A mediação materna de Santa Maria

A união de Maria com Cristo é a raiz mais profunda do íntimo vínculo da Virgem Santíssima com a Igreja e de sua mediação materna com a maternidade da Igreja.

O texto a seguir, publicado em forma de Estudo na revista “Romana” nº 5 (1987), foi de a aula inaugural de Mons. Fernando Ocáriz, para abertura do ano letivo de 1987-88 no Centro Acadêmico Romano da Santa Cruz.

Estamos no Ano Mariano, proclamado pelo Romano Pontífice, e é lógico – e em certo sentido, obrigatório: um dever filial muito agradável – dedicar esta breve aula inaugural à reflexão teológica sobre alguns aspectos da Mariologia, respondendo assim a um convite expresso do nosso Grande Chanceler, Mons. Álvaro del Portillo[1]. A reflexão presente, sem ser um comentário ou uma exegese da Encíclica Redemptoris Mater, partirá dela e tomará sua inspiração de fundo.

Como se sabe, João Paulo II considera o mistério daquela que é Mãe de Deus, Mãe da Igreja e Mãe de cada cristão, numa perspectiva eminentemente bíblica. Nessa perspectiva, destaca-se particularmente a interdependência que, no desígnio de Deus, têm a plenitude de graça, a maternidade divina e a maternidade espiritual de Maria, e também a íntima e constitutiva relação entre o mistério da Mãe e o mistério supremo da Santíssima Trindade.

À luz dessa interdependência e desta relação materna de Maria, vamos nos deter na consideração da mediação, que é um dos aspectos do mistério da Mãe aos que João Paulo II dedicou uma atenção particular.

1.Maternidade espiritual e mediação

“Podemos encontrar na expressão ‘feliz daquela que acreditou’ como uma chave que nos abre o acesso à realidade íntima de Maria: daquela que foi saudada pelo Anjo como ‘cheia da graça’. Se como ‘cheia de graça’ ela esteve eternamente presente no mistério de Cristo, agora, mediante a fé, torna-se dele participante em toda a extensão do seu itinerário terreno: ‘avançou na peregrinação da fé’ e, ao mesmo tempo, de maneira discreta, mas direta e eficazmente, tornava presente aos homens o mesmo mistério de Cristo. E ainda continua a fazê-lo. E mediante o mistério de Cristo, também ela está presente entre os homens. Deste modo, através do mistério do Filho, esclarece-se também o mistério da Mãe”[2].

A presença – participação – de Maria no mistério de Cristo, portanto, está intimamente vinculada com a plenitude de graça na que está radicada esta fé, mediante a qual foi partícipe do itinerário terreno de seu Filho em toda sua extensão[3]. A participação de Maria no “itinerário terreno” de Cristo alcança o cume na sua etapa conclusiva: ou seja, no cimo do Gólgota, onde a Mãe foi associada de modo especial, mediante a fé e o amor, ao sacrifício do Filho, por meio do “sacrifício de seu coração de Mãe”[4]. Maria “continua fazendo presente aos homens o mistério de Cristo”, porque “coopera com amor de mãe” para a “regeneração e educação” destes irmãos e irmãs de seu Filho Jesus Cristo[5].

"Ao pé da Cruz Maria se faz mãe novamente; na dor da compaixão começa a nova maternidade"

Como explica João Paulo II, em Maria, “essa maternidade na ordem da graça resultou da sua própria maternidade divina”[6]; mas não só porque concebeu a carne assumida pelo Verbo em unidade de pessoa, mas também porque a maternidade divina foi realizada, por desígnio divino, na “cheia de graça”[7], cujo amor materno “amadureceu definitivamente aos pés da Cruz, mediante a sua participação no amor redentor do Filho”[8]. Em palavras do Card. Ratzinger, podemos dizer que “ao pé da Cruz Maria se faz mãe novamente; na dor da compaixão começa a nova maternidade, faz-se verdadeira a palavra: ‘alarga o espaço de tua tenda (...). Para todos os lados irás te expandir, a tua descendência conquistará nações’ (Is 54, 2-3). A maternidade de Maria dura, assim, até o fim do mundo”[9].

