Quando Cristo passa, o homem encontra-se a si próprio, porque encontrou o seu Senhor

Quando Cristo passa, o homem encontra-se a si próprio, porque encontrou o seu Senhor

Conferência de D. Boulos Matar, Arcebispo maronita de Beirute

Quando éramos pequenos, aos 10 anos, pouco mais ou menos, os nossos pais com uma fé herdada e simples, contavam-nos que Nosso Senhor passava pelas nossas aldeias à meia-noite, na festa do Batismo do Senhor (Festa da Epifania na liturgia maronita), e por toda a terra. Nesses momentos todas as coisas se prostravam diante d’Ele, também as árvores dos bosques, exceto uma, a figueira. É possível que esta exceção tivesse arraigado entre as gentes, devido à maldição que Jesus fez descer sobre essa árvore porque não tinha frutos, ou então porque Judas se enforcara nela.

Em todo o caso lembro-me que ficava acordado até à meia-noite durante essas festas, à janela da nossa velha casa, para ver, ao vivo, a prostração das árvores diante de Jesus, à sua passagem. Nalguns anos, ventos fortes dobravam as árvores, mas sempre ficava uma que não se ajoelhava, ou era eu que o imaginava. Com a passagem dos anos compreendi o sentido dessa fé, e cheguei à certeza de que a vinda de Jesus à Terra é todo o nosso bem e o começo da nossa salvação, e que a natureza pode estar mais próxima e mais preparada para receber o seu Criador e obedecer-lhe, mais do que o homem, que frequentemente, se prostra diante de si próprio ou diante das coisas que fez: despreza a submissão e enche-se de orgulho.

A esse mundo encantado fui transportado primeiramente, pelo título do livro de São Josemaria, fundador da Prelazia do Opus Dei, como se fosse, para todos nós, um apelo para que a passagem de Deus entre nós seja ocasião de salvar a nossa vida, e conduzi-la ao seu fim último, seguindo-O, imitando-O e cumprindo os seus mandamentos. Em tudo isto, somos iluminados por Aquele que diz de Si mesmo: “Eu sou caminho, a verdade e a vida”.

Permiti-me agora, antes de abrir o livro, de comentar o seu conteúdo e de falar da sua mensagem, falar-vos do próprio autor. Porque o livro, como se vê pelo título, é também fruto do zelo do escritor, resultado da sua reflexão, e irradiação da sua personalidade. Neste sentido, a árvore que se conhece pelos seus frutos é aquela que dá os frutos que tem, e nos põe na expectativa de uma colheita proveitosa.

Comemoramos ontem o 107º aniversário do nascimento deste santo, que nasceu em Espanha, a 9 de Janeiro de 1902. Morreu em 1975, aos 73 anos de idade. Viveu cinquenta anos de sacerdócio e, ao serviço do Opus Dei, que lhe deve a sua existência, quarenta e sete anos, isto é toda uma vida. E foi no alvor da sua vida, que começaram a surgir, a pouco e pouco, os sinais de uma vocação especial, pessoal; uma missão de que Deus o encarregou.

Esta missão caracteriza-se, do nosso ponto de vista, de duas particularidades principais. A primeira é o anúncio do Evangelho, a pregação e a direção espiritual, e também a celebração dos sacramentos como se faz numa paróquia, tais como o Batismo, a Confirmação, o Matrimônio e o acompanhamento dos doentes no seu sofrimento. O homem que tinha esta vocação viu, por inspiração divina, que devia consagrar-se, como o apóstolo Paulo, de quem celebramos este ano os dois mil anos do nascimento, o qual disse de si mesmo “Cristo enviou-me a pregar e não a batizar”. É o desejo de acompanhar as almas no seu caminho para Deus; as almas que procuram ajuda quando Cristo passa nas suas vidas. É então, quando brilha sobre elas o sol da graça e do amor e começam a progredir no caminho do Senhor, que é a razão da sua alegria, que lhes apresenta a boa nova do Reino de Deus.

A segunda característica desta vocação está na grande importância dada ao significado da santidade e o viver essa santidade não só na vida sacerdotal, mas também na vida de cada crente, independentemente da situação social a que pertence. A santidade, em São Josemaria, é uma chamada universal a todos os fiéis, e não uma vocação específica para os consagrados. Realiza-se através da vida corrente, e no cumprimento do dever de cada um. Este dever é já em si mesmo um caminho de santidade.

