São Josemaria, Sacerdote Diocesano

O fundador do Opus Dei viveu a sua condição de sacerdote com particular intensidade, soube fazer vida própria com grande vigor as virtudes sacerdotais peculiares e viveu-as de um modo insigne e excelente.

A afirmação de que Josemaria Escrivá representa um verdadeiro modelo de sacerdotes encerra um significado bem preciso. Com ela quer dizer-se que o fundador do Opus Dei viveu a sua condição de sacerdote com particular intensidade, soube fazer vida própria com grande vigor as virtudes sacerdotais peculiares e viveu-as de um modo insigne e excelente. Pode ser, pois, apresentado como modelo de sacerdotes a sua vida sacerdotal, com efeito, pode servir de pauta inspiradora a outros sacerdotes no modo de viver a sua própria condição.

Josemaria Escrivá entregou-se, efetivamente, desde o princípio a viver plenamente o seu sacerdócio. Nunca o considerou como simples ingresso num determinado status, uma solução para a vida, um modus vivendi, por assim dizer, uma profissão que, a par de outras, se abria perante ele no alvor da juventude. Ao acolher a chamada ao sacerdócio, não escolhia uma solução relativamente cômoda, segura, com certo prestígio social, ao menos nos ambientes a que poderíamos chamar de província. Embora ainda sem conhecer a razão exata e última da sua chamada ao sacerdócio, Josemaria Escrivá entendia com invulgar clareza que “não queria ser sacerdote por ser sacerdote”[1]. O que ele queria, a sua vontade e intenção não eram, em absoluto, chegar a ser um das personagens características dos esquemas de costumes da época: que retratava o sacerdote em convívio com certos funcionários da administração pública.

Se o motivo último da chamada ao sacerdócio, impondo-se aos seus projetos pessoais, não se revelou ao fundador do Opus Dei até 2 de Outubro de 1928[2], a referida chamada foi manifestada a ele desde o princípio, no horizonte de uma forte exigência de santidade[3], que não o abandonaria até à morte. Numerosas personalidades eclesiásticas, que conheceram e conviveram com Josemaria Escrivá nos primeiros anos da sua vida sacerdotal, deram testemunho unânime da heroicidade das suas virtudes[4]. E a santidade heroica era o que, desde o princípio, pedia a todos, também, pois, aos sacerdotes[5].

A minha intervenção, como é obvio pela natureza e dinâmica próprias de uma sessão de trabalho, não tem como fim apresentar um estudo, mesmo que resumido, da doutrina teológica do fundador do Opus Dei sobre o sacerdócio, tal intento requer um empenho bem diverso do que me é exigido neste momento. Não me proponho traçar um perfil ascético da figura do sacerdote Josemaria Escrivá ou do sacerdote em geral. Limitar-me-ei a fixar os traços que, tanto na existência sacerdotal de Josemaria Escrivá como na sua doutrina sobre o sacerdócio, constituíram e constituem algumas das linhas fundamentais do modelo em que se inspira a minha vida sacerdotal.

Devo dizer desde já - considero-o de extrema importância - que, muito provavelmente, os referidos traços nunca teriam exercido influxo pessoal tão forte e decisivo se não os tivesse visto encarnados, feitos vida em Josemaria Escrivá e nalguns sacerdotes da Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz. Se não tivesse sido assim, tais traços ou não teriam inspirado tão decisivamente a minha vida sacerdotal ou não os teria sabido assimilar, melhor ou pior, na minha vida. É difícil, ou melhor, dito, é impossível, adquirir sentido artístico, bom gosto, só com o ensino e exposições teóricas, aprendendo nos livros. O contato com a obra de arte, a experiência, o encontro direto, constante, com a beleza em qualquer das suas variadas formas, educa de forma espontânea o sentido da beleza. Penso que algo semelhante acontece também na vida espiritual. Também aqui a experiência, o contacto direto, precede, em boa medida, a reflexão.

