A aventura dos primeiros supranumerários do Opus Dei

Neste episódio, o investigador Luis Cano comenta algumas anotações e cartas escritas por São Josemaria Escrivá sobre a vocação à Obra dos supranumerários, ou seja, pessoas sem compromisso de celibato (casadas ou não) chamadas a viver o espírito do Opus Dei no meio do mundo. Além disso, traça algumas pinceladas sobre a história da vocação dos primeiros supranumerários.

🎙 Link para os restantes artigos da série: “Fragmentos de história, um podcast sobre o Opus Dei e a vida de São Josemaria


Luis Cano é licenciado em Direito e Doutor em Teologia. Atualmente é secretário do Istituto Storico San Josemaría Escrivá e professor de História da Igreja na Pontificia Università della Santa Croce e no Istituto Superiore di Scienze Religiose all’Apollinare.

É autor de livros e artigos sobre História da Igreja e a espiritualidade contemporânea. Entre as suas áreas de investigação destacam-se a história do Opus Dei e as suas edições críticas e anotadas de escritos e pregações de São Josemaria.


Quando comecei a trabalhar na história da vocação dos supranumerários deparei-me com umas anotações de São Josemaria de março de 1930, ou seja, menos de dois anos depois da fundação do Opus Dei, a 2 de outubro de 1928. Nessas anotações, São Josemaria fala dos membros que com o tempo se chamarão supranumerários, ou seja, pessoas da Obra sem compromisso de celibato, casadas ou não.

Nessa anotação, lê-se que ele esperava que o «grande influxo que a Obra terá na sociedade será devido em grande parte»[1] a eles. Notemos que nesses momentos os seguidores de Escrivá se contavam pelos dedos de uma mão e algum dedo sobraria. Mas já nesse momento ele via com clareza que nesse caminho de santidade e evangelização no meio do mundo que trouxe o carisma do Opus Dei, as pessoas casadas, os fiéis correntes que trabalham e sustentam uma família, deixariam o rasto da sua fé no meio em que vivem.

Acrescentava, noutra anotação desse mesmo mês de março de 1930, que estas pessoas «influenciarão na sua profissão respetiva como uma injeção intravenosa administrada na corrente circulatória da sociedade»[2].

Faz sentido a pergunta: a que tipo de influência se referia? Que espécie de injeção é essa? Que imaginava ou entrevia o fundador do Opus Dei acerca deles? Sem dúvida que pensava numa influência de carácter religioso; mas por que via? política? cultural? universitária? económica? artística?

Aquilo que parece claro é que, desde o início, São Josemaria se dirigiu a todo o tipo de pessoas para lhes contagiar esse ideal de seguir a Jesus Cristo como discípulos no meio do mundo, com uma missão evangelizadora clara e preponderante.

Uma evangelização que se contagia, que se propaga por contacto, por proximidade. Onde viver uma pessoa que por sua vez foi “contagiada” entre aspas com esta “loucura” – como ele próprio definia a decisão de se entregar a Deus – esse “contágio” transmite- se às pessoas próximas: aos amigos, parentes, colegas, clientes, etc.

Vemos que foi isso sucedeu depois na vida desses primeiros supranumerários, a quem vamos dedicar estes minutos. A sua família, os seus parentes e amigos, as pessoas que trabalhavam com ele ou com ela, experimentaram a proximidade de Deus graças ao exemplo dessas pessoas. Ou seja, compreenderam que era possível ser médico, professora, cientista, operário, enfermeira, estudante… e ao mesmo tempo viver plenamente para Deus. Ter um encontro pessoal com Jesus Cristo no local onde viviam, trabalhavam, se divertiam, praticavam desporto ou qualquer outra atividade.

Mas essa chamada não estava destinada apenas a criar grupos de cristãos fervorosos que se reúnem para cultivar a sua fé ou melhorar a sua vida de oração, ou para desempenhar um apostolado qualquer. Una nota distintiva, é que estas pessoas querem mudar o mundo onde vivem. Querem iluminá-lo com a luz de Cristo.

Este apostolado com pessoas não chamadas ao celibato, que aliás são maioria no Opus Dei, foi designado por S. Josemaria como obra de São Gabriel. Numa longa carta, escrita provavelmente a meio dos anos 60 do século passado e que foi publicada em 2023 na revista Studia et Documenta, São Josemaria explica detalhadamente a repercussão evangelizadora desta obra de São Gabriel. Diz, por exemplo, que por meio desse apostolado, «enchemos todas as atividades do mundo de um conteúdo sobrenatural que – à medida que se expande – irá contribuindo eficazmente para solucionar os grandes problemas dos homens»[3].

