. Convida-nos para aquela peregrinação interior que se chama adoração. Ponhamo-nos agora a caminho para esta peregrinação e peçamos-Lhe que nos guie»[5].

A atitude de adoração pode manifestar-se de formas diferentes na nossa oração. Diante do Santíssimo Sacramento, por exemplo, ajoelhamo-nos, como um sinal da nossa pequenez perante Deus. E quando, por várias circunstâncias, não for possível rezar diante do Santíssimo Sacramento, podemos realizar atos equivalentes, como olhar para o interior da nossa alma para nela descobrir o Senhor, e pôr a alma de joelhos, recitando com calma cada palavra da oração inicial ou de outra oração que nos lembre que estamos na Sua presença.

A nuvem o cobriu

Numa segunda fase do seu diálogo com Deus, Moisés recebeu as tábuas da Lei. A cena é tremenda e, ao mesmo tempo, de grande intimidade: «A glória do Senhor permaneceu sobre o monte Sinai, e a nuvem envolveu-o durante seis dias. No sétimo dia, o Senhor cha­mou Moisés do interior da nuvem. Aos olhos dos filhos de Israel, a majestade do Senhor tinha o aspeto de um fogo devorador sobre o vértice do monte. Moisés entrou pelo meio da nuvem, e subiu o monte, mantendo-se lá quarenta dias e quarenta noites» (Ex 24, 16-18).

Essa nuvem, além de manifestar a glória de Deus e de ser uma figura antecipada da presença do Espírito Santo, permitia um ambiente de intimidade no diálogo entre o profeta e o seu Criador. Isto mostra-nos que para rezar, é necessário exercitar-se nalgumas disposições que facilitam a intimidade com Deus: amor ao silêncio, exterior e interior, constância, e uma disciplina da escuta que permita perceber a Sua voz.

Às vezes custa-nos valorizar o silêncio e, se não ouvimos nada na oração, tendemos a preencher o tempo com palavras, leituras ou mesmo imagens e sons. Mas é provável que assim, mesmo que o façamos com boa intenção, não consigamos ouvir o Senhor. Talvez precisemos de uma conversão ao silêncio, que é mais do que um simples calar-se. S. Josemaria tomou uma nota durante o verão de 1932 – posteriormente registada em Caminho – que mostra de forma gráfica como o diálogo com Deus sempre terá que ir por este caminho: «O silêncio é como que o porteiro da vida interior»[6].

Enquanto os sons externos e as paixões internas nos afastam de nós próprios, o silêncio recolhe-nos e leva-nos a interrogar-nos sobre a nossa própria vida. O ativismo ou a loquacidade na oração não nos aproximam de Deus, nem nos permitem sequer uma atividade profunda. Com a agitação, não deixamos tempo para nos recolhermos, para pensarmos, para vivermos em profundidade, enquanto o silêncio – interior e exterior – nos leva ao encontro com o Senhor, para nos maravilharmos com Ele. De facto, a oração precisa de um silêncio que não seja meramente negativo, vazio, mas sim que esteja cheio de Deus, que nos leve a descobrir a Sua presença. Como a Bem-aventurada Guadalupe escrevia: «Mergulhar nesse silêncio até chegar aonde só Deus está, onde nem mesmo os anjos podem entrar sem a nossa permissão». E ali, «adorar a Deus, louvá-l'O e dizer-Lhe coisas ternas»[7]. Esse é o silêncio que permite escutar Deus.

Em suma, é uma questão de focar a nossa atenção em Deus - inteligência, vontade, afetos -, para nos deixarmos interpelar por Ele. Por isso podemos fazer-nos as perguntas que o Papa Francisco sugeria: «Tens momentos em que te colocas na Sua presença em silêncio, permaneces com Ele sem pressa, e te deixas olhar por Ele? Deixas que o Seu fogo inflame o teu coração? Se não permites que Jesus alimente nele o calor do amor e da ternura, não terás fogo, e como poderás assim inflamar o coração dos outros com o teu testemunho e as tuas palavras?»[8].

A ORAÇÃO PRECISA DE UM SILÊNCIO QUE NÃO SEJA VAZIO, MAS SIM CHEIO DE DEUS

Juntamente com o silêncio, a constância também é necessária, porque orar é exigente. Exige tempo e esforço, como aconteceu a Moisés, que esteve seis dias coberto pela nuvem, e só no sétimo recebeu a palavra do Senhor. Antes de mais, requer-se uma constância exterior para manter um horário mais ou menos fixo para a oração, e uma duração bem estabelecida. Esta foi uma recomendação constante na vida de S. Josemaria: «Meditação. – Tempo fixo e a hora fixa.
Se não, adapta-se à nossa comodidade: e isso é falta de mortificação. E a oração sem mortificação é pouco eficaz»[9]. Essa constância, se estiver orientada pelo amor, será a porta de entrada para um trato de amizade com Deus que estará repleto de diálogo, já que Ele não se impõe: só nos fala se nós queremos. A constância, pela nossa parte, é uma forma de manifestar e de cultivar um desejo ardente de receber as Suas palavras de carinho.

