São Josemaria e o dom de línguas

São Josemaria sabia-se instrumento nas mãos de Deus. Todos os meios humanos ao seu alcance no início do Opus Dei eram o seu trabalho sacerdotal, a sua juventude e bom humor. Mas pensava em chegar a todas as almas do mundo.

No mês de Novembro de 1932, plenamente consciente da missão que Deus lhe tinha confiado, São Josemaria tirava a seguinte conclusão sobre o valor da sua pessoa diante de Deus e a tarefa que tinha pela frente: “nada, ante a maravilha que representa este fato: um instrumento pobríssimo e pecador, que projeta, sob a tua inspiração, a conquista do mundo inteiro para o seu Deus, instalado no maravilhoso observatório de um quarto interior de uma casa modesta, onde tem assento toda a incomodidade material”[1]. Conquistar o mundo para Deus, colocá-lo no cume de todas as atividades humanas, estender o Reino: um empreendimento para o qual Deus tinha escolhido um instrumento inadequado. Mas a sua humildade não o levou a desistir, porque se sabia filho de Deus. Por isso escreveu também: “Deus não precisa de mim. É uma misericórdia amorosíssima do seu Coração”[2].

A vocação recebida exigia que fosse “pai, mestre, e guia de santos”[3]; a sua mensagem devia chegar a todo o mundo, ressoar por toda a terra, movendo as almas fazendo-as sentir a proximidade de Deus e provocando reações de correspondência total ao Amor de Deus.

Filhos de Deus. - Portadores da única chama capaz de iluminar os caminhos terrenos das almas, do único fulgor em que nunca se poderão dar escuridões, penumbras ou sombras.

A mensagem espiritual que devia fazer chegar à humanidade era “velha como o Evangelho e como o Evangelho nova”: “Filhos de Deus. - Portadores da única chama capaz de iluminar os caminhos terrenos das almas, do único fulgor em que nunca se poderão dar escuridões, penumbras ou sombras. O Senhor serve-se de nós como tochas, para que essa luz ilumine... De nós depende que muitos não permaneçam em trevas, mas andem por caminhos que levam até à vida eterna.” (Forja, 1).

São Josemaria sabia-se instrumento nas mãos de Deus. Naquela época, não dispunha de outros meios humanos além do seu trabalho sacerdotal e da sua juventude e bom humor, mas já pensava chegar a todas as almas do mundo: “Apesar de me sentir vazio de virtude e de ciência (a humildade é a verdade… sem fingimento) quereria escrever uns livros de fogo, que corressem pelo mundo como chama viva pegando a sua luz e o seu calor aos homens, convertendo os pobres corações em brasas, para oferecê-los a Jesus como rubis da sua coroa de Rei[4].

Não é de estranhar, por isso, que a sua vida fosse uma contínua catequese, umas vezes oralmente, outras por escrito. Mas, além disso, tinha de chegar às consciências, a cada um, à intimidade, inclusive, mediante a letra de imprensa, em livros cujos leitores não conhecia nem chegaria a conhecer nunca. Por isso, no Prólogo do autor, na primeira página do Caminho, diz-lhe: “Lê devagar estes conselhos. Medita pausadamente estas considerações. São coisas que te digo ao ouvido, em confidência, de amigo, de irmão, de pai. E estas confidências as escuta Deus” (Caminho, Prólogo).

Não há “método” ou técnica que nos ensine este modo de falar, de mobilizar milhões de almas. A sua maneira de ensinar era a que Jesus Cristo utilizou com os apóstolos: “Que perda de tempo, e que visão tão humana, quando reduzem tudo a táticas, como se aí estivesse o segredo da eficácia. - Esquecem-se de que a ‘tática’ de Deus é a caridade, o Amor sem limites: assim preencheu Ele a distância impreenchível que o homem, com o pecado, abre entre o Céu e a terra” (Sulco, 147).

