Vocação peculiar de cristãos correntes

Trecho do capítulo "A vocação ao Opus Dei como vocação na Igreja", escrito por Fernando Ocáriz e incluído no livro "O Opus Dei na Igreja" (Editora Rei dos Livros).

Josemara Escrivá de Balaguer, fundador do Opus Dei, em várias ocasiões – especialmente nos últimos anos da sua vida – empregou uma singular metáfora para ilustrar graficamente a relação entre a vocação cristã e a vocação ao Opus Dei. De modos diversos, lhe era formulada com frequência esta pergunta: que diferença há entre os membros do Opus Dei e os outros cristãos corren­tes? A que o Fundador respondia: «Tu viste um farol aceso? E outro por acender? São iguais, mas um tem luz e o outro não. Pois o farol aceso, esse é do Opus Dei. Está claro? De modo que um cristão é igual a outro cristão, mas se se lhe acende uma luz dentro..., e responde, e não a apaga, esse é do Opus Dei. Essa é a diferença: que dá luz, que dá calor, que atrai»[1].

A metáfora é importante e merece ser comentada devagar:

a) Os seus pressupostos são, por um lado, a condição comum cristã, e mais concretamente a regeneração operada no Batismo, que faz que todo o cristão tenha, ontologicamente, uma nova vida que late no seu interior (todo o cristão é «um farol» apto para dar luz); e, por outro, o fato de que essa vida nem sempre se manifesta em toda a sua força.

b) É, pois, necessária uma ação (uma intervenção da graça) que a impulsione: que «acenda o farol». Como é lógico, essa intervenção pode ser muito diversa. Uma das suas possibi­lidades pode ter lugar através do encontro com o Opus Dei, mas essa possibilidade não é a única: o Opus Dei é um caminho não o caminho — para ter essa luz e alumiar o ambiente. A peculiar missão eclesial do Opus Dei é precisamente coope­rar, com uma determinada espiritualidade e determinados modos apostólicos, para que todos os faróis acabem por se acender, cada um a seu modo, com a sua luz própria, sabendo que, em última análise, a verdadeira e única luz de todas as gentes é Cristo[2] . De fato, «o Opus Dei nunca pretendeu apresentar-se como o último ou o mais perfeito na história da espiritualidade. Quando se vive de fé, entende-se que a plenitude dos tempos está já dada em Cristo e que são atuais todas as espiritualida­des que se mantêm na fidelidade ao Magistério da Igreja e ao respectivo dom fundacional. (...) O Opus Dei ama e venera todas as instituições – antigas ou novas – que trabalham por Cristo em filial adesão ao Magistério da Igreja»[3].

Mas a metáfora não termina aí, pois sublinha que a luz que se acende no Opus Dei é uma luz que leva a brilhar sem dei­xar de ser um «farol corrente», se se nos permite a expressão. Com a metáfora dos faróis, Josemaria Escrivá queria, em suma, sublinhar que a vocação ao Opus Dei não comporta, em quem a recebe e aceita, nenhuma diferença a respeito da comum condi­ção cristã, mas leva a assumir plenamente essa condição de cris­tão corrente, chamado a ser santo – a ter dentro de si a luz de Deus – e a dar um sentido apostólico a toda a sua existência: a difundir constantemente essa luz nos outros.

Das precedentes considerações, depreende-se com clareza que pertence à própria essência da vocação ao Opus Dei o não tirar ninguém do seu lugar[4], o não comportar mudança alguma no status nem no gênero de vida: «Todos fazemos o que teríamos feito se não fôssemos do Opus Dei, mas com uma dife­rença: porque levamos acesa dentro da alma a luz da vocação divina, da graça especial de Deus, que não vem tirar-nos do nosso lugar, mas dar à nossa vida ordinária e ao nosso trabalho um sabor novo, divino, e uma eficácia sobrenatural»[5]. Uma eficácia sobrenatural à qual o Fundador aplica a imagem evan­gélica do fermento, com o que esta sugere a de força transfor­madora da massa a partir de dentro: «Gosto de falar em pará­bolas, e mais de uma vez comparei essa missão nossa, seguindo o exemplo do Senhor, à do fermento que, a partir de dentro da massa (cfr. Mat. 13, 33), a fermenta até a converter em pão bom»[6].