Além da constância exterior, requer-se também uma constância interior, como parte da disciplina da escuta: precisamos de centrar a inteligência que se dispersa, de mobilizar a vontade, que não quer com determinação, e de sustentar os afetos, que às vezes não acompanham. Isto pode cansar, sobretudo se for preciso fazer isso com frequência, porque os estímulos que nos distraem são muitos. Ao mesmo tempo, a escuta disciplinada não se pode confundir com excessivo rigorismo ou com uns exercícios de concentração demasiado metódicos, porque a oração flui de acordo com muitas circunstâncias. Fundamentalmente, ela flui por onde Deus permite – «o vento sopra onde quer» (Jo 3, 8) –, mas também decorre conforme a nossa situação particular. Às vezes, passamos longos momentos a pensar nas pessoas que amamos, pedindo ao Senhor por elas, e isso já pode ser um diálogo de amor.

Algumas sugestões concretas que facilitam uma escuta disciplinada podem ser: fugir da atitude de multitarefas, para se poder concentrar e estar bem presente durante o diálogo, sem estar a pensar noutras coisas; fomentar uma disposição de quem vai aprender, reconhecendo humildemente o nosso nada e o Seu Tudo, talvez servindo-nos de jaculatórias ou breves orações; fazer ao Senhor perguntas abertas, deixando-Lhe espaço para que nos responda quando Ele quiser, ou dizendo-Lhe simplesmente que estamos dispostos a fazer o que nos indicar; seguir o ritmo e o rumo por onde as considerações do Seu amor nos levam, evitando as distrações com outros pensamentos colaterais; aprender a ter a mente aberta, para nos deixarmos surpreender por Ele, e para sonhar os sonhos de Deus, sem pretender controlar demasiado a oração. Assim nos vamos abrindo ao mistério e à lógica do Senhor, e isso permite-nos aceitar com paz o facto de desconhecermos por onde Ele nos conduzirá.

“Mostra-me a Tua glória”

Ao começarmos um tempo de oração, temos a expetativa razoável de que o Senhor fale connosco, como de facto acontece por vezes. Contudo, poderia desanimar-nos o facto de não termos ouvido nada, ou muito pouco, no fim desse encontro. Seja como for, é preciso manter a certeza de que na oração há sempre frutos. No monte Sinai, «Moisés disse: mostrai-me a Vossa glória». O Senhor parece querer realizar esse desejo: «Farei passar diante de ti toda a Minha bondade, e proclamarei diante de ti o nome de Javé. Concedo a minha benevolência a quem Eu quiser, e uso de misericórdia com quem for do meu agrado». No entanto, as Suas palavras assumem de repente um caráter que pode parecer dececionante: «Mas não poderás ver a Minha face, pois o homem não pode contemplar-Me e continuar a viver (...). Quando a Minha glória passar, colocar-te-ei na cavidade do rochedo e cobrir-te-ei com a Minha mão até que Eu tenha passado. Retirarei a mão e poderás então ver-Me por detrás. Quanto à Minha face, ela não pode ser vista» (Ex 33, 18-23). Se Moisés tivesse ficado desiludido por não ter conseguido ver a face de Deus, como era seu desejo, poderia ter abandonado a sua tentativa ou perdido a motivação para futuros encontros. Mas em vez disso, deixou-se conduzir por Deus, e assim chegou a ser aquele «a quem o Senhor falava face a face» (Dt 34, 10).

A chave da oração não é a obtenção de resultados tangíveis, muito menos estarmos ocupados durante um certo tempo. O que procuramos através do diálogo com o Senhor não é um resultado imediato, mas sim conseguir chegar até àquele lugar, àquele estado real - para dizer de alguma maneira - em que a oração se identifica cada vez mais com a própria vida: pensamentos, afetos, objetivos... Trata-se de estar com o Senhor, de nos mantermos na Sua presença ao longo do dia. Em suma, o principal fruto da oração é viver em Deus. Assim, a oração entende-se como uma comunicação da vida: vida recebida e vida vivida, vida acolhida e vida oferecida. Já não importa então que não tenhamos sentimentos fervorosos ou luzes fascinantes. De um modo muito mais simples, o tema da nossa oração será – como S. Josemaria[10] nos dizia – o tema da nossa vida e vice-versa, porque toda a nossa vida se tornará uma autêntica oração, avançando em «caudal amplo, manso e seguro»[11].


[1] Como sugere o Papa Bento XVI, nas suas catequeses sobre a oração: «Lendo o Antigo Testamento, uma figura se destaca entre as outras: a de Moisés, precisamente como homem de oração» (Bento XVI, Audiência Geral, 01/06/2011).

[2] O mesmo acontece no segundo relato da criação do homem: cf. Gn 2, 16. O itálico não é do texto bíblico original.

[3] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 244.

[4] Carta, 12/12/1949, in: Cartas a um santo, II.

[5] Bento XVI, Discurso, 20/08/2005.

[6] S. Josemaria, Caminho, n. 281.

[7] Mercedes Eguíbar Galarza, Guadalupe Ortiz de Landázuri. Trabajo, amistad y buen humor, Palabra, Madrid, 2001, p. 87

[8] Francisco, Gaudete et exsultate, n. 151.

[9] S. Josemaria, Sulco, n. 446.

[10] S. Josemaria, Cristo que passa, n. 174.

[11] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 306.

Jorge Mario Jaramillo