Nessa mesma carta, esclarece que essa projeção evangelizadora e transformadora é missão de todo o tipo de pessoas, de qualquer classe social ou situação em que se encontrem. Pode influir-se cristãmente, tanto a partir dos lugares de direção da sociedade como a partir das mais modestas encruzilhadas da vida. Ou seja, trata-se de um apostolado diversificado que tem todas as especializações que a própria vida proporciona.

Uma característica que destaca nessa vocação é a sua secularidade, que significa amor ao mundo, a um mundo que Deus deixou nas mãos dos cristãos, como diz São Paulo, quando afirma na sua primeira Carta aos Corintos, (1Cor 3, 21-23): «tudo é vosso! o mundo, a vida, a morte, o presente ou o futuro. Tudo é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus». É um amor ao mundo, mas sem mundanismo, como diz o Papa Francisco. Uma presença que não é “contra ninguém”, que não ignora o mal, mas se concentra sobre a difusão do bem. De facto, escreve nesta carta: «A nossa atitude tem de ser, meus filhos, de compreensão, de amor. A nossa atuação não se dirige contra ninguém, não pode nunca ter matizes de sectarismo: esforçamo-nos por afogar o mal em abundância de bem»[4].

Ensina, também, que a pessoa do Opus Dei tem de ter «um amor muito grande a todos os homens, um coração aberto a todas as suas inquietações e problemas, uma compreensão imensa, que não conhece discriminações nem exclusivismos»[5].

Cada pessoa está chamada, diz São Josemaria, a «cristianizar todas as atividades do mundo: pôr Cristo no cume de todas as atividades humanas»[6]. Ou seja, propõe atuar com liberdade, aceitando as consequências dessa liberdade, sendo responsáveis, pessoas que não esperam “indicações” em questões opináveis por parte da Obra nem de nenhuma forma de clericalismo.

No meio do mundo

Quando conhecemos a vida de alguns dos primeiros supranumerários – com outros colegas, dediquei-me nos últimos anos a estudar a vida de alguns deles e estão a sair diversos estudos e biografias tanto de homens como de mulheres – vê-se muito claramente tudo isto.

São Josemaria apresenta perante eles uma grande aventura. Como escrevia muitos anos depois um desses pioneiros, ao recordar esse momento em que escutou a explicação da vocação de supranumerários, «tudo isto soava a renascimento religioso, a glória viva. De repente via-se tudo igual ao anterior, mas com uma cor diferente. Surgia uma visão simultaneamente otimista e exigente, que falava de vocação de santidade aos leigos, quando em todas a parte nos consideravam como uma espécie de católicos de segunda categoria. A vida matrimonial, sobretudo, aparecia com uma riqueza religiosa para mim, e creio que para todos, desconhecida até então»[7].

Outro deles acrescentava «Continuaríamos a ser os mesmos, fazendo as mesmas coisas, mas apontando sempre para uma meta: a santidade pessoal. (...) Ouvimos esta luminosa frase: “vivereis uma bonita história de aventuras e de amor”. E no decorrer dos anos, muitos anos, fomos comprovando que isto foi assim»[8].

Dizia antes que, pelo menos desde 1930, há registo de que as pessoas casadas ou sem vocação ao celibato estavam já muito presentes na luz que Deus deu a São Josemaria em 2 de outubro de 1928. Nesses tempos, pensar que uma pessoa casada e que vivesse no mundo pudesse ter uma “vocação” sobrenatural era algo inconcebível. No entanto, Escrivá defendia-o. Há que dizer que já o Papa Pio XI, na sua encíclica Casti connubii de 1930, afirma claramente que o matrimónio pode ser um caminho de santidade. A Igreja já tinha canonizado uns quantos santos casados, mas eram a exceção, não a regra. Teve de passar algum tempo até se formar esta ideia na Igreja graças também à difusão da espiritualidade matrimonial, por exemplo de alguns movimentos e realidades eclesiais. Depois, chegou inclusive a beatificar marido e mulher juntos. Isto ocorreu pela primeira vez em 2001 e em 2015 teve lugar a primeira canonização de um casal.

