Um guia espiritual para o nosso tempo

Testemunho de Tatiana Gorichewa, russa. Depois de se converter ao cristianismo, desenvolveu uma intensa atividade intelectual, que provocou o seu aprisionamento e posterior expulsão do país. É autora dos livros "Vzyickanie Pogibshikx" (1982) ("Os mortos reprovam-nos"), e "Opasno Govorit ' o Boge" ("Falar de Deus é perigoso") (1983).

Ao nosso povo da Rússia, torturado mas não aniquilado, restou-lhe uma autoridade: os startsi*. Num país em que raramente se pode conseguir a Bíblia, eles são o Evangelho vivo, a demonstração de que Deus existe, que o cálculo político e o pensamento não alcançam. Os startsi são guias espirituais provados pela vida. Vêm ao nosso encontro como pais. E como pais salvam-nos, orientam-nos, fortalecem-nos, contagiam-nos a sua alegria.

Em Josemaria Escrivá, com que deparei através dos seus escritos, encontrei o mesmo ânimo, a mesma fortaleza e o mesmo amor para além das fronteiras que distinguem as pessoas. As suas obras contêm uma resposta para todos aqueles que andam em busca de confiança. E encontrei nele também essa autoridade inconfundível que não violenta nem oprime, mas que enamora e entusiasma: a paternidade.

O nosso tempo perdeu os chefes capazes de unir os homens, perdeu a paternidade. E, quando deixa de haver pais, os homens encontram-se sem raízes e sem lar. Por isso são tão valiosas para nós essas figuras que brilham na escuridão da Europa inteira e se convertem em autoridade aí onde se perdeu o próprio conceito de autoridade.

“Esse homem é jovial. Não pode ser ateu”, disse Dostoievski em certa ocasião. E Josemaria Escrivá repete como um estribilho o seu apelo à alegria por sermos filhos de Deus. Surpreendentemente, a santidade tem um efeito paradoxal. A santidade exige o máximo de nós: “Sede perfeitos como o vosso Pai celestial é perfeito”. O santo exige de nós que abandonemos tudo, que tomemos a nossa cruz e sigamos a Cristo. Santidade significa escutar, dar atenção a esse chamamento e obedecer-lhe sem condições. E é precisamente obedecendo que nos tornamos livres. Uma obediência interior que não tem nada em comum com a escravidão a uma ideologia e muito menos com a submissão a um sistema político, seja ele qual for. A obediência interior escolhe-se livremente. Por isso a santidade vai a par com a alegria.

O homem do século XX faz alarde das suas liberdades. Mas na realidade ele é uma vítima e está dominado. Na sua indigência, o homem do século XX pergunta-se a si próprio se a Igreja não significará para ele também uma escravidão. Não admite as respostas da tradição e da moral. Só o que é vivo o convence. Um amigo que durante 35 anos da sua vida tinha tido como lema “È melhor viver de pé que viver de joelhos” contou-me que experimentou pela primeira vez a sensação da liberdade sem limites de ser obediente quando se ajoelhou numa igreja. Também a vida dos nossos mestres espirituais, o espírito vivo dos nossos santos de agora é uma resposta. Contemplá-los dilata a alma, conduz-nos à paz.

Impressionou-me o apelo constante de Escrivá à santidade no quotidiano. Temos a tendência para estar à espera de grandes coisas e de grandes acontecimentos. Essa inclinação – que pode chegar ao delírio – é um sinal dos projetos humanos e das ideologias. Mas o cristianismo não é uma utopia nem um simples idealismo. As figuras exemplares encerram, na sua perspectiva de fundo, o anúncio peculiar de prestar atenção às coisas pequenas: o óbolo da viúva, a porta estreita, o grão de mostarda, o buraco da agulha. Quanto maior é Deus, menor é o mundo. O fato de chamar a atenção para o que não tem brilho é sinal inequívoco de que a referência não é ideológica. Em qualquer pequeno pormenor aí está Deus que olha para nós. É certo que a ideologia tem os olhos postos no futuro. Pelo contrário, Deus está no presente. O cristão vive aqui e agora. O hoje encerra a infinitude e a eternidade: “Renova em cada dia o desejo eficaz de te tornares pequeno, de te abnegares, de te esqueceres de ti próprio, de caminhar “in novitate sensus”, com uma vida nova, mudando esta nossa miséria por toda a grandeza oculta e eterna de Deus”. As coisas pequenas do dia a dia vão mostrando o lugar e o momento adequados e, sobretudo, reais para o amor e para fidelidade. A poesia do cristianismo tem a sua raiz no concreto de cada dia. O cristão é chamado, em palavras de Escrivá, a “fazer da prosa de cada dia verso heroico”. Exatamente com o mesmo sentido, o “starets” Paisiy Velichovskiy chamou ao monge o “mártir do quotidiano”, e Escrivá apelidou o caminho do cristão de “sacrifício escondido”.

A paternidade é espiritual na medida em que ela própria for obediente e se deixar guiar pelo céu. Na direção espiritual unem-se de forma admirável a igualdade e a autoridade. O pai espiritual conduz o seu filho ou a sua filha espiritual para o alto; ensina como se pode subir mais um degrau. Como diz Dionísio Areopagita, o degrau mais alto da hierarquia não está contra o mais baixo. Ante o olhar de Deus todos são iguais. Assim, a direção espiritual, apesar de toda a sua igualdade, exige audácia e chama o cristão a ser sempre fecundo.

Tatiana Gorichewa nasceu em Leningrado (São Petersburgo) em 1947 e fundou o primeiro movimento feminista russo. Estudou Filosofia e foi educada no ateísmo oficial do regime comunista soviético. Depois de se converter ao cristianismo, desenvolveu uma intensa atividade intelectual, que provocou o seu aprisionamento e posterior expulsão do país. É autora dos livros "Vzyickanie Pogibshikx" (1982) ("Os mortos reprovam-nos"), e "Opasno Govorit ' o Boge" ("Falar de Deus é perigoso") (1983).


* Os startsi (no singular starets são sacerdotes ou monges que pela sua fama de santidade, exercem a direção espiritual de outros fiéis no mundo ortodoxo.