Um de nós: a Encarnação

A diferença entre acreditar ou não em Jesus Cristo não se resume em entender as suas palavras, mas em reconhecer a sua divindade e a sua humanidade, encontrá-lo de verdade reconhecê-lo como nosso caminho, verdade e vida.

As nações alegram-se com seus heróis, e os povos recordam seus sucessos, seja qual for sua natureza: artística, bélica ou de qualquer outro tipo. Mausoléus recordam os primeiros-ministros, reis ou descobridores engenhosos, e ruas, avenidas e praças têm o nome de pintores, músicos, artistas...

Ao lançar um olhar para a história, encontramos figuras luminosas que exaltam o coração humano emergindo das sombras. Homens extraordinários que supuseram, por exemplo, um avanço para a ciência sem possibilidade de retrocesso, como Copérnico ou Newton; escrutinadores da consciência que nos deixaram perenes testemunhos da profundidade do coração humano, como Agostinho de Hipona ou Fiodor Dostoievski; ou pensadores religiosos que mergulharam no relacionamento do ser humano com Deus e com seu ambiente: a moral, o culto, a sociedade. Há também figuras que causaram assombro e que foram perseguidas por seus ensinamentos, como alguns profetas do Antigo Testamento ou mesmo como Sócrates na antiga Atenas. No entanto, a fé cristã tem a audácia de dizer que seu fundador é infinitamente mais do que um simples gênio religioso: como se pode compreender isso?

Por que se fez igual a Deus?

Cristo é infinitamente mais do que um simples gênio religioso

Se quisermos compreender a figura de Jesus Cristo, pelo menos tal como Ele se apresentou, e como os cristãos o entendemos, em nenhum caso Ele pode ser considerado somente como um gênio religioso, preso no passado, que continua, da sua cátedra da história, exortando sobre verdades universais, como o amor ao próximo ou a misericórdia com os fracos. Cristo é algo mais, alguém mais, e para poder entrar nesse mistério pode nos ajudar uma história concreta, que ocorreu há menos de cem anos e cujos protagonistas são duas mulheres: mãe e filha.

Edith Stein foi uma filósofa judia alemã do início do século XX. De extraordinária inteligência, logo colaborará em tarefas universitárias e chegará a trabalhar com um dos filósofos mais destacados do século: Edmund Husserl. Vários acontecimentos de sua vida, admiravelmente narrados por ela mesma[1], levaram-na primeiro à fé cristã e depois à clausura no Carmelo. Morreu no campo de concentração de Auschwitz em agosto de 1942, dando sua vida pelo povo hebreu e por sua fé cristã.

No dia anterior à sua entrada no Carmelo foi se despedir da sua família. Sua mãe era uma mulher extraordinária, judia de raça e religião, que, com uma fortaleza surpreendente, levara adiante a empresa no setor madeireiro e a família após a morte prematura de seu marido. Ela nunca chegou a se tornar cristã, como aconteceria com suas filhas Rosa e Edith. No entanto, mesmo não acreditando em Jesus Cristo, passou a entender a centralidade de seu mistério e sua pretensão sem precedentes.

“12 de outubro foi o último dia que ela passou em sua casa, era o dia de seu aniversário e, ao mesmo tempo, a festa hebraica dos Tabernáculos. Edith acompanha a mãe à sinagoga. Não foi um dia fácil para as duas mulheres. ‘Por que você a conheceu [a fé cristã]? Eu não quero dizer nada contra Ele. Terá sido um bom homem, mas por que se tornou Deus?’ Sua mãe chorou”[2].

Ele terá sido um bom homem, mas... Por que se fez Deus? Blasfêmia ou verdade absoluta: era assim que a figura de Jesus se apresentava à mãe de Edith Stein. Se tivesse sido um bom homem, um sábio antigo, um mestre de verdades universais..., mas ele se fez igual a Deus. Esta afirmação não pode nem deve deixar indiferente nenhuma que se decida a se aproximar, usando apenas a razão, à figura de Cristo. Mas como pode um homem fazer-se igual a Deus?

Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem

Esta afirmação ressalta a continuidade de todo o Novo Testamento. O Evangelho de são Mateus abre suas páginas indicando, através da genealogia, a origem judaica de Jesus, seu nascimento virginal e o cumprimento Nele de todas as promessas: Ele restaurará o nosso relacionamento com Deus. Por Ele poderemos nos dirigir a Deus com confiança. O Evangelho de Lucas também é explícito nesse sentido e reconhece não apenas a origem judaica de Jesus, mas a sua condição de filho de Adão: assim, Jesus se apresenta como o salvador de todos os homens. Essa é a sua pretensão, e essa é a grandeza que temos que comunicar a nossos parentes, colegas de trabalho e vizinhos: Jesus é para todos, e ele tem uma resposta muito pessoal para cada um.

Por sua vez, o Evangelho de Marcos já apresenta em seus primeiros versículos a revolução da irrupção de Jesus Cristo na história. Chegou a boa nova, que não é apenas palavra (doutrina), mas também obras: curas e gestos, enfim, história de Deus com os homens e dos homens com Deus. Finalmente, o Evangelho de João é ainda mais claro nesta revelação da divindade de Jesus em sua humanidade, e dá detalhes da sua origem eterna, bem como de sua encarnação no tempo.

sua ressurreição, que é a prova mais eloquente da sua divindade

Todos os evangelhos terminam da mesma maneira: eles narram a morte injusta de Jesus através de uma dolorosa paixão e cruz, vivida com amor e com o espírito de redenção. Contam-nos, de uma forma muito semelhante, os mínimos detalhes do seu enterro, e apresentam de diferentes maneiras, um fato inédito e jamais visto: a sua ressurreição, que é a prova mais eloquente da sua divindade.

A consciência cristã acredita, e isso é explicitamente declarado tanto nos Evangelhos como na Tradição da Igreja, que o corpo de Jesus não está no túmulo, mas que ressuscitou para uma nova vida[3]. A partir daí é que o autor da Carta aos Hebreus afirma categoricamente que Jesus é ‘o mesmo ontem, hoje e sempre’ (Hb 13,8), porque Ele vive para sempre e espera encontrar-se com cada homem, até o final dos tempos.

Os escritos de São Paulo, junto com outras cartas e o Apocalipse, completam o Novo Testamento. Paulo não conheceu os tempos de Jesus pela Galileia, nem esteve no Calvário ou no Cenáculo depois da sua ressurreição. É por isso que São Paulo é, de certa forma, um modelo no seguimento de Jesus para todos aqueles que, como nós, não caminharam com Cristo através da Galileia e da Judeia.

Quem é Jesus para São Paulo? O que supôs em sua vida? A chave para toda a existência de São Paulo é o encontro com o Cristo vivo. Com ele há um antes – Saulo – e depois – Paulo. Encontrar Jesus é encontrar uma pessoa viva, não um elenco de doutrina, um conjunto de normas morais ou uma ideologia sociopolítica. Paulo não encontrou um santo religioso, mas se encontrou com Aquele por quem ele considera que todo o resto é lixo (cf. Fl 3,8), Aquele que ‘me amou e se entregou por mim’ (Gal 2,20), Aquele que, de maneira cativante, ficou conosco para ser alimento de vida (1 Co 11: 23-27).

A diferença entre acreditar ou não em Jesus Cristo não está apenas em entender cada uma de suas palavras, mas em reconhecer a sua divindade e humanidade, encontrar-se realmente com Ele e reconhecê-lo como nosso caminho, verdade e vida (cfr. Jo 14,6).

O centro da minha vida

“Agora está na moda considerar o Salvador do mundo de uma maneira irreverente e irreal”, dizia o bem-aventurado John Henry Newman, “como uma ideia ou visão; falar dEle de maneira tão superficial e infrutífera, como se soubéssemos apenas o nome Dele; embora a Escritura O tenha colocado diante de nós em Sua verdadeira permanência na terra, com Seus gestos, palavras e ações, para que possamos ter onde fixar os nossos olhos”[4]. O pregador chamava a atenção dos seus ouvintes do início do século XIX sobre algo que é particularmente atual: a consideração de um Cristo distante, morto, até para os próprios cristãos. No melhor dos casos, seria um conjunto de normas perenes.

Portanto, é lógico querer entender como cristãos e ajudar a entender aqueles que não creem – mas querem entender – a centralidade de Jesus para a cabeça e coração de cada pessoa que crê.