A maternidade espiritual de Maria é um aspecto de sua mediação de graça: num certo sentido o primeiro aspecto em relação a cada um dos fiéis; estes, efetivamente, “nascem de Maria” porque ela é medianeira da primeira graça da regeneração sobrenatural. Segundo as conhecidas palavras de Santo Agostinho, Maria é “verdadeiramente Mãe de todos os cristãos... porque... cooperou com a sua caridade para que nascessem na Igreja os fiéis, membros daquela Cabeça”[10]. E toda sua sucessiva mediação referente às outras graças é uma “mediação materna”[11]. “Efetivamente – escreve o Romano Pontífice –, a mediação de Maria está intimamente ligada à sua maternidade e possui um carácter especificamente maternal, que a distingue da mediação das outras criaturas que, de diferentes modos e sempre subordinados, participam na única mediação de Cristo; também a mediação de Maria permanece subordinada”[12].

Para aprofundar na natureza e conteúdo da mediação materna de Maria, é oportuno refletir sobre seu caráter participado e, depois, sobre sua relação com a plenitude da graça.

2. Mediação participada “em Cristo”

Efetivamente, a Encíclica Redemptoris Mater, retomando e explicando a correspondente doutrina do Concílio Vaticano II, insiste especialmente no caráter “subordinado” e “participado” da mediação de Maria em relação à de Cristo[13].

Está claro que os conceitos de participação e de subordinação não são equivalentes; efetivamente, nem toda subordinação implica uma participação; mas pelo contrário, toda participação implica subordinação do participante em relação à totalidade da que participa (quando se trata de participação transcendental e não simplesmente predicamental, isto é, quando aquilo que é participado existe e permanece em sua plenitude fora dos participantes). Por isso, para aprofundar no nosso conhecimento da mediação de Maria, mais do que analisar diretamente sua “subordinação” à de Cristo, é oportuno considerá-la em seu caráter de “participação”.

Certamente, existe um aspecto muito importante da mediação de Santa Maria que se explica suficientemente, do ponto de vista formal, mediante a noção de subordinação: refiro-me à intercessão da Mãe diante de seu Filho em favor dos homens. A este aspecto da mediação se aplica adequadamente a famosa expressão de São Bernardo, segundo a qual Maria é medianeira ad Mediatorem[14]. Não vamos nos deter neste aspecto, que não apresenta especial dificuldade de compreensão[15].

Lembremos, por outro lado, o fato de que há muitos autores (Lépicier, Hugon, Lavaud, Garrigou-Lagrange, Roschini, Sauras, etc.) que afirmaram que a mediação materna de Maria Santíssima não se limita à intercessão, mas se estende também à própria doação da vida sobrenatural, isto é, à doação da graça aos homens. Esta posição teológica foi ilustrada principalmente mediante o conceito de causalidade eficiente instrumental: Maria, na doação da graça, seria instrumento de Cristo, de modo análogo a como a Humanidade de Jesus é o instrumento da divindade[16].

Muitos outros autores rejeitaram esta interpretação (Lennerz, Merkelbach, Heris, Terrien, Bittremieux, De la Taille, etc.), principalmente porque consideraram que a causalidade instrumental de Maria na doação efetiva da graça obscureceria – diferentemente da causalidade instrumental dos sacramentos – o caráter imediato e único da mediação de Cristo entre Deus e os homens: seria – a de Cristo – uma mediação entre Deus e Maria e, somente por meio d’Ela, entre Deus e os homens. De fato, hoje está muito difundida a opinião segundo a qual a mediação mariana se limitaria somente à intercessão[17].

No entanto, não me parece necessário adotar a chave da causalidade instrumental – que, certamente, apresenta dificuldades – para afirmar que a mediação de Maria não se limita apenas à intercessão, mas de alguma forma se refere também à efetiva doação da graça.

Para aprofundar neste aspecto do mistério da Mãe, convém, como disse antes, ter em conta a noção de participação. Efetivamente, além de utilizar este termo frequentemente para expressar a relação da mediação de Maria com a de Cristo, João Paulo II escreve que a mediação de Maria “é mediação em Cristo[18].

Como se sabe, o ser em Cristo, em sua riqueza e pluriformidade tanto entitativa quanto operativa, expressa, sobre tudo nas Cartas paulinas, a própria essência do cristianismo[19]; e inclui, como seu aspecto mais radical, a participação na Filiação do Verbo eterno; participação que é constitutiva da filiação divina adotiva[20], mediante a qual os homens se convertem em filhos no Filho, segundo a expressão tradicional utilizada tantas vezes por João Paulo II[21].