Este não tirar ninguém do seu lugar não é algo meramente sociológico civil, mas também teológico eclesial; mais ainda, implica a consciência da capacidade que a graça tem de vivifi­car as condições e situações humanas. Como já foi assinalado, a vocação ao Opus Dei não é uma vocação de especial «consa­gração»: não comporta uma nova consagração a Deus, que se acrescente à consagração batismal. Sobre estes pontos, o ensi­namento do Fundador foi especialmente insistente, perante as dificuldades encontradas para chegar a uma forma jurídica ple­namente adequada à realidade teológica e pastoral do Opus Dei ( a atual e definitiva configuração de Prelazia pessoal)[7]. Voltemos a ler, neste contexto, algumas palavras do fundador citadas um pouco mais acima: «vós, filhas e filhos meus – que como os outros cristãos fostes consagrados a Deus pelo Batismo, e renovastes depois essa consagração, feitos milites Christi, soldados de Cristo, pelo sacramento da Confirmação – livre e voluntariamente renovastes uma vez mais a vossa dedi­cação a Deus, ao responder à vocação específica com que fomos chamados, para que na Obra procuremos alcançar a san­tidade e exercer o apostolado»[8].

Não há, pois, nos membros do Opus Dei mais consagração que a sacramental (Batismo, Confirmação e, em alguns casos, Ordem sacerdotal), e, por conseguinte, pelo que se refere ao estado de vida, «cada um tem, na Igreja e na sociedade civil, o que tinha antes da sua incorporação na Obra, porque esta incor­poração não faz estado. O leigo continua a ser leigo, solteiro ou casado, o sacerdote secular continua a ser sacerdote secular e diocesano»[9]. Não é esta uma realidade simplesmente jurídico-canônica, mas constitutiva da essência teológica e pastoral do Opus Dei: «É vontade do Senhor – parte do mandato impera­tivo, da vocação recebida — que sejais, filhas e filhos meus, cristãos e cidadãos correntes»[10].

Ainda que, como já se disse, sobre o conceito de cristão cor­rente tratará mais amplamente o próximo capítulo, é oportuno assinalar já agora que «o conceito de vocação transcende o con­ceito canônico de status; mas não se pode esquecer que na Igreja há diversidade de missões, dons e carismas – diversidade que de ordinário há de ter uma expressão jurídica, ainda que muitas vezes não se dê mudança de status –, numa multiplicidade de vocações que faz que o Corpo Místico de Cristo seja o que é: um corpo organizado, e não uma massa informe»[11]. Efetiva­mente, só mediante uma restrição indevida do conceito de voca­ção – ainda que frequente, sobretudo até não há muitos anos – poderia pensar-se que toda a vocação que dê um caminho peculiar à vocação universal à santidade e ao apostolado é cha­mamento a uma mudança de estado na Igreja e no mundo.

Ao carácter de cristãos correntes próprio dos fiéis do Opus Dei adequa-se também perfeitamente o fato de o Opus Dei ser-uma Prelazia pessoal, isto é uma instituição da estrutura ordi­nária da Igreja, em que a vinculação dos fiéis com a instituição é da mesma natureza teológica, ainda que não idêntica, que a sua vinculação às Igrejas particulares. Daí, por exemplo, que o poder do Prelado e demais autoridades da Prelazia não seja o poder derivado de um voto de obediência (que não existe no Opus Dei) nem a capacidade jurídica de exigir o cumprimento dos regulamentos de uma entidade associativa, mas uma deter­minada expressão (peculiar, em razão das matérias a que se estende) do poder ordinário da Igreja[12].

Uma importante consequência do anterior é que não só cada membro do Opus Dei é um cristão corrente, mas todos jun­tos - isto é, o próprio Opus Dei - não constituem um grupo apostólico, mas uma pequena parte da Igreja, na frase do Fundador com que se iniciou este livro, que não separa nenhum dos seu fiéis da pars Ecclesiae que é a Igreja particular de cada um. Efetivamente, cada membro do Opus Dei procura levar a cabo por sua conta um profundo apostolado cristão no seu próprio ambiente, na Igreja particular a que pertence. Este é o aposto­lado principal do Opus Dei: realiza-o pessoalmente cada fiel da prelazia no seu trabalho, na sua família, no seu quadro social, etc., prestando deste modo um peculiar serviço à Igreja e ao mundo: «recebemos o chamamento de Deus, para fazer um peculiar serviço à sua Igreja e a todas as almas. A única ambi­ção, o único desejo do Opus Dei e de cada um dos seus filhos é servir a Igreja, como ela quer ser servida, dentro da específica vocação que o Senhor nos deu».