“Enquanto não aprendermos a fazer isto – concluía o bem-aventurado Newman – e não deixarmos de lado afirmações vagas sobre o seu amor, a sua disposição para receber os pecadores, o modo como transmite arrependimento e ajuda espiritual, e outras coisas semelhantes; e não virmos as suas obras particulares e reais, colocadas diante de nós nas Escrituras, certamente, não tiramos dos Evangelhos o benefício que eles transmitem. Estamos em perigo, talvez, mesmo em relação à nossa fé; porque se o pensamento de Cristo nada mais é do que uma criação da nossa mente, é de temer que, pouco a pouco, essa fé vá se extinguindo, se perverta ou seja incompleta”[5].

Cristo presente para cada cristão. Cristo vivo. Nesse mesmo sentido, São Josemaria se expressava com palavras vibrantes quando se referia à formação dos jovens: “Coloquemos Cristo em nossos corações e nos corações dos rapazes. Que pena! Frequentam os sacramentos, têm uma conduta limpa, estudam, mas ...a Fé morta. Jesus – não o dizem com a boca, eles dizem-no com a falta de vibração da sua conduta – Jesus viveu há vinte séculos... – Viveu? Iesus Christus heri, et hodie: ipse et in saecula. Jesus Cristo é hoje o mesmo de ontem e o será pelos séculos (Hebr XIII, 8). Jesus Cristo vive com carne como a minha, mas gloriosa; com um coração de carne como o meu. Scio enim quod Redemptor meus vivit, sei que meu Redentor vive (Jó XIX, 25). O meu Redentor, meu Amigo, meu Pai, meu Rei, meu Deus, meu Amor, vive! Preocupa-se comigo. Ama-me mais que a bendita mulher – minha mãe – que me trouxe a este mundo (...)”.[6]

Cristo nasceu em Belém, formou-se em Nazaré, pregou na Galileia e na Judeia e viu a morte em Jerusalém. Cristo ressuscitou dos mortos e vive para sempre. É por isso que os primeiros cristãos mudaram o dia de culto para o domingo, distanciaram-se do templo e dos costumes judaicos que tanto amavam e dedicaram as suas vidas até receber, muitos deles, um fim violento e doloroso. Cristo estava sempre com eles, fazendo da sua existência uma vida fundamentada no amor.

Cristo presente em cada ser humano

Deus está com toda alma que padece

Elie Wiesel, ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1986, ficou confinado – quando ainda era adolescente – em um campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Lá ele viveu uma experiência que o marcou para toda a vida: uma criança foi enforcada no campo. Enquanto lutava entre a vida e a morte, uma voz exclamou: Onde está Deus? Elie ouviu naquele momento dentro de si: “Onde está? Aqui está. Enforcado neste patíbulo!”.

Elie Wiesel não era católico nem cristão. No entanto, ele sabia ouvir dentro de si a voz de Deus. Quando há inocência de vida, é possível entender a solidariedade de Deus com cada um dos seres humanos. Talvez hoje e sempre exista a tendência a culpar Deus dos nossos males – por que você permitiu que isso acontecesse comigo? – mas almas inocentes entenderam que, de algum modo, Deus sofre com cada ser humano. Deus está com toda alma que padece.

Quem crê, tem, além da fé, o conhecimento do Evangelho. Em são Mateus, vemos como Jesus afirma expressamente o que Wiesel e tantas pessoas intuíram. Jesus Cristo se identifica com os sedentos e famintos, com peregrinos e estrangeiros, com quem passa dificuldades (cfr. Mt 25). Afirma que quando vestimos quem está nu, vestimos a Ele: quando alimentamos um faminto, a Ele estamos alimentando, quando damos um só copo de água ao sedento, nos tornamos merecedores da vida eterna, porque servimos a Ele mesmo.

Jesus Cristo permanece na história como verdadeiro Deus, mas também como verdadeiro homem; ele nunca deixa ou deixará a humanidade que assumiu em Maria. Por esta razão, Jesus permanece misteriosamente unido aos seus irmãos e irmãs, especialmente àqueles que sofrem no corpo e na alma.