É importante observar que nosso ser filhos do Pai em Cristo, mediante a participação de sua Filiação divina, não diminui nem multiplica a Filiação do Verbo. Efetivamente, Cristo continua sendo Unigênito do Pai, mesmo que seja Primogênito entre muitos irmãos, porque, com palavras de Scheeben – de quem se cumpre o centenário da morte daqui alguns meses – “nós não somos simplesmente filhos adotivos, mas membros do Filho natural; por isso, entramos também realmente nessa relação pessoal na que está o Filho de Deus com seu Pai. É segundo a verdade, e não apenas segundo a analogia ou semelhança, que nós chamamos de Pai nosso o Pai do Verbo; e efetivamente não é assim por uma simples relação análoga, mas por aquela única e mesma relação pela qual Ele é o Pai de Cristo. É de um modo similar àquele pelo que Ele, que é Pai do Verbo eterno, pela mesma relação, é também Pai do Homem-Deus em sua humanidade (...); somos de certa maneira – conclui Scheeben – um único Filho do Pai com Ele e n”Ele”[22].

Deve-se aplicar a mesma dialética entre o Uno e o múltiplo a todos os demais aspectos do ser em Cristo por participação. Por isso, no que se refere a uma mediação em Cristo por participação na mediação única d’Ele, não há dúvida de que uma mediação participada não diminui nem multiplica a única mediação entre Deus e os homens, própria de Jesus Cristo. Trata-se, portanto, da participação expressada em grego, tanto clássico como neotestamentário, com o termo koinonía: comunhão por participação, ou melhor: participação enquanto comunhão espiritual de muitos com algo ou alguém que permanece único e indiviso[23]. Isto, na realidade, é aplicável não apenas à mediação materna de Maria, mas também a todas as outras mediações subordinadas, participadas, da mediação de Cristo.

Mas afirmar que uma das mediações participadas – a de Maria – é mediação também na doação efetiva da graça, significa afirmar, in radice, que Maria participa de alguma maneira da capitalidade de Cristo, e isto nos leva a considerar a conexão da “mediação materna” com a “plenitude da graça” à que nos referíamos no começo. Antes vamos nos deter, brevemente, na plenitude de graça de Maria considerada em si mesma.

3. O mistério da “cheia de graça”

Maria já é, antes da Encarnação, a kecharitoméne (Lc 1, 28): a gratificada, segundo a versão latina do Codex Palatinus (e) da tradição africana; a gratia plena da Vulgata. Não é possível, nem necessário, determo-nos agora na consideração das interpretações, antigas e recentes, da palavra kecharitoméne[24]. De qualquer modo, ainda que a exegese de Lc 1, 28 não pareça conduzir à ideia de “plenitude” de graça santificante, e sim a afirmar que Maria é chamada pelo Anjo “transformada pela graça” como preparação para a divina maternidade virginal[25], é indubitável que existem fortes motivos, inclusive cristológicos e eclesiológicos, para afirmar em Maria uma peculiar “plenitude de graça”, como ensinou várias vezes o Magistério da Igreja[26].

É tradicional considerar três aspectos da plenitude de graça de Maria: em primeiro lugar, a total imunidade de pecado e a perfeição das virtudes; em segundo, aquilo que São Tomás chama de refluentia ou redundantia da divinização da alma de Maria em sua carne; e, finalmente, como consequência disto, a plenitude de graça implica que Ela seja, em certo sentido, fonte de graça para os homens[27].

É interessante notar que são Tomás considera a “plenitude de graça” não apenas como moralmente conveniente à dignidade a qual a maternidade divina havia sido predestinada, mas também como uma especial “continuidade ontológica” com esta maternidade. Com efeito, ele chega a afirmar que aquele aspecto da plenitude de graça que chama de redundantia da graça na carne de Maria foi uma predisposição específica, certamente não absolutamente necessária, mas querida por Deus, para que Ela concebesse um homem que fosse Filho de Deus[28].