Pelo que analisámos nos diferentes documentos de São Josemaria, durante os anos 30, ele dirigiu-se no seu apostolado aos estudantes universitários, mas também a licenciados, especialmente a pessoas relacionadas com a universidade ou também com o mundo científico, e a um grupo variado de pessoas dedicadas a muitos trabalhos diferentes: operários, artistas, mulheres e homens empregados em diferentes ofícios, etc. Aquilo que se nota é que a sua mensagem é praticamente a mesma para todos. Chamados ou não ao celibato, é uma mensagem que põe sempre no centro de tudo o seguimento de Jesus Cristo no meio do mundo, para o colocar no mais alto de todas as atividades humanas, como ele próprio compreendeu graças a uma inspiração que teve em 1931. Não se observam diferenças entre pessoas celibatárias e casadas no modo de viver o espírito, a mensagem, do Opus Dei.

Em 1941, quando o Opus Dei foi já aprovado pelo bispo de Madrid como uma associação de fiéis, uma Pia união, já se dizia que podiam também ser admitidos sócios casados. Mas nesses momentos, São Josemaria não dispunha nem de sacerdotes nem de leigos suficientemente formados que pudessem atender convenientemente essas pessoas, que seguramente viriam em grande número, como efetivamente ocorreu.

Limitou-se a fazer alguma exceção, a aceitar poucas pessoas. Em 1942, concretamente, duas delas, Tomás Alvira e Víctor García Hoz, a quem disse que podiam viver já como pessoas do Opus Dei, mas não consta que os tivesse admitido formalmente nesse momento. Fê-lo mais tarde, em 1947. Depois fez também algo parecido em 1945 com uma mulher que se chamava Aurora Nieto, a quem disse que se podia já considerar da Obra.

Chegamos a 1947, quando a Santa Sé aprovou o Opus Dei e aqui houve mais dificuldades para fazer entrar os supranumerários. Nesse momento, não se compreendia ainda uma entrega plena a Deus sem o dom do celibato. São Josemaria, durante este processo de aprovação com a Santa Sé, empenhou-se em explicá-lo. Finalmente, nessa aprovação conseguiu que se dissesse que os supranumerários pertenciam ao Opus Dei espiritualmente.

São Josemaria tinha muito desejo de poder aceitar estas pessoas e de facto escrevia em dezembro de 1947, uns meses depois desta aprovação, «Esses Supranumerários! Quanta esperança tenho!»[9]. E noutra carta de uns dias depois, escrevia, «não poderemos perder de vista que não se trata da inscrição de uns senhores em determinada associação, mas da vocaçãosobrenatural à vida de perfeição e ao apostolado. É muita graça de Deus ser Supranumerário!»[10]. Há que dizer que “vida de perfeição” era uma expressão tradicional, também referida aos leigos, para indicar alguém que aspirava à santidade. Nesse sentido utiliza-o, por exemplo, entre muitos outros casos, Santa Teresa de Jesus.

Mas como dizia, a ideia de santidade e sobretudo de vocação em sentido estrito, identificava-se com a vida religiosa. Não se podia estar casado e ter uma “vocação” desse tipo dentro da Igreja. Para ter uma vocação, exigia-se a “castidade perfeita”, dizia-se assim. E São Josemaria tinha a certeza que de algum modo se romperia essa aparente contradição.

Cabem!

Chegamos aos primeiros dias de janeiro de 1948. São Josemaria estava a regressar de Milão de uma viagem de carro e como sucedia em toda a geografia italiana, ainda estavam muito recentes as marcas da Segunda Guerra Mundial, pois havia muitas pontes que tinham sido destruídas durante a fuga para norte da retirada das tropas alemãs. Quando tem de cruzar o rio Pó, passa por uma ponte de barcas, perto de Piacenza (não Pavia, como se escreveu em alguns lugares, aproveito para retificar este pequeno erro), exatamente no dia 14 de janeiro de 1948. Nesse momento, São Josemaria estava a atravessar a ponte e diz de repente em voz alta “cabem!”. Supomos que os seus acompanhantes tivessem ficado um pouco surpreendidos, perplexos, e teriam perguntado, quem cabe?

Tratava-se dos supranumerários e das supranumerárias. São Josemaria tinha encontrado durante esse momento, talvez de oração, durante essa viagem, o modo de propor à Santa Sé o que pensava desde há muitos anos. Que a mensagem para as pessoas celibatárias e para as casadas era a mesma: igual carisma, igual dedicação plena a seguir Jesus Cristo e a dar a vida por Ele e pela difusão do Evangelho.