Desta convicção nasce e emana todo o espírito de caridade que os cristãos estão dispostos a viver alegremente: reconhecer Cristo no outro e praticar a caridade com ele como se fosse o próprio Cristo. Desta certeza vem a preocupação dos fieis pelos mais necessitados, que ocuparão sempre e necessariamente um lugar privilegiado no coração da Igreja.

Maria, Virgem e Mãe

Intimamente unida ao mistério de Cristo – Deus e homem – existe o mistério de Maria – Virgem e Mãe. Talvez hoje seja especialmente difícil entender Maria, porque ela é definida por dois aspectos que atualmente são rejeitados em muitos ambientes, virgindade e maternidade.

A fé dos cristãos confessa que Santa Maria concebeu Jesus virginalmente. Obviamente, esta afirmação de fé se baseia nos textos do Evangelho. São Mateus diz expressamente que a concepção de Jesus foi obra do Espírito Santo no ventre de Maria. São Lucas, também expressamente, afirma este mistério na Anunciação de Gabriel, e São João conclui que a Palavra se tornou carne não por meio da geração humana e normal. Por outro lado, a Igreja tem sido constante em afirmar o nascimento virginal de Jesus.

Finalmente, Maria é também mãe, mãe de Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. A união íntima de Jesus com cada homem, assim como o pedido explícito que ele fez à sua Mãe da Cruz, liga a Virgem Maria a todo fiel cristão como mãe. Antes da sua morte, Jesus confia o apóstolo João à sua mãe e confia sua mãe a João (cf. Jo 19, 26-27). Deste modo, como a Igreja interpretou, Jesus declarava Maria como mãe de todos os homens e confiava aos homens a figura central de Maria para nutrir a fé dos povos. A devoção a Maria não é opcional ou acessória, porque encontrar Jesus é recebê-la como mãe, e encontrar-se com Maria é ser conduzido uma e outra vez para a misericórdia do coração de Jesus, porque “a Jesus sempre se vai e se volta por Maria”[7].

Fulgencio Espa

Tradução: Mônica Diez

Bibliografia

- Catecismo da Igreja Católica, 484-570, 720-726 e 963-975.

- Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, n. 85-94.

- Tema 9. A Encarnação, em Resumo dos ensinamentos Católicos.

- Concílio Vaticano II, Const. Lumen Gentium, nn. 55-66.

- João Paulo II, Enc. Redemptoris Mater, (25-III-1987), n. 8.

- Bento XVI - Joseph Ratzinger, Jesus de Nazaré.

- Newman J. H., Parochial and Plain Sermons / 3.

- Santa Teresa Benedita da Cruz - Edith Stein, Vida de Uma Família Judia.

- Bastero de Elizalde J.L., María, Madre del Redentor, 2ª ed., Eunsa, Pamplona 2004.

- Ocáriz F. – L.F. Mateo Seco – J.A. Riestra, El misterio de Jesucristo, 3ª ed., EUNSA, Pamplona 2004.

- Ponce Cuellar M., Maria, Madre del Redentor e Madre de la Iglesia, 2ª ed., Herder, Barcelona 2001.


[1] Cfr. Santa Teresa Benedita da Cruz – Edith Stein, Vida de Uma Família Judia.

[2] Cf. Biografia de Santa Teresa Benedita da Cruz-Edith Stein, escrita por ocasião de sua canonização em 11 de outubro de 1998, publicada em www.vatican.va.

[3]Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 638 e segs.

[4] J. H. Newman, Parochial and Plain Sermons, Volume 3, Sermon 10. Tears of Christ at the Grave of Lazarus

[5] Ibid., P. 137. Em seguida, ele acrescenta: “Quando contemplamos Cristo como manifestado nos Evangelhos, o Cristo que existe lá, externo à nossa imaginação, e que é realmente um ser vivo, que peregrinou na terra tão verdadeiramente quanto qualquer um de nós, então vamos acreditar Nele com uma convicção, uma confiança e uma integridade, que não podem ser destruídas, como a crença em nossos sentidos. Para um cristão, não é possível meditar no Evangelho sem sentir, acima de qualquer dúvida, que o sujeito deles é Deus”.

[6] São Josemaria, Instrução 9-I-1935, n. 248, citado em Caminho. Edição histórico-crítica, Rialp, Madrid 2002, p. 732.

[7] São Josemaria, Caminho, n. 495.