"Tenho todos os pecados. Menos matar, um de cada"

Quando seu pai lhe dizia: “Você esta buscando algo, te digo que acabarás indo à Missa todos os dias”, África ria. “Sim, claro, não vou nunca e agora vou passar a ir todos os dias!”. As vezes tentava se aproximar da Igreja, mas lhe parecia impossível: não entendia as palavras do sacerdote, todo lhe parecia repetitivo… e além disso, não era algo que precisava. Estava totalmente em off.

Fotos: Mónica de Solís.

Na lendária ilha de Ítaca estava o formoso palácio do herói, Ulisses, rodeado por três montanhas desde as quais se podiam avistar três mares. Também na história de África há três marcos que lhe ajudaram a reconhecer que havia voltado para casa, mas não teve consciência disso durante vários anos, até que parou para escrever os pontos de inflexão da sua própria existência. No momento, bastava jogar “partida por partida”, como diria aquele treinador.

África esteve vinte e dois anos sem ter quase nenhum contato com Deus. “Quase” porque se casou na Igreja e, de vez em quando, rezava um Pai-Nosso para pedir alguma coisinha: vai que dava certo. Mas tudo ia maravilhosamente bem: seu marido é encantador, tem dois filhos espetaculares –um menino e uma menina, como ela queria-, mudava de trabalho rapidamente... "Você nasceu com uma estrela, sua vida é fenomenal". Não precisava de Deus para nada e aqueles anos de colégio de freiras e as Missas aos domingos com a família, já tinham ficado para trás.

Não precisava de Deus para nada e aqueles anos de colégio de freiras e as Missas aos domingos com a família, já tinham ficado para trás.

Um dia, depois de dar à luz, cruzou com uma vizinha que acabava de ter gêmeos:

-E como se chamam?
-Pedro e Paulo.
-Nossa, como os Flinstones!
-Não, não... como os apóstolos. E como foi tudo com sua filha?
-Fenomenal. Nasceu às 3, na hora...
-Da Divina Misericórdia.
-Não, do telejornal... Da Divina Misericórdia? Em qual canal passa?

Não entendia nada, estava totalmente em Off.


►Escute a história contada por África.


A profundidade do Mar Jônico

Um pouco depois, em outubro de 2001, estava desempregada e decidiu fazer um mestrado na universidade. Todo dia, ao ir à cafeteria para tomar café da manhã, passava diante de uma Capela, onde havia um cartaz que dizia: “Você ainda não se crismou? Entre e se informe.” Todas as manhãs passava por aquele cartaz e não podia deixar de lê-lo. Essas palavras martelavam seu cérebro. Até que um dia decidiu entrar.

Fez isso porque seu filho ia fazer a Primeira Comunhão e lhe dava pena que fosse a última, porque ela e seu marido nunca iam à Missa.

Como não viu o padre, pegou um livro que havia ali e que depois nunca deixou de ler porque gosta muito dele: “Falar com Deus”, de Francisco Fernández Carvajal. A história que contava parecia tão bonita que não acreditava que pudesse ser verdade. Começou a chegar antes na universidade para ler e voltava depois que as aulas acabavam. E o padre nunca aparecia...

Todo dia, ao ir à cafeteria para tomar café da manhã, passava diante de uma Capela, onde havia um cartaz que dizia: “Você ainda não se crismou? Entre e se informe.”

Também encontrou um papel com os Mandamentos da Igreja. “Assistir à Missa inteira todos os domingo todos os domingos.” Todos os domingos? Com tudo o que tenho que fazer, estão loucos... “Confessar-se pelo menos uma vez por ano.” Por favor, quem faz isso? Isso é exagero... “Ajudar à Igreja em suas necessidades.” Sim, com tudo o que têm! Que vendam o Vaticano... E pensou que esses Mandamentos teriam que mudar em algum momento.

Até que o padre apareceu. Disse-lhe que queria se crismar e achava que para isso teria que se confessar antes. O sacerdote lhe deu um exame de consciência e ela se preparou. Como ela ia saber que tudo isso era pecado? Confessou-se dizendo: Tenho todos os pecado todos os pecados. Menos matar, um de cada.

Aquele sacerdote foi lhe dando catequese durante vários meses e ela acabou se crismando, em maio de 2002. Foi um momento impressionante. Entendo que não é necessário sentir nada quando você se crisma mas, no meu caso, tive uma experiência um pouco especial. No momento em que o bispo me colocou o óleo senti uma pressão muito forte, não podia me mover. Chorava de emoção, não sei muito bem porquê. Meu marido, que estava quase mais afastado que eu, era meu padrinho. Depois soube que tinha que ser uma pessoa que te acompanhasse espiritualmente, mas tudo bem, ele estava ali, colocou a mãozinha em meu ombro e tudo certo.

A partir da Confirmação começou a ir à Missa, mas parou. Depois da Primeira Comunhão de seu filho voltou a tentar, mas sem resultado. Não entendia o significado da Liturgia nem das palavras do sacerdote. Tudo parecia repetitivo, não achava nenhuma graça.

O doce azul do Adriático

África sempre teve uma relação muito boa com sua família, especialmente com seu pai, que tinha muita fé. Mesmo que não compartilhassem a fé, não era algo que lhes separasse, muito pelo contrário. Muitas vezes falavam da morte. Algo que lhe dava sempre muito medo.