Esta santidade revelou-se uma necessidade urgente nos meados do século XX, na espiritualidade de São Josemaria, e no Concílio Vaticano II, que apresentou uma imagem do cristianismo reunindo todos os seus membros no Povo de Deus. Esta imagem está clara nos Atos dos Apóstolos e nas epístolas de Paulo, que não escrevia só para os sacerdotes, mas para todos os fiéis, em cada cidade, dirigindo-se a eles como santos abençoados por Deus sem exceção. A espiritualidade emanada das ordens religiosas, tão eficaz na vida da Igreja, dava a impressão de que a santidade estava reservada somente para os que entram nessas ordens e congregações, e que o trabalho do comum dos mortais não tem relação nenhuma com a santidade. Ou então que a santidade consiste em sair do mundo, e não em santificá-lo em todos os âmbitos pessoais, familiares, sociais, políticos, internacionais… Surge aqui o Concílio Vaticano II para iluminar a missão dos leigos na Igreja. Não há dúvida de que o trabalho de São Josemaria foi nesta direção antes e depois do Concílio, e de que o seu trabalho veio por inspiração da Igreja. Também ele, por sua vez, a inspirou fortemente.

Isto é o que podemos dizer do autor deste livro que nos é apresentado por Mons. Jesus Delgado, nosso querido amigo, que bem conheceis e de quem sois amigo, responsável pelo Opus Dei no Líbano, na sua capital Beirute, e em todo o território libanês. E, se eu não consegui apresentar bem o escritor, cabe-lhe a ele acrescentar o que falta, graças ao seu conhecimento especial, ele que tem a instituição no coração, e a dirige no nosso país, realizando assim o sonho do santo fundador de realizar a sua missão nas costas libanesas. Aproveito de novo esta ocasião para acolher esta espiritualidade, e os que a vivem, lutando no interior da Igreja pelo nosso país, pelo nosso povo e pela missão única do Líbano nesta região do mundo.

Quanto ao livro de que estamos a falar, trata-se de um conjunto de homilias, seguindo o ano litúrgico, desde a preparação do Nascimento do Salvador - que Ele seja glorificado! -, passando pela Epifania, pela sua pregação, pela Quaresma, que prepara a celebração do memorial da Morte e Ressurreição, e pelo solene início da Igreja no Pentecostes; chegando à festa da Assunção da Santíssima Virgem, e terminando com a festa do Cristo Rei, como se esta festa fosse um ponto de chegada, sempre desejada, celebrada no final de Outubro, ao terminar cada ano litúrgico, na expectativa da grande festa, na vinda de Cristo, e no cumprimento do seu reinado sobre todo o Universo.

O ano litúrgico, através das grandes festas do Senhor, é no fundo, uma ocasião que se nos apresenta para viver a nossa fé, a nossa esperança e a nossa caridade. E estas são as graças divinas que nos foram dadas desde o Batismo e a Confirmação em Cristo. Não quero fazer comparações entre a linha ascendente da vida pessoal de cada homem, e a linha circular que se vive ano após ano, o que em antropologia se designa por dialética entre o dado fundamental, o equivalente ao mito, e o celebrado nos dias de festa, a que se dá o nome de rito.

Mas a Igreja quis, na sucessão das festas, todos os anos, fazer-nos penetrar no mistério de Cristo, durante toda a nossa vida, ou melhor, fazer entrar toda a nossa vida no mistério de Cristo. Assim, estas festas chegam a ser estações sucessivas na nossa vida, em que ganhamos força para continuar a marcha no nosso longo caminhar até ao fim último da existência. Nestas estações encontraremos Cristo e assim não nos desviaremos. Mas se nos desviarmos, poderemos voltar, pelo arrependimento e pela Confissão. Retomaremos assim o grande caminho da vida, corrigiremos o rumo e continuaremos de novo no sentido certo.

Depois destas primeiras considerações sobre o livro, diremos duas palavras sobre o estilo do autor que se caracteriza pela profundidade teológica e pela relação entre o Evangelho e a vida, utilizando uma linguagem ao alcance de toda a gente, e começamos o comentário dos sucessivos capítulos.

