Verões sem espreguiçadeira

Os dados para elaborar este capítulo só podiam ser fornecidos por alguém que tivesse convivido com Josemaria Escrivá durante os Verões que aqui se narram. E assim foi. A autora agradece a D. Javier Echevarría a inestimável ajuda dos seus relatos diretos, escritos ou gravados. Agradece também a sua generosa dedicação de tempo, a abundância de material e o esforço de memória que teve de fazer para responder.

Quando o cardeal Pizzardo se encontrava com mons. Escrivá, sem se importar muito ou pouco de que houvesse ou não pessoas por perto, segurava-o pela cabeça e estampava-lhe um sonoro beijo na testa, ao mesmo tempo que exclamava:

– Obrigado, porque o senhor me ensinou a descansar!

E, se notava olhos de assombro à volta, fazia esta confissão:

– Eu era daqueles que pensavam que, nesta vida, só se podia trabalhar ou perder o tempo. Mas ele deu-me de presente uma idéia clara, maravilhosa: que descansar não é não fazer nada, não é um ocioso dolce far niente, mas mudar de ocupação, dedicar-se a outra atividade útil e entretida durante um certo tempo.

Pizzardo, uma personalidade de peso no Vaticano, foi secretário do Santo Ofício e prefeito da Congregação de Seminários e Universidades. Sabia bem o que era trabalhar. Mas faltava-lhe aprender a lição do descanso ativo, do descanso enriquecedor, do descanso que não é perda de tempo.

Também Escrivá, durante muitos anos, àqueles que insistiam com ele em que interrompesse a sua frenética atividade, respondia-lhes: “Descansarei quando me disserem: Resquiescat in pace”.

Com o passar do tempo, compreendeu que esse critério era um erro. E assim o dizia: “O corpo e a cabeça não podem manter-se em constante tensão, porque acabam por explodir”.

No entanto, até 1958, não pôde arranjar uma temporada de descanso.

A partir de 1958, começa a sair no verão, para a Grã-Bretanha, a Irlanda, a França e a Espanha, alojando-se em casas alugadas ou emprestadas. Assim, nos anos de 1958, 1959 e 1960, passa algumas semanas de julho e agosto em Woodlands, um chalé na zona norte de Hampstead Heath, no fundo da Courtenay Avenue, em Londres.

Em todas essas temporadas, combina o descanso com o estudo e o impulso às pessoas e aos trabalhos do Opus Dei, não só na Grã-Bretanha e na Irlanda, mas também na Europa continental: em 1960, viaja de carro a diversas cidades da França, da Espanha e da Alemanha; e, em 1962, à Áustria, à Suíça e à França.

No verão de 63, descansa numa casa chamada Reparacea, em Navarra, entre San Sebastián e Pamplona. E no de 1964, em Elorrio, um povoado da Biscaia.

Pede a Álvaro del Portillo e Javier Echevarría – que o acompanham sempre – que lhe sugiram planos e programas para trabalhar em outras matérias, em outros assuntos, durante esse tempo de férias. Quando sai de Roma, faz uma voluntária “lavagem cerebral”, desliga-se do seu trabalho habitual e delega em outras pessoas o máximo de tarefas de governo da Obra que pode. Mas a sua mente – um portentoso dínamo de idéias – não pode ficar de braços cruzados.

O psiquiatra vienense Viktor Frankl – discípulo de Freud e judeu como ele, que soube desmitificar a tempo o seu mestre – conheceu Josemaría Escrivá. Depois de visitá-lo um dia em Villa Tevere, comentou: “Este homem carrega na cabeça uma autêntica bomba atômica”. Pois bem: nesses verões – além de ler, estudar e escrever –, ocorrem a Escrivá centenas de iniciativas audazes, de soluções engenhosas, de descobertas insuspeitadas, que ele mesmo irá anotando ou indicando àqueles que o acompanham, para “pô-las em andamento” quando regressar a Roma, no reinício das atividades.