Seu pai dizia que só se preocupava com o mau momento que teria que passar na hora da morte, mas sabia muito bem o que o esperava depois. Isso você não sabe. Mas ele passou muitos anos rezando para ter uma boa morte e pediu ao Senhor que lhe enviasse um aviso quinze dias antes, para estar preparado. Pai, por favor, o que você espera? Que a Virgem apareça para você? Que chegue um telegrama celestial? “Faz muitos anos que peço e sei que o Senhor e a Virgem vão me conceder”. Pobrezinho, quando vir que morreu e ninguém o avisou...

Seu pai teve uma boa morte, como ele quis, e deu tempo para receber a Unção dos Enfermos.

No verão em que ele morreu, recebeu o sinal antes. Não sei se foram 15 dias exatos ou não, porque nem pensei nisso. Seu pai teve uma boa morte, como ele quis, e deu tempo para receber a Unção dos Enfermos. Estava claro que não podia ser uma coincidência.

Um ano depois, África permanecia muito triste, uma depressão horrível, mas tinha que continuar trabalhando. Às vezes tinha que parar de repente e ir ao banheiro para chorar. Foi ao médico e tomou remédios para a ansiedade e para dormir, pela primeira vez em sua vida. Até que um dia já não pôde mais e se enfrentou com Deus: “Por favor, Senhor, me ajude. Preciso que cure esta angústia e continuar a vida porque não posso”.

O calor do entardecer no Mediterrâneo

Naquela época, trabalhava na área comercial, em questões de investimentos e tinha seus clientes, que atendia em domicílio. Um dia uma senhora ligou pedindo ajuda. Onde podemos nos encontrar? “Eu trabalho como organista na Igreja de tal lugar, podemos nos encontrar depois da Missa do meio-dia”. Era um domingo, dia de Pentecostes.

Chegou ao encontro com tempo e decidiu entrar e se sentar ao lado da organista para esperá-la, ao lado do altar, no primeiro banco. Na homilia algo aconteceu. O sacerdote começou a falar de uma maneira que me impactou. Foi como se a mensagem fosse para mim: falava da outra vida, de que é uma mudança de casa, que somos eternos e a morte é só um até logo, que estaremos com nossos entes queridos, que conheceremos a Jesus... Minha angústia ia passando aos poucos para dar lugar à esperança .

Saiu dali totalmente mudada, mas não contou a ninguém. No domingo seguinte, sentiu um grande impulso para voltar.

Ficou tão alucinada que, quando Missa terminou, ficou sem reação. A organista ia contando seus problemas, mas ela a ouvia de forma distante. Saiu dali totalmente mudada, mas não contou a ninguém. No domingo seguinte, sentiu um grande impulso para voltar. E no seguinte, e no seguinte... mas ainda às escondidas.

Um dia o padre explicou que não se ia à Missa por cumprir uma regra, mas por amor a Deus. “Você poderia ficar uma semana inteira sem ver a pessoa que você ama? É isso o que acontece com Deus”.

Naquela época levava seus filhos ao colégio e depois ia tomar café da manhã com algumas mães amigas. Ela começou a ir à Missa em alguns dias nessa hora... mas tinha vergonha de dizê-lo. Um dia dizia que tinha que ir a um cabeleireiro que abria muito cedo. Outro, que tinha que fazer compras em uma loja que era muito longe. Até que um dia não aguentou mais... “Mas podemos saber aonde você vai todos os dias depois do colégio? À Missa! Vou à Missa porque preciso! “Mas por que isso? Hoje é quinta”.

O próximo golpe chegou também em uma homilia. “Para poder conhecer a Deus e falar d'Ele às pessoas é preciso estudar a história da Salvação, conhecer o significado da Liturgia… por isso aqui na paróquia temos aulas de Teologia. É de graça, não precisa fazer prova e podem vir quando quiserem, sem se inscrever”.

Seu marido, para quem acabou contando sua conversão, achou graça por um tempo. Mas depois, começou a acompanhá-la aos domingos.

Com todo o seu entusiasmo, procurou uma babá para as sextas à tarde e comprou um caderno em uma lojinha chinesa para prosseguir com seu histórico universitário de aluna dedicada. Na primeira aula não entendeu nada e decidiu não voltar, mas, antes de ir, a moça ao lado, da sua idade mais ou menos, se ofereceu para lhe dar aulas particulares. De graça? Mas se nem nos conhecemos! “Assim começamos a nos conhecer”. Durante três meses ela aprendeu sozinha, um pouco cada dia, depois da Missa e, quando já estava pronta, voltou a se incorporar ao resto do grupo, do qual faz parte até hoje.

Esse foi o retorno definitivo para África. Seu marido, para quem acabou contando sua conversão, achou graça por um tempo. Mas depois, começou a acompanhá-la aos domingos. A todos, porque iam os quatro. Ele ficava esperando no bar e, pouco a pouco, foi entrando. Com ele aconteceu a mesma coisa que comigo, ainda que tenha demorado mais.

Eu achava que era feliz, mas agora sei que me faltava Deus, o mais importante. Entre viver de costas para Deus e de frente para Ele, a vida é totalmente diferente, gira 180 graus.

Deus fala baixinho. Me chamou durante vinte anos e eu dizia que não, porque sabia que se lhe deixasse entrar ia revolucionar minha vida, mas valeu a pena.

Uma vez, faz muitos anos, África lembra de ter ficado triste por haver perdido a fé e ter ouvido por dentro uma voz que lhe dizia “pede-a!” E a pediu. Quando você pede a fé ao Senhor, Ele a dá. Assim, de graça.

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Veja o documentário “Retorno a Ítaca” (32 min.)