No meu caso, com efeito, a atração, o chamamento para viver o meu sacerdócio segundo o espírito do Opus Dei, obedeceu simplesmente à vontade de ser um sacerdote assim, tal como o vi encarnado nalgum dos presbíteros do Opus Dei que tive a sorte, a graça de Deus, de conhecer nos meus anos de seminário, e como pude depois descobrir na pessoa de Josemaria Escrivá. Mais tarde, ao conhecer com mais pormenor a mensagem do fundador do Opus Dei, percebi de maneira mais articulada e orgânica, embora não de modo mais intenso, o que anos atrás tinha visto e intuído. Deus nosso Senhor, na sua infinita sabedoria e paterna providência, serve-se de modos muito diversos para fazer ver a uma pessoa que tipo de sacerdote, melhor, que modalidade de existência sacerdotal concreta deseja que viva.

O plano de Deus sobre cada pessoa é único, mas a sua total manifestação ou, seja, a sua plena descoberta, não se dá habitualmente de uma só vez, mas vai acontecendo em momentos sucessivos. Num instante desvela-se então algo novo, que, contudo, fazia parte, já desde o início, do projeto total e único de Deus.

A característica que num primeiro momento me atraiu com mais força, que despertou um forte sentimento de simpatia, que me fez sentir bem, como na minha casa, que infundiu em mim um íntimo sentimento de proximidade foi – a recordação é nítida e precisa – o estilo aberto, luminoso, por assim dizer, a vida, a atmosfera positiva, sem receios, diante das coisas nobres do mundo; o bom humor e a alegria que, vim, a saber, depois, eram fruto de uma profunda vivência da filiação divina; o espírito desportivo que impele a uma luta alegre e contínua; a atitude jovial, simpática – para mim uma agradabilíssima novidade - que pressenti vitalmente, repito, desde o momento inicial dos meus contactos com o primeiro sacerdote do Opus Dei, quando ainda nem sequer sabia de tal condição. Nada tinha de atitude negativa perante as outras imagens sacerdotais conhecidas. Não era algo que se apresentava ou se vivia ‘contra’, tratava-se simplesmente de algo diferente, fortemente positivo, jovem, novo, atraente.

Alguns aspectos da categoria humana, cristã e sacerdotal de Josemaria Escrivá, que estiveram no centro dos meus primeiros contactos com o Opus Dei, merecem referência especial. A primeira experiência vivida – por isso talvez mais viva, sentida, profunda e permanente - foi uma experiência de liberdade. Não faria sentido dar pormenores dela neste momento. De todas as formas, posso dizer, sim, que foi a causa e a razão de que o Opus Dei e liberdade fossem para mim conceitos e realidades inseparáveis, desde então e sempre, de uma forma viva. Por isso a alegria que experimentei, depois, ao descobrir que a liberdade representava para Josemaria um bem particularmente precioso. Com expressão rápida e eficaz, declarava ser, com efeito, um grande amigo da liberdade, afirmando-o sem ambiguidades:

“Procurei-a e procuro-a por toda a terra, como Diógenes procurava um homem. E cada dia que passa amo-a mais, amo-a sobre todas as coisas da terra: é um tesouro que nunca saberemos apreciar suficientemente”[6].

Um amor sincero e apaixonado à liberdade, bem longe de toda a mentalidade de partido, de espírito de grupo; amor à liberdade que experimenta uma profunda repulsa por tudo o que possa revelar-se como prepotência, imposição caprichosa ou irracional; que leva a respeitar a variedade de opiniões e de pareceres razoáveis, ou pelo menos ponderados, em todos os campos do saber humano; que não se limita a tolerar a legítima pluralidade, mas que a ama e se alegra por ela; que não deseja que se imponha a ninguém o que Deus nosso Senhor deixou à decisão livre dos homens; que acredita sinceramente na força da verdade amigavelmente proposta e oferecida em liberdade, que não aprecia escolas, se elas se entendem como gaiolas que fecham e cortam as asas ao pensamento ou como moldes que uniformizam indevidamente as almas.