No Opus Dei, isto está muito bem explicado pelo Prelado, numa carta de 28 de outubro de 2020, há uma unidade de vocação. Diz o Prelado: «Poderia parecer que alguns são mais dedicados à missão da Obra do que outros. Não é assim. Todos vivem com igual dedicação, porque ser e fazer o Opus Dei não consiste apenas, nem principalmente, em colaborar em certas tarefas ou nas obras corporativas de apostolado. A vocação e a missão correspondente abrangem toda a nossa vida, e não apenas uma parte dela: toda a vida é ocasião e meio de encontro com Jesus Cristo e de apostolado. (...) Encontro vocacional pleno, abrangente da própria vida, com plenitude de dedicação».

Com aquele “cabem!”, São Josemaria entendeu melhor, com uma luz mais clara, a unidade de vocação no Opus Dei. Os supranumerários cabiam plenamente porque nada, exceto o celibato, os distinguia dos outros. O espírito era o mesmo, a formação era a mesma, o desejo de ser santos era idêntico, a missão era a mesma. Começaram assim a ser admitidos homens e mulheres até ao lançamento deste grande fenómeno religioso e evangelizador que constitui a vocação de supranumerário do Opus Dei. Hoje representa mais ou menos 73 % do total de membros da Obra.

É curioso que em 1948, quase 20 anos depois do dia 2 de outubro de 1928, de alguma maneira São Josemaria, revivendo esses momentos iniciais, vendo a variedade e o potencial que tem essa vocação de supranumerário, esteja de certo modo a voltar a ter essa visão de 2 de outubro de 1928. Escreve-o em várias cartas desses dias. Por exemplo, a 29 de janeiro de 1948, referindo-se a isto do “cabem!”, diz «abre-se, para a Obra, um panorama apostólico imenso, tal como vi em 1928»[11].

Também nessas semanas de 1948 numa conversa com Salvador Canals, que era um dos seus principais colaboradores, diz-lhe «tudo o que vi com clareza em 1928 (...) realiza-se agora plenamente e com insuspeita maturidade canónica com os supranumerários»[12].

Para terminar, quero sublinhar um conceito que encontrei ao estudar a vida de alguns destes pioneiros. Um deles, por exemplo, afirma que desde o seu primeiro conhecimento do Opus Dei, em 1939, se produziu nele uma mudança radical. «Era como se até àquele momento a minha religiosidade (sem dúvida, sincera) tivesse sido “oficial”, e mesmo não sendo superficial, também não era demasiado profunda. Subitamente (e a minha lembrança daquele acontecimento, até o lugar e a hora, continua viva) descobri Cristo. Vi todo o Evangelho com uma nova luz. (...) A minha vida mudou»[13].

Como dizia outro desses pioneiros, pertencer à Obra significava poder «dedicar a minha vida a Deus»[14] sem abandonar o seu casamento nem a sua vida profissional intensa.

Em 1950, apresentaram-se para a aprovação definitiva, os estatutos do Opus Dei, depois de uns anos de rodagem, como sucedia com todas as instituições desses anos. Os supranumerários, desta vez, puderam ser aceites como membros de pleno direito. E em 1982, a Santa Sé ratificou a plena pertença dos supranumerários ao Opus Dei.


[1] cf. São Josemaria, Apontamentos íntimos, n. 39 (março de 1930).

[2] cf. Ibid., n. 47 (março de 1930).

[3] São Josemaria, Carta n. 29, 10a.

[4] Ibid., 25a.

[5] Ibid., 26a.

[6] Ibid., 28a.

[7] Testemunho de Mariano Navarro Rubio, 8 de julho de 1975, em AGP, A.5, 0232-02-05, p. 5.

[8] Testemunho de Antonio Ivars Moreno, 30 de julho de 1975, em AGP, em AGP, 0220-02-07, p. 9-10.

[9] Carta de São Josemaria Escrivá de Balaguer ao Conselho Geral do Opus Dei, 11 de dezembro de 1947, em AGP, A.3.4, 0259-04, carta 471211-04.

[10] Carta de São Josemaria Escrivá de Balaguer ao Conselho Geral do Opus Dei, 18 de dezembro de 1947, em AGP, A.3.4, 0259-04, carta 471218-01.

[11] Carta de São Josemaria Escrivá de Balaguer ao Conselho Geral do Opus Dei, 29 de janeiro de 1948, em AGP, A.3.4, 0260-01, carta 480129-03.

[12] Relatório de Salvador Canals, 9 de fevereiro de 1948, em AGP, série L.1.1, 10-1-15.

[13] Testemunho de Antonio Ivars Moreno, 30 de julho de 1975, em AGP, 0220-02-07, p. 2.

[14] Testemunho de Ángel Santos Ruiz, setembro de 1975, em AGP, A.5, 0245-02-15, p. 9.

Luís Cano