Talvez o mais chamativo nas férias de mons. Escrivá sejam os seus exíguos apetrechos, a sua sóbria guarnição, a sua escassa bagagem. Certamente, não são férias debaixo de um guarda-sol. Também não de praia e espreguiçadeira. Nem de balneário e chaise-longue.

Entre os poucos volumes acomodados no Fiat 1100 bege, não se vêem artefactos de pesca, nem raquetes de tênis, nem tacos de golfe; ou mesmo bicicletas, embora se tenha dito belamente que “as bicicletas são para o verão”.

Quando, a partir de 1965, mons. Escrivá começar a passar o ferragosto fora de Roma, mas na Itália, praticará outro esporte “barato”, desses que não precisam de quadra nem de pista especial: le bocce, as bochas. Um jogo de bolas cuja graça está mais no tino do que na força, e que exige agachar-se, arremessar as bolas, levantar-se... Como o “terreno de jogo” é simplesmente o campo, de terra solta, e as bochas levantam muito pó, Escrivá tem de trocar de roupa inteiramente: tira a batina e veste umas calças e uma camisa já gastas, e umas alpargatas escuras de lona.

Não se dá muito bem com le bocce. Mas as partidas são entre quatro, em duplas, e isso tem a emoção da rivalidade. Escrivá costuma ter como parceiro o arquiteto Javier Cotelo – membro da Obra que, durante as viagens, dirige o carro –, contra Álvaro del Portillo e Javier Echevarría. Estes últimos ganham todas, todas. É divertido ver como Escrivá encontra um jeito de superar o handicap dos vencedores natos. Às vezes, quando é a vez de eles lançarem as bolas, dá-lhes um leve encontrão para que o arremesso saia desequilibrado.

– Assim não vale, Padre! Isso é trapaça!

– Que nada, Álvaro! Faz parte do jogo...! Não vos gabais de jogar tão bem? Então, alguma dificuldade tínheis de ter...!

Um dia, as duas duplas já vêm jogando há um bom tempo. Falta uma bola por atirar: a de Escrivá. Com sorte, poderia alcançar a pontuação máxima, se conseguisse situá-la com um arremesso preciso junto do “chico”.

Escrivá lança. E, ante o assombro de todos, inclusive dele mesmo, a bola fica ao lado do “chico”. Então, com cara de moleque apanhado em flagrante, declara ali mesmo:

– Não voltarei a fazê-lo... Esta foi pior que as trapaças de sempre... Confesso-vos o que fiz?

Os outros três olham-no intrigados. Escrivá abaixa a voz, como que envergonhado pelo que vai dizer:

– Antes de atirar a bola, recomendei-me com força ao meu anjo da guarda, para que me saísse bem... Mas agora percebo que é uma bobagem meter o anjo da guarda num jogo que não tem a menor transcendência.

Em 1965, Scaretti, um amigo de Álvaro del Portillo, empresta-lhes até meados de agosto a casa de uma quinta de lavoura que tem em Castelletto del Trebbio, a vinte quilômetros de Florença.

A casa encontra-se bastante deteriorada pelos anos e pelo desuso, e está longe de ser um lugar confortável. Não tem telefone nem televisão. Para chegar a ela, é preciso subir uma alta colina por um caminho de gado. Os arredores são campos de cultivo. E a região, como quase toda a Toscana, é de clima continental: muito frio no inverno e muito quente no verão.

Escrivá, Del Portillo, Echevarría e Cotelo passarão ali várias semanas de julho e agosto.

Nessa casa – como em qualquer casa onde passe o período de férias –, Escrivá mantém-se continuamente consciente de que o imóvel, os móveis e os apetrechos que usa não são seus, e esmera-se em evitar estragos. Se, para organizar o trabalho e o estudo, decidem mudar alguns móveis de lugar, encarrega Javier Cotelo de fazer “um desenho da sala, tal como estava ao chegarmos, para deixá-la exatamente na mesma quando nos formos embora”. Procura também que os móveis não rocem a parede ou que se substitua uma lâmpada queimada, ainda que para isso seja preciso ir ao povoado comprá-la.