Na realidade, da mesma forma que espírito e matéria constituem uma unidade substancial no homem, também em nós – com palavras de Mons. Josemaria Escrivá – “a divinização repercute (redunda) no homem inteiro, como uma antecipação da ressurreição gloriosa”[29]. Fazemos então imediatamente a seguinte pergunta: qual pode ser a peculiaridade da redundantia da graça na carne, no caso de Maria? Isto é, permanece algum “espaço metafísico” para conceber uma plena redundância da graça na carne, que seja consequência da plenitude de graça e se dirija, como afirma são Tomás, à maternidade divina? Uma plenitude de redundância deste tipo não parece outra coisa a não ser a total santificação ou deificação da carne e sua materialidade própria, ainda mais difícil de entender para nós do que a deificação do espírito, mas não impossível. A deificação da carne é, com efeito, o estado escatológico definitivo da matéria humana, que já se realizou em Cristo e em sua Mãe na Glória[30].

Por isso, na perspectiva de são Tomás, talvez se possa pensar que a plenitude de graça comparta uma certa “deificação escatológica antecipada” da carne de Maria, análoga à do Cristo pré-pascoal, cuja carne, segundo são Tomás, era uma carne deificada não apenas no sentido de que pertencia a uma Pessoa divina, mas enquanto em si mesma participava dos dons da divindade no modo mais abundante, ou seja, em plenitude[31].

De qualquer forma, a especial santificação de Maria, ainda que tivesse tido uma “antecipada plenitude escatológica”, permaneceu na terra em um estado de kenósis, análogo ao da Humanidade de seu Filho. Com efeito, se “Deus quis exaltar sua Mãe – são também palavras do Fundador do Opus Dei –, por outro, não há dúvida de que, durante a sua vida terrena, Maria não foi poupada nem à experiência da dor, nem ao cansaço do trabalho, nem ao claro-escuro da fé”[32]. Um claro-escuro que, especialmente ao pé da Cruz do Filho, podemos considerar – com João Paulo II – como “a mais profunda “kénose” da fé na história da humanidade”[33]. Uma kénose da fé que se manifesta especialmente – com palavras de Mons. Del Portillo –, no fato de que, “quando parece que a missão de Cristo se conclui com o fracasso mais absoluto, e os discípulos abandonam o Mestre, a Virgem caminha com passo decidido na peregrinação da fé e crê, contra toda esperança, que se realizará tudo o que Deus disse sobre seu Filho”[34].

4. Plenitude de graça e mediação materna

Retomemos agora o discurso da mediação materna de Maria na efetiva doação da graça, à luz da plenitude de graça, já verdadeiramente consumada na glória: com a Assunção, com efeito, Maria foi santificada “inteiramente e totalmente no cumprimento escatológico”[35]. Antes de tudo, é oportuno lembrar que a graça sobrenatural, que os homens recebem de Cristo com a mediação de Maria, não é um “objeto” que possa passar de mão em mão: a graça é um modo de ser sobrenatural, produzido por Deus no mais íntimo do espírito criado, que diviniza ou deifica a pessoa e é inseparável das missões invisíveis do Filho e do Espírito Santo, mediante as quais o espírito finito, como diz são Tomás, “fit particeps divini Verbi et procedentis Amoris[36].

Como já se sabe, entre essas duas missões, que são inseparáveis, existe uma ordem inversa à das processões eternas. Isto é, a finalidade da ação divina ad extra – ação comum às três Pessoas divinas – é “a introdução” da criatura na vida intratrinitária que as missões comportam: uma “introdução” que “começa” (não no sentido temporal) por meio da união, por participação, com a Pessoa do Espírito Santo; união que “plasma” no espírito finito a participação (semelhança e união) ao Filho, pela qual no Filho se é filho do Pai[37]. Isto é, como escreve João Paulo II, “Ele mesmo, como Amor, é o eterno Dom incriado. N’Ele está a fonte e o início de toda a boa dádiva para as criaturas”[38].

À luz destas reflexões, surge a pergunta: como é possível uma mediação humana – a de Maria – na doação da vida sobrenatural, não apenas por intercessão, mas também por efetiva doação ou “distribuição” da graça, se esta “começa” sempre com a missão do Espírito Santo? Uma vez mais, o mistério da Mãe se ilumina mediante o mistério do Filho. É incontestável que Jesus Cristo é, em sua Humanidade, mediador da vida sobrenatural para os homens, não apenas por via de mérito e intercessão, mas também por via de eficiência, enquanto que sua Humanidade é “instrumento da divindade”: o órganon tes theiótetos, segundo a famosa expressão de são João Damasceno[39]. Por isso, Cristo pode e deve ser chamado de fonte ou princípio da graça[40]. O que significa, entre outras coisas, que Deus quis que, na atual economia, o Espírito Santo seja “enviado” aos homens pelo Pai e pelo Filho através da Humanidade do Filho, plena e definitivamente glorificada e elevada ad dexteram Patris[41], com a qual Santa Maria, depois da Assunção, está unida em uma koinonía (comunhão-participação) da máxima intimidade e intensidade compatível com a distinção pessoal.