Nos sumus servi Dei caeli et terrae (1 Ed.5, 11), somos servos do Deus dos céus e da terra. E toda a nossa vida é isso, filhas e filhos meus: um serviço de metas exclusivamente sobre­naturais, porque o Opus Dei não é nem será nunca – nem pode sê-lo – instrumento temporal; mas é ao mesmo tempo um ser­viço humano, porque não fazeis mais do que tratar de conseguir a perfeição cristã no mundo limpamente, com a vossa libérrima e responsável atuação em todos os campos da atividade cidadã. Um serviço abnegado, que não envilece, mas educa, que engrandece o coração – fá-lo romano, no sentido mais alto desta palavra – e leva a buscar a honra e o bem das gentes de cada país: para que haja cada dia menos pobres, menos igno­rantes, menos almas sem fé, menos desesperados, menos guer­ras, menos insegurança, mais caridade e mais paz»[13].

O Opus Dei enquanto tal não tem outra atividade senão a formação doutrinal, espiritual e apostólica dos seus membros e de todas as outras pessoas que desejem beneficiar dela, e o necessário serviço pastoral do Prelado, presbíteros e diáconos da Prelazia. Com frase breve e nítida do Fundador: «A própria Obra tem por trabalho exclusivo a formação dos seus mem­bros»[14]. Essa formação, com tudo o que implica de convite a uma vida de piedade profunda e sincera, de transmissão da dou­trina da Igreja e de impulso a viver segundo um acendrado espí­rito apostólico, plasmar-se-á depois, na existência concreta dos membros da prelazia, num esforço por santificar o próprio tra­balho e numa pluralidade de iniciativas apostólicas, levadas adiante com espontaneidade e com liberdade e responsabilidade pessoais[15].

Isto não obsta, naturalmente, a que alguns membros do Opus Dei, unidos a outros membros e a outras muitas pessoas, levem a cabo com o seu trabalho profissional algumas obras apostóli­cas (de tipo educativo, assistencial, etc.) de cuja orientação cristã e direção espiritual se torne responsável a Prelazia. São as chamadas obras de apostolado corporativo do Opus Dei[16] .

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[1] Palavras numa reunião no Brasil, a 26-V-1974

[2] Cfr. S. CIPRIANO, De unitate catholicae Ecclesiae, 3: PL 4, 512.

[3] A. DEL PORTILLO, El camino del Opus Dei, em AA.VV., Mons. Josemaría Escrivá de Balaguer y el Opus Dei, cit., p. 40.

[4] Instrucción, 1-IV-1934, n. 23; Carta, 3I-V- 1954, n. 18. Sobre este ponto tratar-se-á mais pormenorizadamente no capítulo III.

[5] Carta, 29-VII-1965, n. 7

[6] Carta, 24-III-1930, n. 5; cfr. Carta, 9-I-1959, n.8

[7] A.DE FUENMAYOR, V. GÓMEZ IGLESIAS e J. L. ILLANES, El itinerario jurídico del Opus Dei, cit

[8] Carta, 15-VIII-1953, n. 35.

[9] Carta, 25-1-1961, n. 12. Cfr. Temas Actuais do Cristianismo, n. 70.

[10] Carta, 14-11-1944, n. 2.

[11] Carta, 15-VIII-1953, n. 4

[12] Sobre este tema tratou-se detidamente no capítulo I e a ele se fará também referência no capítulo III. Cfr. também P. RODRÍGUEZ, Igrejas particulares e Prelazias pessoais, cit., pp. 99-100; F. OCÁRIZ, La consacrazione episcopale del Prelato dell'opus Dei, em «Studi Cattolici», n. 359, 1991, pp. 22-29.

[13] Carta, 31-V-1943, n. 1.

[14] Instrucción, 9-1-1935, n. 11.

[15] Cfr. Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, n. 19 e 27.

[16] Cfr. Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, n. 18 e 27. Como é lógico, a Prelazia enquanto tal torna-se responsável pela retidão cristã de uma iniciativa apostólica desse tipo só se puder de fato garanti-la, com os meios que, em cada caso, se julguem necessários e com os quais haverão de estar de acordo os promotores e os proprietários dessas atividades, se desejam que a Prelazia assuma essa responsabilidade.