Como não escutar com profunda alegria Josemaria Escrivá quando na sua pregação oral afirmava que o caminho do Opus Deu é amplo e fácil de percorrer; que se pode caminhar por ele pela esquerda e pela direita, de carro ou a pé, a direito ou em zigzag, a correr ou com uma marcha mais lenta; que é um caminho, em resumo e conclusão, de liberdade, onde as almas não ficam reprimidas em esquemas fixos, comuns, universais que não têm em conta a singularidade inestimável de cada um. Como não tomar nota, com íntima satisfação, de que o Opus Dei, como tal, não faz escola nas ciências eclesiásticas, nem em filosofia nem em nenhum dos ramos do saber humano:

“Como consequência do fim exclusivamente divino da Obra, seu espírito é um espírito de liberdade, de amor à liberdade pessoal de todos os homens. E, como esse amor à liberdade é sincero e não um mero enunciado teórico, nós amamos a necessária consequência da liberdade: quer dizer, o pluralismo. No Opus Dei, o pluralismo é querido e amado; não simplesmente tolerado e de modo algum dificultado. Quando me é dado observar entre os sócios da Obra tantas ideias diversas, tantas atitudes diferentes — no que diz respeito às questões políticas, econômicas, sociais ou artísticas, etc. —, esse espetáculo me dá alegria…”[7].

Deste modo, o fundador do Opus Dei seguia na esteira do ensinamento claro dos grandes mestres da tradição cristã. A concórdia das vontades não compreende nem exige de modo algum a coincidência de opiniões, como afirma São Tomás de Aquino com frase lapidar (concordia quae est caritatis effectus est unio voluntatum, non unio opinionum)[8].

Outro aspecto fundamental da vida e da doutrina do fundador do Opus Dei, que causou uma forte impressão na minha alma de jovem seminarista e cujo influxo não cessei de sentir, foi, sem dúvida, o da radicalidade com que sabia situar as pessoas diante de Deus e o consequente caráter, fortemente pessoal, com que falava a cada um da própria santidade. De alguma maneira, Josemaria Escrivá considerava-o um aspecto fundamental do seu trabalho sacerdotal[9]. Voltando ao modo como conheci o fundador do Opus Dei nos sacerdotes que viviam o seu espírito, recordo como me faziam vibrar o tom e os modos da pregação que escutava aos sacerdotes do Opus Dei, o que facilitava que se entrasse em sintonia com o espírito forte e viril, que descobria em algum dos seus livros. Ajudavam a compreender algo que considerei sempre de importância extrema na vida espiritual: que nada nem ninguém nos pode substituir a nós nas escolhas e decisões próprias; que cada um deve assumir a responsabilidade pessoal plena ao viver a própria vocação nas circunstâncias pessoais. Na vida espiritual pode ser-se ajudado - e quanto se agradece tal ajuda! -, aconselhado, apoiado; mas, no final das contas, é sempre a própria vida, a própria santidade, a própria resposta às inspirações divinas pessoalíssimas que estão em causa. Ao fim e ao cabo, cada um encontra-se a sós com Deus nosso Senhor. Cada um tem de ter a coragem de se sentir chamado pelo seu nome próprio, de se pôr responsavelmente diante de Deus, sem esperar comodamente que outro lhe sugira o que tem de fazer. A resposta, como a vocação, como o nome próprio, é sempre irrenunciável e inevitavelmente pessoal. Evitam-se assim, as comparações, odiosas e fora do contexto, com outras pessoas; o olhar de soslaio os outros para determinar com precisão, depois, a medida certa da resposta à vocação pessoal; a vulgaridade e a uniformidade impessoais. Depois, sim, virá o momento do conselho, da partilha, da obediência rendida. Mas não há duas vocações idênticas, embora o caminho seja o mesmo. Cada um é chamado a percorrê-lo pessoalmente: o ritmo da marcha, como também as moções e as inspirações de Deus, têm necessariamente uma marca fortemente pessoal. Para cada um é um caminho novo. Por esse motivo, no Opus Dei a formação e a assistência espiritual estão ao serviço da atuação livre e responsável das pessoas:

“Cada um, com espontaneidade apostólica, agindo com completa liberdade pessoal e formando autonomamente sua consciência perante as decisões concretas que tenha de tomar, procura a perfeição cristã e esforça-se por dar testemunho cristão no seu próprio ambiente, santificando o trabalho profissional, intelectual ou manual”[10].