Deveríamos dizer que os homens recebem a graça de Deus através de Cristo e de Maria porque, num sentido mais real e profundo que o das palavras de Lucas referidas aos primeiros cristãos, Maria é 'cor unum et anima una' com Cristo.

Portanto, não parece infundado atribuir a expressões tradicionais como aquela de santo André de Creta, segundo a qual Maria é “a Mãe da que provem sobre todos o Espírito”[42], um significado mais profundo do que o de uma simples “apropriação”. E é propriamente a noção de participação – koinonía – a que permite afirmar a participação de Maria na capitalidade de Cristo e, por isso, sua mediação na efetiva doação da graça, sem que isso comporte em absoluto uma duplicidade de fontes ou de cabeças, que sem dúvida haveria que excluir, tanto por razões dogmáticas quanto pela dialética da participação metafísica de estrutura transcendental.

Nesta perspectiva, as afirmações que apresentam a Virgem como “pescoço” ou “aqueduto”, através do qual nos chega a graça da Cabeça ou da Fonte, manifestam-se muito insuficientes, ainda que conservem certo valor metafórico. Na verdade, deveríamos dizer que os homens recebem a graça de Deus através de Cristo e de Maria porque, num sentido muito mais real e profundo – e, por isso, muito mais misterioso – que o das palavras de Lucas referidas aos primeiros cristãos (cfr. At 4, 32), Maria é cor unum et anima una com Cristo. Por isso, como dizia Mons. Escrivá, o cristão encontra em Maria “todo o amor de Cristo” e, em Cristo, vê-se “metido nessa vida inefável de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo”[43].

5. Mediação materna e “recapitulação em Cristo”

Depois da Assunção, a plenitude de graça de Maria certamente alcançou o estado escatológico; estado que, referido a toda a criação, é descrito por são Paulo como resultado da “recapitulação” (anakefalaiosis) de todas as coisas em Cristo (cfr. Ef 1, 10). Esta realidade está rodeada de uma luz inacessível para nós: com efeito, “o que Deus preparou para os que o amam é algo que os olhos jamais viram, nem os ouvidos ouviram, nem coração algum jamais pressentiu” (1 Cor 2, 9).

Não é o momento de nos determos agora na exegese literal ou na interpretação teológica da “recapitulação” escatológica de tudo em Cristo[44]. No entanto, não resta dúvidas de que esse é o verdadeiro e sobrenatural sentido – estranho a qualquer monismo panteísta – daquele retorno final do múltiplo ao Uno, que não poucas filosofias vislumbraram de formas necessariamente inadequadas e, em vários aspectos, equivocadas. Uma unidade com Deus em Cristo que, conservando a insuprimível distinção entre criatura e Criador, e aquela entre as diversas criaturas, tem como paradigma – no caso da pessoa humana – a própria unidade da Trindade divina. Efetivamente, o Senhor já se referindo à vida terrena dos apóstolos, vida na qual a graça é início da glória, expressou-se da seguinte maneira: “como tu, Pai, estás em mim, e eu em ti. Que eles estejam em nós (...) eu neles, e tu em mim, para que sejam perfeitamente unidos” (Jo 17, 21.23).

Este mistério de unidade – de comunhão – com Deus em Cristo é o mistério da Igreja, Corpo de Cristo (cfr. Col 1, 18) e – segundo as famosas palavras de são Cipriano – “de unitate Patris et Filii et Spiritus Sancti plebs adunata”[45]. Uma Igreja que, em seu estado escatológico, será “a plenitude (pléroma) daquele (Cristo) que se plenifica em todas as coisas” (Ef 1, 23), porque Cristo glorioso preencherá (híma plerósei) todas as coisas (cfr. Ef 4, 10), e estas participarão “nele da sua plenitude (en autó pepleroménoi)” (Col 2, 10).