Não o incomoda sentir-se assim, forasteiro e de empréstimo. Pelo contrário, isso ajuda-o a viver sem se refestelar e a saber-se pobre. Cuida do alheio como se fosse próprio. Durante um dos verões, em Londres, percebe que há um trânsito de formigas perfeitamente organizadas em fila indiana que vêm do jardim, entram por uma porta, atravessam a sala de estar e saem por outra porta. Chama Dora e Rosalía e pede-lhes o aspirador de pó. Depois, com a ajuda de Javier Echevarría, procede ao “extermínio por absorção” de toda aquela “tropa”.

Anos mais tarde, quando veranear em Premeno, no norte da Itália, intervirá também em outra operação semelhante, armado de um pau enorme, enquanto os dois Javier destroem o formigueiro, queimando-o com gasolina... Que homem – por mais famoso, sábio ou santo que seja – não faz as suas “molecagens” brincando de guerra, com o utilíssimo pretexto de “aniquilar” uns insetos?

Nessas semanas, Escrivá organiza um horário em que tenha tempo para rezar, trabalhar, fazer esporte, dar alguns passeios e sair de excursão...

Concentra o seu trabalho na revisão de um documento – a Instrução sobre a Obra de São Gabriel – em que trata dos membros supernumerários do Opus Dei e do apostolado com pessoas casadas.

Começara a redigir esse texto em maio de 1935 e terminara-o definitivamente em setembro de 1950. Mas naquele tempo não existiam fotocopiadoras, o mimeógrafo era de muito baixa qualidade e a gráfica em Villa Tevere ainda não estava em funcionamento. Para distribuí-lo pelos diferentes países onde a Obra trabalhava, houvera que fazer cópias datilografadas, e alguns copistas, involuntariamente, tinham cometido erros de sintaxe e de pontuação, chegando até a omitir algumas palavras. O mesmo acontecera com as outras Instruções (a da Obra de São Rafael, relativa ao apostolado com a juventude, e a da Obra de São Miguel, sobre os membros do Opus Dei, numerários e adscritos, que permanecem solteiros). Escrivá fizera retirar de circulação todas as cópias, para trocá-las por um texto único, impresso, que se editaria na gráfica de Villa Tevere. E era exatamente nessa edição que trabalhava agora.

Vendo como se podia alterar totalmente o sentido de uma frase pela colocação errônea de um ponto ou uma vírgula, ou pela omissão de um advérbio – sobretudo, tratando-se de textos que tinham de conservar íntegro o seu caráter “fundacional” –, Escrivá comenta com Álvaro e Javier Echevarría a necessidade de “sermos todos exigentes conosco próprios e acabarmos materialmente bem todos os trabalhos, porque não podemos oferecer a Deus coisas marretadas”. Nesses dias, insiste-lhes muito na “ascética das coisas pequenas”.

Toma nota das suas leituras para um projeto de livro – Diálogo – sobre a vida contemplativa, que está muito avançado, mas que não chegará a terminar.

Lê os documentos do Concílio Vaticano II. Reza pelos grandes temas que ainda serão debatidos: o dos religiosos e o dos sacerdotes. Dá graças pelo documento Lumen Gentium, no qual se percebe o eco de alguns pontos do espírito do Opus Dei, que passam assim a ser doutrina da Igreja, solenemente proclamada e recomendada. Escrivá passa muitos momentos no pequeno oratório que instalaram na casa, agradecendo essa chancela da Igreja aposta a uma mensagem que, durante tantos anos, fora encarada com reticências e não se compreendia nem se aceitava.

Como na casa não há televisão e o jornal chega muito tarde, quando regressa da sua caminhada diária, Escrivá pede a Álvaro – assim: “pede” – que ligue o rádio para escutar o boletim informativo da uma da tarde. Interessa-lhe estar a par do que acontece no mundo. Enquanto ouve as notícias, faz quase sempre um comentário de calado sobrenatural e anima os que estão com ele a rezar por tal país, por tal situação, por tal pessoa...

O Homem de Villa Tevere, de Pilar Urbano (Tradução portuguesa), São Paulo, 1996, capítulo XVII