Com o amor à liberdade e a responsabilidade pessoal perante a vocação, outra característica da figura sacerdotal do fundador do Opus Dei ficou fortemente gravado na minha alma: a fraternidade sacerdotal.

“Esta é a nossa grande tarefa: amar os nossos irmãos sacerdotes. Temos de sentir a satisfação de ser servidores de todas as almas, mas em primeiro lugar dos sacerdotes, nossos irmãos”[11].

Tenho plena convicção de que nos meus anos de seminário aprendi a rezar, a valorizar a mortificação, a apreciar e viver a castidade e outras muitas virtudes cristãs. Dou por isso muitas graças a Deus, e nunca agradecerei suficientemente a educação ali recebida. Mas a fraternidade sacerdotal, a amizade, aprendia-a com aqueles que a viram encarnada em Josemaria Escrivá: a amizade que é afeto nobre, sincero, sacrifício gostoso, afirmação do outro, ajuda, incitamento, partilha, segurança plena de encontrar compreensão, acolhimento e escuta. A marca que aqueles sacerdotes deixaram em mim faz com que sinta particularmente a fraternidade sacerdotal, que saia espontânea a atitude positiva perante qualquer sacerdote pelo simples fato de o ser, sem que tenha importância a proveniência, a língua, a raça, a formação ou as ideias pessoais; que ame celebrar com outros sacerdotes o sacrifício Eucarístico, pela razão do nosso comum sacerdócio; que me seja particularmente odioso – é esta a expressão justa – a desconfiança sem motivos, a indiferença ou atitude receosa e circunspecta em relação a outro sacerdote, e que aprecie, pelo contrário, a franqueza e sinceridade na convivência.

A fraternidade sacerdotal, o sentido de pertença a um presbitério com o Bispo à frente, a convicção de ser “um” sacerdote diocesano, como todos os outros, um entre muitos, sem nada de particular que, enquanto sacerdote, me separe ou distinga. Um sentido vivo de pertença ao presbitério da diocese, pelo que sinto natural repugnância, instintivo repúdio ao ser considerado diferente, alheio, precisamente porque não sou nem diferente nem alheio aos interesses comuns, às diretrizes gerais, aos problemas, ao modo de ser, à idiossincrasia peculiar de um sacerdote diocesano. Sentindo-me sacerdote diocesano até à medula, compreende-se, pois, o repúdio por qualquer tentativa de ser encerrado, de fora, numa espécie deghetto, considerado parte de um grupo, membro de um partido ou facção.

Pelo contrário, do fundador do Opus Dei aprendi o sentido de pertença à diocese e, ao mesmo tempo, a viva percepção da realidade do ordo presbyterorum[12] que se abre a todos os sacerdotes, animando-os a superar qualquer egoísmo particularista e a viver a fundo a fraternidade que deriva da chamada comum ao sacerdócio; a não necessitar de nenhuma conotação acrescentada para se sentir próximo de qualquer sacerdote, para apreciá-lo verdadeiramente como irmão; a procurar a amizade de todos sem exceção, com a naturalidade e a simplicidade daquilo que flui necessariamente dos laços comuns; a viver a amizade com as decorrentes exigências do sacrifício e da disponibilidade, prontos para o serviço.

Entende-se, pois, perfeitamente que um sacerdote do Opus Dei (isto é, da Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz) sinta – uma vez mais a encarnação vital, existencial, que abarca intelecto, vontade e sentimentos! – que nada o separa dos seus irmãos sacerdotes, nem sequer, como gostava de dizer Josemaria Escrivá, o insignificante muro que pode constituir uma mortalha, o finíssimo papel com que os fumadores se exercitavam calmamente na arte de fazer cigarros. Exige, isso sim, exatamente como no caso dos demais sacerdotes, um legitimo âmbito de liberdade na sua vida de piedade, nas suas inclinações e gostos legítimos que só os que parecem amigos do partido único poderiam entender e considerar como fatores de divisão, confundindo a necessária unidade de espírito com a amorfa e incolor uniformidade igualitarista, que não respeita a magnífica, e inevitável também, diversidade das pessoas e dos seus dons.