Nos santos, a realidade da glória escatológica será o cumprimento final, no espírito e na carne, do ser em Cristo específico da vida sobrenatural. Esse cumprimento já se realizou em Maria no grau correspondente à sua plenitude de graça, que inclui em si a plenitude da união (koinonía) com Cristo, em todos os níveis do ser e do operar. Esta plenitude de união escatológica, exclusiva da cheia de graça, é a raiz da distinção entre a mediação materna e a mediação dos santos na glória e dos justos na Igreja terrena, e ao mesmo tempo a raiz da distinção entre a participação de Maria na capitalidade de Cristo e aquela mística relação de comunhão espiritual entre todos que é a Comunhão dos santos.

Pela excepcional união da Mãe com o Filho, culminada em sua glorificação definitiva depois da Assunção, “Maria – escreve João Paulo II – está como que envolvida por toda a realidade da comunhão dos santos; e a sua própria união com o Filho na glória está toda propendente para a plenitude definitiva do Reino, quando a Deus for tudo em todos”[46].

Como consequência, a união de Maria com Cristo é a raiz mais profunda do íntimo vínculo da Virgem Santíssima com a Igreja e de sua mediação materna com a maternidade da Igreja. Não podemos nos deter aqui sobre este importante aspecto do mistério da Mãe[47], mas, de tudo que se lembrou emerge claramente a superação da contraposição entre a chamada perspectiva “cristocêntrica” e “eclesiotípica” na consideração teológica da cooperação de Maria com a salvação dos homens; superação esta que já está presente na orientação mariológica do capítulo VIII da Constituição dogmática Lumen Gentium[48].

Conclusão

Claramente poderíamos considerar outros aspectos do mistério da mediação materna, e aprofundar ainda mais nas reflexões expostas. De qualquer maneira, gostaria de terminar destacando que diante do mistério da Mãe de Deus, como diante do mistério do próprio Deus, sempre chega um momento em que o comportamento teologicamente mais razoável é, segundo as conhecidas palavras do Pseudo-Dionísio, aquele de uma veneração silenciosa: “indicibilia (Deitatis) casto silentio venerantes[49], sem pretender limitar o mistério àquilo que está ao alcance da nossa compreensão. Um “casto silêncio”, no que ainda ressoa o eco sempre presente da saudação angélica à que, cheia de graça, é Mãe de Deus e Mãe nossa.

Pontifícia Universidade da Santa Cruz

Estudo de D. Fernando Ocáriz, publicado em “Romana” nº 5 (1987)

(Reflexão teológica sobre a Encíclica Redemptoris Mater)[50]


[1] Cfr. ÁLVARO DEL PORTILLO, Carta pastoral, 31-V-1987, n. 25: “Romana” 4 (1987/1) 77.

[2] JOÃO PAULO II, enc. Redemptoris Mater, 25-III-1987, n. 19/b

[3] Cfr. Ibid., n. 12/c

[4] JOÃO PAULO II, enc. Dives in misericordia, 30-XI-1980, n 9/b. Cfr. enc. Dominum et vivificantem, 18-V-1986, n. 16/f; enc. Redemptoris Mater, nn. 19, 23, 24

[5] Cfr. JOÃO PAULO II, enc. Redemptoris Mater, n. 6/b.

[6]Ibíd., n. 22/b.

[7] Cfr. Ibíd., n. 39/c-d.

[8]Ibid., n. 23/c.

[9] RATZINGER, Homilia no Seminário Internacional da Prelazia do Opus Dei, 14-IV-1987, em “Romana” 4 (1987/1) 116-117.

[10] SANTO AGOSTINHO,De sancta Virginitate, 6: PL 40, 399.

[11] Cfr. CONCÍLIO VATICANO II, Const. dogm. Lumen Gentium, n. 62.

[12] JOÃO PAULO II, enc. Redemptoris Mater, n. 38/c.

[13] Cfr. Concílio Vaticano II, Const. dogm. Lumen Gentium, n. 62; JOÃO PAULO II, enc. Redemptoris Mater, nn. 38/b-c, 40/a.

[14] SÃO BERNARDO, In Dominica infra oct. Assumptionis Sermo, 2: cit. por JOÃO PAULO II, enc. Redemptoris Mater, nota (96).

[15] Sobre a mediação como intercessão materna, cfr. especialmente JOÃO PAULO II, enc. Redemptoris Mater, nn. 21/c, 40.

[16] Cfr., por exemplo, G.M. ROSCHINI, La Madre de Dios según la fe y la teología, Ed. Apostolado de la Prensa, Madrid 1962, vol. I, pp. 647-650.