Encontrar-nos-emos, assim, mergulhados nos acontecimentos divinos e tomados pela graça que Deus põe à nossa disposição para deles vivermos. O autor diz que o ano litúrgico é o caminho de Deus. Nós empreendemos esse caminho para andarmos com toda a serenidade. Mas o autor recorda-nos diretamente que, a santidade (embora no meio da vida corrente) não se realiza efetivamente pela indiferença e pelo deixar-se levar, mas por estar vigilante e pelo sentido de responsabilidade. Se Deus nos fala, por exemplo, devemos responder-lhe, e pôr as nossas almas ao serviço do Evangelho. Porque são os cristãos quem completam a ação dos apóstolos; e que os manterá no caminho de Deus, será a aceitação da sua Palavra em cada momento, e a participação eficaz e contínua nos mistérios divinos.

Esta ligação à Palavra Divina e à Eucaristia convertem-se numa parte da nossa vida e da nossa personalidade. Deste modo, o cristão é o homem da escuta, do dom de si, do estar sempre preparado, do serviço por amor a Deus. É assim que o autor ao falar-nos do Natal nos convida a ajoelharmo-nos diante do Menino no berço, e a agradecer ao Céu por ter vindo à terra. Também nos recorda a humildade de Deus, e todo o bem que Ele quer para nós através dessa humildade. Cristo veio para servir, e se não O imitamos nessa virtude o nosso vínculo com Ele torna-se afetivo, mas não eficaz. E o autor está convencido de que somos chamados a vincular-nos com Cristo, para fazer o seu trabalho e cumprir a vontade do Pai, como o fez Jesus, e isso todos os dias, em todas as ocasiões, sejam quais forem as circunstâncias.

Com a chegada do Natal, o autor contempla a Sagrada Família, e daí fala a cada família cristã, e de como devem parecer-se na santidade à Primeira Família, a Família ideal. Chama a atenção dizendo que a imitação de Cristo não será dura, nem tão pouco fácil. E realmente temos necessidade, na nossa vida, de uma força divina, que nos ponha em estado de poder fazer o bem, porque a obra humana é também obra divina. A partir deste princípio, São Josemaria penetra na contemplação de São José e do rosto de Maria, afirmando que José é o modelo do servidor fiel, graças à sua vida corrente e à obediência total e generosa à vontade divina. José foi mestre de Jesus e seu servidor, sempre disposto para defendê-lo, cumprindo tudo isto alegremente e com uma caridade perfeita que orienta a sua vida e as suas ações. São Josemaria Escrivá ensina-nos neste livro e em todos os seus escritos, que os santos são o nosso modelo perfeito, próximos de nós, e filhos de Deus. Se contemplarmos a sua maneira de agir, a nossa vida melhorará e afastar-se-á do mal.

Depois do ciclo do Natal, seguindo o ano litúrgico, chega ao da Quaresma, e à preparação da festa da Páscoa. Mas quero assinalar que nesta rápida leitura não apresento diante de vós todos os tesouros do livro, dado que o meu papel nesta intervenção consiste particularmente em vos convidar a descobrir pessoalmente esses tesouros, lendo-os e meditando-os. O autor diz-nos que a Quaresma é um tempo de regresso a Deus. Não é, pois, uma estação, mas uma ocasião de conversão. É um tempo abençoado, e, tempo de adesão fiel à obediência de Cristo para viver segundo os seus mandamentos. Por isso o escritor fala-nos das tentações vividas por Cristo durante o seu jejum e preparação para a sua missão solene. São tentações na obediência ao Pai e na liberdade. Elas evitam afundar-nos nas riquezas do mundo que nos asfixiam. A partir desta meditação, São Josemaria anima-nos a vencer, também nós, as tentações por que passamos, e a não nos afogarmos no mundo, mas a colocarmos todas as coisas deste mundo no seu justo lugar. Assim pois, o caminho de Cristo não é um simples passeio, mas uma luta e uma vitória, que nos levam a difundir o perfume do amor. E assim se descobre que a vitória passa pela cruz e pelo sacrifício unidos a Cristo crucificado e ressuscitado.