Na entrevista ao diretor de Palabra e repetidamente citada nestas páginas, Josemaria Escrivá sintetiza o que os sacerdotes diocesanos encontram na Sociedade Sacerdotal, com estas palavras:

“Os sacerdotes diocesanos que — no uso legítimo do direito de associação — se adscrevem à Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz, fazem-no única e exclusivamente porque desejam receber essa ajuda espiritual pessoal, de maneira absolutamente compatível com os seus deveres de estado e ministério: de outro modo, essa ajuda não seria ajuda, mas sim complicação, estorvo e desordem.

O espírito do Opus Dei, com efeito, tem como característica essencial o fato de não tirar ninguém do seu lugar — cada um permaneça na vocação com a qual foi chamado (1 Cor. 6, 20), mas de levar cada um a cumprir os encargos e deveres do seu próprio estado, da sua missão na Igreja e na sociedade civil, com a maior perfeição possível. por isso, quando um sacerdote se adscreve à Obra, não abandona nem modifica em nada sua vocação diocesana — dedicação ao serviço da Igreja local a que está incardinado, plena dependência do Ordinário próprio, espiritualidade secular, união com os outros sacerdotes, etc. —; antes, pelo contrário, compromete-se a viver essa vocação com plenitude, porque sabe que deve procurar a perfeição precisamente no próprio exercício de suas obrigações sacerdotais, como sacerdote diocesano”[13].

O não tirar ninguém do seu lugar não tem somente conotações negativas, mas é eminentemente positivo: inclui amar o lugar em que se encontra, tudo o que é comum a qualquer sacerdote secular diocesano: todos os elementos que definem uma espiritualidade diocesana. A ajuda que recebe no Opus Dei leva precisamente a viver em plenitude a própria vocação diocesana (“dedicação ao serviço da Igreja local em que está incardinado, plena dependência do Ordinário, espiritualidade secular, união com os outros sacerdotes, etc.”). A relação do sacerdote com a Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz não consiste em algo acrescentado, de certo modo postiço, que tivesse como fim uma espécie de perfeição pessoal à margem da própria condição de sacerdote e da missão recebida da Igreja através das mãos do Bispo. Essa relação está, na realidade, pela sua mesma natureza, ao serviço daassunção plena, com todas as consequências, da sua própria condição. Os meios de santificação estão ao serviço desta. E a santidade que o Opus Dei proclama é justamente a santidade no exercício da própria profissão - neste caso o ministério sacerdotal -, das suas circunstâncias sociais, profissionais, familiares. Os deveres fortes estão ao serviço da ”situação” pessoal, do modo peculiar de estar no mundo e na Igreja, que temos de santificar.

Que espiritualidade tem, pois, um sacerdote secular diocesano que faz parte da Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz? A resposta exata, no meu entender, é: a mesma que qualquer outro sacerdote secular diocesano tem, com tudo o que ela integra, sem que absolutamente nada da mesma fique de fora. A espiritualidade que desejo viver é a que está de acordo com aquilo que sou, um sacerdote diocesano. Desejo e procuro viver o espírito próprio de um sacerdote diocesano, sem excluir nem uma só das suas características ou manifestações autênticas. Nunca o espírito do Opus Dei me afastou da espiritualidade própria do sacerdote. Ensinou-me, pelo contrário, uma vez e outra, a procurar a santidade no exercício do ministério sacerdotal, no cumprimento dos deveres e compromissos próprios do presbítero. A vocação de um sacerdote diocesano para o Opus Dei reforça, dizia Josemaria Escrivá, a sua condição como tal, ajuda-o a viver em plenitude a sua vocação: “não modifica nem abandona em nada, mas pelo contrário, compromete a viver plenamente essa vocação”.

