"Cristo, minha esperança, ressuscitou!"

Neste artigo publicaremos todas as palavras do Santo Padre durante a Semana Santa. Última atualização: Domingo, 13 de abril.

5 de abril – Domingo de Ramos

Homilia da Santa Missa

Angelus

8 de abril - Audiência

9 de abril – Quinta-feira Santa

10 de abril – Sexta-feira Santa

• Celebração da Paixão do Senhor

Via-Sacra

11 de abril – Sábado Santo, Vigília Pascal na Noite Santa

12 de abril – Domingo de Páscoa

• Missa do Domingo de Páscoa e da Ressurreição do Senhor

• Bênção "Urbi et Orbi"

13 de abril: Regina Coeli


Homilia Domingo de Ramos

Jesus «esvaziou-Se a Si mesmo, tomando a condição de servo» (Flp 2, 7). Deixemo-nos introduzir por estas palavras do apóstolo Paulo nos dias da Semana Santa em que a Palavra de Deus, quase como um refrão, nos mostra Jesus como servo: na Quinta-feira Santa, é o servo que lava os pés aos discípulos; na Sexta-feira Santa, é apresentado como o servo sofredor e vitorioso (cf. Is 52, 13); e, já amanhã, ouvimos Isaías profetizar acerca d’Ele: «Eis o meu servo que Eu amparo» (42, 1). Deus salvou-nos, servindo-nos. Geralmente pensamos que somos nós que servimos a Deus. Mas não; foi Ele que nos serviu gratuitamente, porque nos amou primeiro. É difícil amar, sem ser amado; e é ainda mais difícil servir, se não nos deixamos servir por Deus.

Uma pergunta: e como nos serviu o Senhor? Dando a sua vida por nós. Somos queridos a seus olhos, mas custamos-Lhe caro. Santa Ângela de Foligno testemunhou que ouviu de Jesus estas palavras: «Amar-te não foi uma brincadeira». O seu amor levou-O a sacrificar-Se por nós, a tomar sobre Si todo o nosso mal. É algo que nos deixa sem palavras: Deus salvou-nos, deixando que o nosso mal se encarniçasse sobre Ele: sem reagir, somente com a humildade, paciência e obediência do servo, exclusivamente com a força do amor. E o Paisustentou o serviço de Jesus: não desbaratou o mal que se abatia sobre Ele, mas sustentou o seu sofrimento, para que o nosso mal fosse vencido apenas com o bem, para que fosse completamente atravessado pelo amor. Em toda a sua profundidade.

O Senhor serviu-nos até ao ponto de experimentar as situações mais dolorosas para quem ama: a traição e o abandono.

A traição. Jesus sofreu a traição do discípulo que O vendeu e do discípulo que O renegou. Foi traído pela multidão que primeiro clamava hosana, e depois «seja crucificado!» (Mt 27, 22). Foi traído pela instituição religiosa que O condenou injustamente, e pela instituição política que lavou as mãos. Pensemos nas traições, pequenas ou grandes, que sofremos na vida. É terrível quando se descobre que a confiança deposta foi burlada. No fundo do coração, nasce uma tal decepção que a vida parece deixar de ter sentido. É assim, porque nascemos para ser amados e para amar, e o mais doloroso é ser traído por quem nos prometera ser leal e solidário. Não podemos sequer imaginar como terá sido doloroso para Deus, que é amor.

Olhemos dentro nós mesmos; se formos sinceros para conosco, veremos as nossas infidelidades. Tanta falsidade, hipocrisia e fingimento! Tantas boas intenções traídas! Tantas promessas quebradas! Tantos propósitos esmorecidos! O Senhor conhece melhor do que nós o nosso coração; sabe como somos fracos e inconstantes, quantas vezes caímos, quanto nos custa levantar e como é difícil sanar certas feridas. E que fez Ele para nos ajudar, para nos servir? Aquilo que dissera através do profeta: «Curarei a sua infidelidade, amá-los-ei de todo o coração» (Os 14, 5). Curou-nos, tomando sobre Si as nossas infidelidades, removendo as nossas traições. Assim nós, em vez de desanimarmos com medo de não ser capazes, podemos levantar o olhar para o Crucificado, receber o seu abraço e dizer: «Olha! A minha infidelidade está ali. Fostes Vós, Jesus, que pegastes nela. Abris-me os braços, servis-me com o vosso amor, continuais a amparar-me... Assim poderei seguir em frente!»

O abandono. Segundo o Evangelho de hoje, na cruz, Jesus diz uma frase, uma apenas: «Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?» (Mt 27, 46). É uma frase impressionante. Jesus sofrera o abandono dos seus, que fugiram. Restava-Lhe, porém, o Pai. Agora, no abismo da solidão, pela primeira vez designa-O pelo nome genérico de «Deus». E clama, «com voz forte», «porquê», o «porquê» mais dilacerante: «Porque Me abandonaste também Tu?» Na realidade, trata-se das palavras de um Salmo (cf. 22, 2), que nos dizem como Jesus levou à oração inclusive a extrema desolação. Mas, a verdade é que Ele a experimentou: experimentou o maior abandono, que os Evangelhos atestam reproduzindo as suas palavras originais.