Concluindo, esta meditação do período de Quaresma conduz-nos à meditação seguinte, ao valor da morte de Cristo e da sua Ressurreição. O autor salienta aqui uma verdade essencial: a morte de Cristo é um caminho para o cristão, e a salvação segura. Não é isso que se canta à Virgem Maria, na nossa oração maronita, na noite de Sexta-feira Santa, dizendo: “Que a morte do Teu Filho dê vida aos que a pedem”? A morte de Cristo converte-se, pois, para nós, em força para a realização plena da nossa vida. E para isso Deus não nega a nossa liberdade, nem muda a nossa fraqueza de um modo extraordinário, mas respeita essa liberdade e conhece essa fraqueza. Pela sua morte e pelo seu sacrifício extremo dá-nos a capacidade de um amor tão grande que podemos vencer a nossa debilidade. A vitória de Cristo na Ressurreição impele-nos para a vitória na caridade, que é capaz de tudo em nós. O Gólgota é caminho para a caridade, e por isso também caminho de salvação.

Depois o autor, seguindo o ano litúrgico, chega ao tempo do Pentecostes, convidando-nos então a compreender bem o sentido do apostolado cristão, que foi o que aconteceu aos apóstolos que corresponderam totalmente à sua missão, no dia de Pentecostes pela força do Espírito Santo. Poderá celebrar-se o Pentecostes e o início da Igreja sem aprofundar no espírito do cristianismo e da sua missão? O autor apresenta a questão ao mundo atual, com as suas dificuldades espirituais, a todos os níveis, dizendo: “Cristo terá fracassado, depois de dois mil anos de vida da Igreja que se seguiram aos seus primeiros impulsos?” A esta pergunta responde claramente: “Não, Cristo não fracassou”. A seguir declara que devemos, em todo o momento, obedecer ao Espírito Santo, que é capaz de criar o mundo de novo e de mudar a face da terra.

Do Espírito Santo e da sua ação na terra, passa o autor à consideração do papel da Virgem Maria na vida da Igreja e da sua missão. Diz que Maria constrói a Igreja continuamente, porque ela reúne os seus filhos e os une à Cabeça, que é o seu Filho Jesus, e une-os entre eles como membros do único Corpo Místico. A Mãe de Cristo é também a Mãe dos cristãos. Aprendemos assim a ser filhos de Maria, que se inclina para nós com amor. É então que vivemos com Ela uma intimidade espiritual, fazendo entrar o calor nos nossos corações. Por esta filiação seremos impelidos para a vida apostólica, com Maria, e por sua intercessão.

Finalmente o autor conduz-nos à festa de Cristo Rei, essa festa que profetiza o fim do mundo, em que o Senhor reúne os bons à sua direita e os maus à esquerda, e julga o mundo inteiro. Mas antes disso, diz o autor, pede-se que Cristo reine sobre nós, seus servidores e apóstolos, e que aceitemos este Rei com amor. O mundo não quer o reino de Cristo, porque tem os seus projetos. E o seu modo de vida. Mas, tarde ou cedo, estes planos esvaziam-se de humanidade, e voltam-se contra os que os levam a cabo. Em face de isto, os que amam a Cristo, triunfarão graças ao seu amor, e o Reino de Deus crescerá em liberdade e em força, a até que tudo se cumpra.

No final da minha intervenção quereria mencionar umas palavras deste santo escritor, com que termina o seu livro, dizendo: “Eu preguei durante toda a minha vida inteira a liberdade pessoal, unida à responsabilidade pessoal. Procurei como Diógenes procurava um homem”. Neste sentido nós fazemos o que podemos, e Deus completa em nós, e conosco, a sua criação e a sua vontade. Também o autor recomenda a liberdade responsável para todos, declarando que o Reino de Deus será levado a cabo graças a essa liberdade, a essa responsabilidade e à graça de Deus que tudo pode. O livro termina com um ato de fé em Deus e no homem que, submetido à vontade de Deus, se dirige pelo caminho de Deus ao Reino dos Céus.

Em conclusão, quando Cristo passa, a terra floresce, o homem encontra-se a si mesmo, porque encontrou o seu Senhor.

Conferência proferida por D. Boulos Matar, Arcebispo Maronita de Beirute, na apresentação da tradução para o árabe de Cristo que passa, a 10 de Janeiro de 2009.