Nunca me senti chamado a viver outra coisa ou de diferente maneira que os outros sacerdotes seculares que procuram a santidade no exercício do seu ministério, como pede o Concílio Vaticano II no decreto Presbyterorum ordinis[14]. Mantém, neste particular, toda a sua legitimidade o que Josemaria Escrivá dizia em geral da vocação para o Opus Dei, que considerava como uma luz que ilumina de maneira nova uma realidade pré-existente[15] ; no meu caso esta realidade prévia é a minha vocação para o sacerdócio e a minha vida sacerdotal. Por isso as marcas que o espírito do Opus Dei quer deixar mais profundamente na alma de um sacerdote pertencem ao próprio cerne, ao núcleo fundamental da existência de um presbítero diocesano: o afã de almas, que deve ser uma autêntica paixão dominante, com a vontade decidida de chegar apostolicamente ao maior número possível de pessoas; a preocupação sincera, traduzida em iniciativas concretas, pelas vocações sacerdotais e pelo seminário; a necessidade de adquirir e melhorar continuamente a preparação nas disciplinas eclesiásticas, com o desejo de ampliar a sua cultura, como meio de uma maior eficácia no próprio ministério; a obediência real e a rendida disponibilidade em relação aos encargos pastorais que o Bispo diocesano lhe quiser confiar.

A espiritualidade que sinto como própria é a espiritualidade secular e diocesana, porque sou e me sinto até à medula: um sacerdote secular e diocesano, um entre tantos outros. Quantas vezes e com que orgulho dizia o fundador do Opus Dei de si mesmo que era um sacerdote diocesano! Sirva como exemplo o que responde quando se lhe pergunta sobre os frutos da Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz:

“E os frutos de todo este trabalho para quem são? São para as Igrejas locais que estes sacerdotes servem. E com isto se alegra a minha alma de sacerdote diocesano, que tem tido, repetidas vezes, a consolação de ver com que carinho o Papa e os Bispos abençoam, desejam e favorecem esse trabalho”[16].

Para concluir tudo o que foi dito: a ajuda que recebo do Opus Dei não a sinto para nada como estranha à minha condição sacerdotal secular e diocesana; simplesmente porque não lhe é alheia ou estranha. É isto que afirmava Josemaria Escrivá com uma clareza que não deixa lugar a confusões farisaicas ou mal entendidos ingênuos. O texto é longo mas vale a pena reproduzi-lo na íntegra, porque não tem coisas a mais:

“O que estes sacerdotes [refere-se aos sacerdotes diocesanos adscritos ao Opus Dei] encontram no Opus Dei é, sobretudo, a ajuda ascética continuada que desejam receber, dentro de uma espiritualidade secular e diocesana, e independentemente das mudanças pessoais e circunstanciais que se possam verificar no governo da respectiva Igreja local. Juntam assim à direção espiritual coletiva que o Bispo dá com a sua pregação, as suas cartas pastorais, reuniões, instruções disciplinares, etc., uma direção espiritual pessoal, solicita e contínua em qualquer lugar onde se encontrarem, que completa as orientações gerais ministradas pelo próprio Bispo - respeitando-as sempre como um dever grave. Através dessa direção espiritual pessoal – tão recomendada pelo Concílio Vaticano II e pelo Magistério ordinário – fomenta-se no sacerdote a vida de piedade, a caridade pastoral, a formação doutrinal continuada, o zelo pelos apostolados diocesanos, o amor e a obediência que devem ao Ordinário próprio, a preocupação pelas vocações sacerdotais e pelo seminário, etc.[17].

José María Yanguas é Bispo de Cuenca (Espanha). Foi Professor Convidado da Universidade Pontifícia da Santa Cruz e Chefe de Seção da Congregação para os Bispos.


[1] Meditação Los pasos de Dios, 14-II-1964; cfr. A. DEL PORTILLO, Una vida para Dios, Madrid, 1992, p. 28, nota 21.

[2] Cfr. A. ARANDA, Sacerdote de Jesucristo. Sobre la misión eclesial del Beato Josemaria Escrivá, Fundador do Opus Dei, em “Romana” 17 (1993/2) 307-327.

[3] Cfr. A. VÁZQUEZ DE PRADA, Josemaria Escrivá, fundador do Opus Dei, I, Senhor, que veja, Lisboa, 2002. p. 91, nota 76.