Porquê tudo isto? Uma vez mais… por nós, para servir-nos. Porque quando nos sentimos encurralados, quando nos encontramos num beco sem saída, sem luz nem via de saída, quando parece que nem Deus responde, lembremo-nos que não estamos sozinhos. Jesus experimentou o abandono total, a situação mais estranha para Ele, a fim de ser em tudo solidário conosco. Fê-lo por mim, por ti, por todos nós; fê-lo para nos dizer: «Não temas! Não estás sozinho. Experimentei toda a tua desolação para estar sempre ao teu lado». Eis o ponto até onde nos serviu Jesus, descendo ao abismo dos nossos sofrimentos mais atrozes, até à traição e ao abandono. Hoje, no drama da pandemia, perante tantas certezas que se desmoronam, diante de tantas expetativas traídas, no sentido de abandono que nos aperta o coração, Jesus diz a cada um: «Coragem! Abre o coração ao meu amor. Sentirás a consolação de Deus, que te sustenta».

Queridos irmãos e irmãs, que podemos fazer vendo Deus que nos serviu até experimentar a traição e o abandono? Podemos não trair aquilo para que fomos criados, nem abandonar o que conta. Estamos no mundo, para amar a Ele e aos outros: o resto passa, isto permanece. O drama que estamos a atravessar neste período impele-nos a levar a sério o que é sério, a não nos perdermos em coisas de pouco valor; a redescobrir que a vida não serve, se não se serve. Porque a vida mede-se pelo amor. Então, nestes dias da Semana Santa, em casa, permaneçamos diante do Crucificado – contemplai, contemplai o Crucificado! –, medida do amor de Deus por nós. Diante de Deus, que nos serve até dar a vida, contemplando o Crucificado peçamos a graça de viver para servir. Procuremos contactar quem sofre, quem está sozinho e necessitado. Não pensemos só naquilo que nos falta; pensemos no bem que podemos fazer.

Eis o meu servo que Eu sustento. O Pai, que sustentou Jesus na Paixão, anima-nos, também a nós, no serviço. É certo que amar, rezar, perdoar, cuidar dos outros, tanto em família como na sociedade, pode custar; pode parecer uma via-sacra. Mas a senda do serviço é o caminho vencedor, que nos salvou e salva, que nos salva a vida. Gostaria de o dizer especialmente aos jovens, neste Dia que, há 35 anos, lhes é dedicado. Queridos amigos, olhai para os verdadeiros heróis que vêm à luz nestes dias: não são aqueles que têm fama, dinheiro e sucesso, mas aqueles que se oferecem para servir os outros. Senti-vos chamados a arriscar a vida. Não tenhais medo de a gastar por Deus e pelos outros! Lucrareis… Porque a vida é um dom que se recebe doando-se. E porque a maior alegria é dizer sim ao amor, sem se nem mas... Dizer sim ao amor, sem se nem mas, como fez Jesus por nós.

Angelus - Domingo de Ramos


Quarta - feira Santa - Audiência

Amados irmãos e irmãs, bom dia!

Nestas semanas de apreensão devido à pandemia que está a fazer o mundo sofrer tanto, entre as muitas perguntas que nos fazemos, pode haver também algumas sobre Deus: o que faz Ele face à nossa dor? Onde está Ele quando tudo corre mal? Porque é que Ele não resolve os nossos problemas rapidamente? Estas são perguntas que fazemos sobre Deus.

Somos ajudados pela história da Paixão de Jesus, que nos acompanha nestes dias santos. Também nela, de facto, as questões são tantas. O povo, depois de ter acolhido Jesus triunfantemente em Jerusalém, perguntou-se se ele finalmente o libertaria dos seus inimigos (cf.Lc 24, 21). Esperavam um Messias poderoso, triunfante, com uma espada. Em vez disso, chega um manso e humilde de coração, convidando à conversão e à misericórdia. E foi a precisamente multidão que o tinha aclamado quem bradou: «Seja crucificado!» (Mt 27, 23). Aqueles que o seguiam, confusos e assustados, abandonaram-no. Eles pensaram: se este é o destino de Jesus, não é Ele o Messias, porque Deus é forte, Deus é invencível.

Mas, se continuarmos a ler a história da Paixão, encontramos um facto surpreendente. Quando Jesus morre, o centurião romano que não era crente, não era judeu, mas pagão, que o tinha visto sofrer na cruz, o tinha ouvido perdoar a todos, que tinha constatado o seu amor sem medida, confessa: "Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus" (Mc 15, 39). Ele diz exatamente o oposto dos outros. Ele diz que Deus está ali, que é verdadeiramente Deus.