Não é possível reduzir o Amor a fórmulas ou a frases feitas, daí que procurasse imitar o Mestre: “Insisto: suplica ao Senhor que conceda aos seus filhos o ‘dom de línguas’, o dom de se fazerem entender por todos. A razão pela qual desejo este ‘dom de línguas’, podes deduzi-la das páginas do Evangelho, repletas de parábolas, de exemplos que materializam a doutrina e ilustram as coisas espirituais, sem envilecer nem degradar a palavra de Deus. Para todos - doutos e menos doutos -, é mais fácil considerar e entender a mensagem divina através dessas imagens humanas” (Forja, 895).

Como ensinava que a santidade não é para privilegiados mas pode encontrar-se na vida cotidiana, as coisas mais normais e correntes podiam servir para ilustrar as verdades mais elevadas.

Para falar sobre as coisas da Terra é preciso aprender técnicas, calcular, dispor de muitos meios… Mas a linguagem e a “tática” para levar as almas a Deus são de outro tipo, acessíveis a todos os homens, compreensíveis para qualquer língua, raça, nação de cada ouvinte, porque “todos devemos falar a mesma língua: a que nosso Pai que está nos Céus nos ensina, a língua dos diálogos de Jesus com seu Pai, a língua que se fala com o coração e com a cabeça, aquela que estamos usando agora na nossa oração. É a língua das almas contemplativas, dos homens que são espirituais por se terem apercebido da sua filiação divina; uma língua que se manifesta em mil moções da vontade, em luzes vivas do entendimento, em afetos do coração, em decisões de retidão de vida, de bem-fazer, de alegria, de paz” (É Cristo que passa, 13).

A razão da fecundidade do seu trabalho evangelizador, da sua capacidade para fazer chegar a sua mensagem, ensina-nos, em confidência, no seguinte texto: “Agradece de todo o coração ao Senhor as potências admiráveis... - e terríveis - da inteligência e da vontade, com as quais Ele quis criar-te. Admiráveis, porque te fazem semelhante a Ele; terríveis, porque há homens que as reviram contra o seu Criador. A mim, como síntese do nosso agradecimento de filhos de Deus, ocorre-me dizer, agora e sempre, a este Pai nosso: ‘Serviam!” - eu Te servirei!’ (Forja, 891).

A caridade, infundida por Deus na alma, transforma por dentro a inteligência e a vontade; dá base sobrenatural à amizade e à alegria de fazer o bem.

Levado pelo seu amor a Deus, soube colocar-se nas circunstâncias dos outros, empregando todos os meios de comunicação com eficácia, agilidade e naturalidade, sendo por isso um modelo no âmbito da comunicação. Sem contar com os modernos meios eletrônicos, que na época não existiam, os seus ensinamentos chegaram a todas as partes, tocando a consciência e o coração daqueles que as recebiam. Sabia, por experiência, que “a caridade de Cristo não é apenas um bom sentimento em relação ao próximo: não se detém no gosto pela filantropia. A caridade, infundida por Deus na alma, transforma por dentro a inteligência e a vontade; dá base sobrenatural à amizade e à alegria de fazer o bem” (É Cristo que passa, 71).

A sua voz e os seus escritos não eram um meio de comunicação anônimo, como uma agência de notícias, um jornal ou um anúncio publicitário Inclusive sem o conhecer, sem nunca o ter visto, quem o lê sabe que quem lhe fala é um amigo, um irmão, um pai, que nunca mente e que conhece as necessidades do leitor, por isso, agradece o conselho e sente-se comovido. Esta relação pessoal, íntima, fruto do amor de Deus, é o segredo da sua eficácia.


[1] Apontamentos íntimos, n. 877 (Cit. A. Vázquez de Prada, Josemaria Escrivá, t. I, São Paulo, Quadrante, p. 443).

[2] Ibidem, n. 1696. (Cit. A. Vázquez de Prada, o. c., p. 443).

[3] A. Vázquez de Prada, o. c.

[4] Forja: recolhido na Apresentação de D. Álvaro del Portillo,

Ramón Herrando