[17] Cfr. por exemplo, J.—H. NICOLAS, Synthèse dogmatique. De la Trinité a la Trinité, Ed. Universitaires, Fribourg — Beauchese, Paris 1985, pp. 553-555.

[18] JOÃO PAULO II, enc. Redemptoris Mater, n. 38/a.

[19] Cfr., por exemplo, M. MEINERTZ, Teología del Nuevo Testamento, Ed. Fax, Madrid, 2ª ed. 1966, p. 414; A. WIKENHAUSER, Die Christusmystik des Apostels Paulus, 2ª ed., Freiburg 1956

[20] “Deus autem ab æterno prædestinavit quos debet adducere in gloriam. Et isti sunt omnes illi qui sunt participes filiationis Filii eius” (SÃO TOMÁS DE AQUINO, In Epist. ad Hebræos, c. Il, lec. 3); cfr. também In Epist ad Romanos, c. I, lec 3.

[21] Cfr., por exemplo, JOÃO PAULO II, enc. Redemptoris Mater, n. 8/d; enc.Redemptor hominis, 4-III-1979, n.18/b-c.

[22] M.J. SCHEEBEN, I misteri del cristianesimo, Morcelliana, Brescia, 3ª ed. 1960, p. 378. Sobre este tema, cfr.: F. OCÁRIZ, Hijos de Dios en Cristo. Introducción a una teología de la participación sobrenatural, Eunsa, Pamplona 1972; IDEM, La Santísima Trinidad y el misterio de nuestra deificación, em “Scripta Theologica” 6 (1974) pp. 363-390; IDEM, La elevación sobrenatural como re-creación en Cristo, em “Atti dell”VIII Congresso Tomistico Internazionale”, Lib. Edit. Vaticana 1981, vol. IV, pp. 281-292; IDEM, Partecipazione dell”essere e soprannaturale, em AA.VV. “Essere e libertà. Studi in onore di Cornelio Fabro”, Università di Perugia, 1984, pp. 141— 153. IDEM, Il Mistero della grazia in Scheeben: VV.AA., “M.J. Scheeben, teologo cattolico d’ispirazione tomista”, Libreria Editrice Vaticana 1988, pp. 227-235.

[23] Cfr., por exemplo, S.MUÑOZ IGLESIAS, Concepto bíblico de Koinonía, na “XIII Semana Bíblica Española (1952)” C.S.I.C., Madrid 1953, p. 223.

[24] Sobre as diferentes interpretações que a patrística oferece, cfr. as referências indicadas por João Paulo II na nota (21) da encíclica Redemptoris Mater. Para um estudo filológico e teológico, cfr. os recentes e importantes estudos de I. DE LA POTTERIE, Kecharitoméne en Lc 1,28. Étude philologique: “Biblica” 68 (1987) 357-382, e Kecharitoméne en Lc 1,28. Étude exégétique et théologique: “Biblica” 68 (1987) 480-508.

[25] Cfr. I. DE LA POTTERIE, art. cit, especialmente, pp. 382, 506-507.

[26] Cfr., por exemplo, PÍO IX, Ep. apost. Ineffabilis Deus, 8-XII-1854: DS 2800-2801; LEÓN XIII, enc. Magnæ Dei Matris, 8-IX-1892: AL 12, p. 224; PÍO XI, enc. Lux veritatis, 25-XII-1931: AAS 23 (1931) p. 521; CONCILIO VATICANO II, Const. dogm. Lumen gentium, n. 53; JUAN PABLO II, enc. Redemptoris Mater, nn. 8-11.

[27] Cfr. SÃO TOMÁS DE AQUINO, Expositio salutationis angelicæ; Summa Theologiæ, III q 27, a. 5 ad 1. Sobre este tema cfr. C. FABRO, La partecipazione di Maria alla grazia di Cristo secondo San Tommaso: “Ephemerides Mariologicæ” 24 (1974) pp. 389-406.

[28] Cfr. SÃO TOMÁS DE AQUINO, Expositio salutationis angelicæ; In Evang. Ioan., c. I, lec. X.

[29] JOSEMARIA ESCRIVÁ, É Cristo que passa, n. 103.