[4] D. Laureano Castán Lacoma, bispo de Singuenza-Guadalajara (1964-1980), fala da sua fama de santidade já na década dos anos 1930-1940 (cfr. Josemaría Escrivá de Balaguer, Un hombre de Dios, Testimonios sobre el Fundador del Opus Dei, 8, Madrid 1992, p. 21). D. Francisco Peralta Ballabriga, bispo de Vitória (1955 – 1978) refere-se à sua delicadeza, afabilidade, cortesia, otimismo contagioso e alegria (cfr. Ibidem, pp. 49, 51). São muitos os que recordam a sua lealdade e amor à Igreja, bem como a sua fidelidade sem fissuras ao Magistério; entre outros, o citado D. Peralta Ballabriga (ibidem, 48), o Cardeal José Maria Bueno Monreal, Arcebispo de Sevilha (1957-1982) (cfr. Josemaria Escrivá…, cit. 3, pp. 36-38), D. Pedro Cantero Cuadrado, Bispo de Saragoça (1964-1977) (cfr. Josemaría Escrivá…, cit. 2, p. 32). D. José Maria Garcia Lahiguera, arcebispo de Valência (1969-1978) salientou a profundidade com que São Josemaria viveu as virtudes teologais, bem como a sua piedade profunda, serena e constante, o amor à Mãe de Deus e a São José (cfr. Josemaría Escrivá …, cit., 1, pp. 45-49). Outras virtudes que, que segundo estes e outros eclesiásticos e pessoas de todas as classes e condições destacaram em São Josemaria, foram a fortaleza, a pobreza e a humildade, o desprendimento, o zelo pelas almas, e o amor à justiça…

[5] O Card. Bueno Monreal relatava um fato que viveu como protagonista. Quando numa viagem a Roma, fez considerar a São Josemaria que talvez se estava exigindo demasiado aos sacerdotes diocesanos que se aproximavam da Obra, sentiu que dizia estas palavras: “Olha, não. No Opus Dei nem um mais, nem um menos dos que Deus quer que sejamos. E a chamada que Deus nos faz é de entrega total, completa, cada um dentro do seu estado, com naturalidade, mas sem concessões. Quando um sacerdote nos vem pedir que lhe demos o que lhe podemos dar, damos-lhe a espiritualidade que temos: a entrega total: sem sair do seu lugar, reforçando a sua condição diocesana, mas dando-se totalmente. Se não lhe dou isto, uma espiritualidade que ele pode seguir, que poderia dar-lhe? que pode dar o Opus Dei a um sacerdote?...” (Josemaría Escrivá…,cit. 3, pp. 43-44).

[6] É Cristo que passa, 184.

[7] Entrevistas, 67.

[8] S.Th, II-II, q. 37, a. 1c.

[9] É Cristo que passa, 99: “Sempre sempre concebi a minha atividade de sacerdote e de pastor de almas como uma tarefa dirigida a situar cada um em face das exigências totais da sua vida, ajudando as pessoas a descobrir aquilo que Deus lhes pedia em concreto, sem estabelecer qualquer limitação a essa independência santa e a essa abençoada responsabilidade individual, que são características de uma consciência cristã.”

[10] Entrevistas, 19.

[11] RHF 20.760, 765; citado por J. ECHEVARRÍA, La fraternidad sacerdotal en la vida de Mons. Escrivá de Balaguer, em “Palabra”, 239, VI-1985, p. 25; publicado também em L.F. MATEO-SECO e R. RODRÍGUEZ-OCAÑA, Sacerdotes en el Opus Dei… cit., 299.

[12] Dec. Presbyterorum ordinis, 8: “Os presbíteros, constituídos em ordem ao presbiterado mediante a ordenação, estão unidos entre eles com uma íntima fraternidade sacramental”.

[13] Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 16.

[14] Decr. Presbyterorum ordinis, 12.

[15] Com grande força evocadora e, ao mesmo tempo, com simplicidade, que resulta quase solene da cena que narra, diz São Josemaria no ponto 498 de Sulco: “Escreves-me na cozinha, junto ao fogão, Está começando a tarde. Faz frio. A teu lado, a tua irmãzinha - a última que descobriu a loucura divina de viver a fundo a sua vocação cristã - descasca batatas. Aparentemente - pensas - o seu trabalho é igual ao de antes. Contudo, há tanta diferença! - É verdade: antes “só” descascava batatas; agora, santifica-se descascando batatas.”

[16] Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 16.

[17] Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 16. O sublinhado é meu.

D. José María Yanguas