[30] Sobre a espiritualização e deificação do corpo no estado escatológico, cfr. JOÃO PAULO II, Discurso de 9-XII-1981: “Insegnamenti di Juan Pablo II” IV-2 (1981) pp. 880-883. Cfr. também F. OCÁRIZ, La Resurrección de Jesucristo: “Cristo, Hijo de Dios y Redentor del hombre. Actas del III Simposio Internacional de Teología de la Universidad de Navarra”, Eunsa, Pamplona 1982, pp. 756-761.

[31] Cfr. SÃO TOMÁS DE AQUINO, In III Sent., d. 5, q. I, a. 2 ad 6.

[32] JOSEMARÍA ESCRIVÁ, É Cristo que passa, n. 172.

[33] JOÃO PAULO II, enc. Redemptoris Mater, n. 18/c. São Basílio Magno chega a afirmar que a fé de Maria sofreu o assalto da dúvida no Calvário (cfr. SÃO BASÍLIO, Epístola 260, 9: PG 32, 965): esta opinião, ainda que não seja muito comum, não deve ser necessariamente excluída, porque —pela própria natureza da fé— a tentação da dúvida é possível sem a menor culpa e é completamente compatível com os mais altos graus de fé.

[34] ÁLVARO DEL PORTILLO, Carta pastoral, 31-V-1987, n. 19.

[35] J. RATZINGER, La Figlia di Sion, Jaca Book, Milano 1979, p. 71.

[36] SÃO TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiæ, I, q.. 38, a. I c. Cfr. também M.J. SCHEEBEN, I misteri del cristianesimo, cit, p. 179: “La missione di una persona divina consiste nel fatto che la creatura partecipa di essa (presso i Padri greci, metoché, koinonía)”.

[37] Cfr. M.J. SCHEEBEN, I misteri del cristianismo, cit., p. 182; E. HUGON, Le Mystère de la Très Sainte Trinité, Téqui, Paris 1921, pp. 245-246; J.—H. NICOLAS, Les profondeurs de la grâce, Beauchesne, Paris 1968, p. 551.

[38] JOÃO PAULO II, enc. Dominum et vivificantem, n. 34. Sobre a graça da adoção filial e da missão do Espírito Santo, cfr. também o n. 52 da mesma encíclica.

[39] SÃO JOÃO DAMASCENO, De fide orthodoxa, III c. 19: PG 94, 1080.

[40] “Christus autem est principium gratiæ, secundum divinitatem quidem auctoritative, secundum humanitatem vero instrumentaliter” (SÃO TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiæ III, q. 27, a. 5).

[41] Cfr. F. OCÁRIZ, La Resurrección de Jesucristo, cit., pp. 766-770.

[42] SANTO ANDRÉ DE CRETA, Omelie mariane, Città Nuova, Roma 1987, homilia II, p. 57.

[43]JOSEMARIA ESCRIVÁ, Amigos de Deus, n. 293.

[44]Sobre o significado de anakefalaiosis, na história da exegese de Ef 1, 10, cfr. J. M. CASCIARO, Estudios sobre Cristología del Nuevo Testamento, Eunsa, Pamplona 1982, pp. 308-324.

[45] SÃO CIPRIANO, De oratione Dominica, 23: PL 4, 553. Cfr. CONCÍLIO VATICANO II, Const. dogm. Lumen gentium, nn. 2-4.

[46] JOÃO PAULO II, enc. Redemptoris Mater, n. 41/d.

[47] Cfr. JOÃO PAULO II, enc. Redemptoris Mater, nn. 42-47. Cfr. também H. DE LUBAC, Méditation sur l”Église, Aubier, Paris 1953, cap. IX: “L”Église et la Vierge Marie”. Para uma visão de conjunto das relações entre Maria e a Igreja na patrística, cfr. Y. CONGAR, Marie et l”Église dans la pensée patristique: “Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques” 38 (1954) 3-38.

[48] Cfr. E. LLAMAS, La cooperación de Maria a la salvación. Nueva perspectiva después del Vaticano II: “Scripta de Maria” 2 (1979) 423-447.

[49]PSEUDO-DIONISIO, De divinis nominibus, c. I, n. 11, segundo a tradução latina utilizada por São Tomás de Aquino, “In librum Beati Dionysii De Divinis Nominibus expositio”, Marietti, Torino-Roma 1950, p. 13 (§ 3, 11), diferente da tradução que a Patrologia de Migne oferece (cfr. PG 3, 590).

[50] Texto da aula inaugural do ano acadêmico 1987-88 no Centro Acadêmico Romano da Santa Cruz