Hoje podemos perguntar-nos: qual é a verdadeira face de Deus? Normalmente projetamos n’Ele aquilo que somos, até ao limite do nosso poder: o nosso sucesso, o nosso sentido de justiça e até a nossa indignação. Mas o Evangelho diz-nos que Deus não é assim. Ele é diferente e nós não O podíamos conhecer com as nossas próprias forças. Foi por isso que ele se aproximou de nós, veio ao nosso encontro e precisamente na Páscoa se revelou completamente. E onde é que ele se revelou completamente? Na cruz. Nela aprendemos os traços do rosto de Deus. Não esqueçamos, irmãos e irmãs, que a cruz é a cátedra de Deus. Far-nos-á bem olhar para o Crucificado em silêncio e ver quem é o nosso Senhor: é Aquele que não aponta o dedo contra ninguém, nem sequer contra aqueles que o crucificam, mas abre os braços a todos; que não nos esmaga com a sua glória, mas deixa-se despojar por nós; que não nos ama com palavras, mas nos dá vida em silêncio; que não nos força, mas nos liberta; que não nos trata como estranhos, mas assume sobre si o nosso mal, assume sobre si os nossos pecados. E isto, para nos libertar dos preconceitos acerca de Deus, olhemos para o Crucificado. E depois abramos o Evangelho. Nestes dias, todos em quarentena e em casa, fechados, peguemos nestas duas coisas nas nossas mãos: o Crucifixo, olhemos para ele; e abramos o Evangelho. Isto será para nós — digamos assim — como uma grande liturgia doméstica, porque, nestes dias, não podemos ir à igreja. Crucifixo e Evangelho!

No Evangelho lemos que quando as pessoas procuram Jesus para O fazer rei, por exemplo, depois da multiplicação dos pães, Ele parte (cf.Jo 6, 15). E quando os demónios querem revelar a sua majestade divina, ele silencia-os (cf.Mc 1, 24-25). Porquê? Porque Jesus não quer ser mal interpretado, não quer que as pessoas confundam o verdadeiro Deus, que é amor humilde, com um deus falso, um deus mundano que dá espetáculo e se impõe pela força. Ele não é um ídolo. Ele é Deus que se fez homem, como cada um de nós, e se expressa como homem, mas com a força da sua divindade. Em vez disso, quando é solenemente proclamada no Evangelho a identidade de Jesus? Quando o centurião diz: "Verdadeiramente ele era o Filho de Deus". Ali está escrito, acabou de doar a sua vida na cruz, portanto já não nos podemos enganar: vê-se que Deus é omnipotente no amor, e não de qualquer outra forma. É a sua natureza, porque é assim que ele é feito. Ele é Amor.

Pode-se objetar: “Para que quero eu um Deus tão fraco, que morre? Eu preferia um deus forte, um deus poderoso”! Mas sabe, o poder deste mundo passa, enquanto o amor permanece. Só o amor preserva a vida que temos, porque abraça as nossas fragilidades e transforma-as. É o amor de Deus que na Páscoa curou o nosso pecado com o seu perdão, que fez da morte uma passagem de vida, que transformou o nosso medo em confiança, a nossa angústia em esperança. A Páscoa diz-nos que Deus pode transformar tudo em bem. Que com Ele podemos verdadeiramente confiar que tudo correrá bem. E isto não é uma ilusão, porque a morte e a ressurreição de Jesus não são uma ilusão: foram uma verdade! É por isso que na manhã da Páscoa nos é dito: "Não tenhais medo!" (cf.Mt 28, 5). E as questões angustiantes sobre o mal não desaparecem de repente, mas encontram no Ressuscitado a base sólida que nos permite não naufragar.

Estimados irmãos e irmãs, Jesus mudou a história ao aproximar-se de nós e fez dela, embora ainda marcada pelo mal, uma história de salvação. Ao oferecer a sua vida na cruz, Jesus também venceu a morte. Do coração aberto do Crucificado, o amor de Deus chega a cada um de nós. Podemos mudar as nossas histórias aproximando-nos d’Ele, aceitando a salvação que Ele nos oferece. Irmãos e irmãs, abramos-lhe o coração em oração esta semana, nestes dias: com o Crucifixo e com o Evangelho. Não vos esqueçais: Crucifixo e Evangelho. Esta será a liturgia doméstica. Abramos-lhe todo o nosso coração na oração, deixemos que o seu olhar esteja sobre nós e compreenderemos que não estamos sozinhos, mas que somos amados, porque o Senhor não nos abandona e nunca nos esquece. E com estes pensamentos, desejo-vos uma Semana Santa e uma Páscoa Santa.


Quinta-feita Santa - Missa In Coena Domini

Basílica de São Pedro

Quinta-feira Santa, 9 de abril de 2020

A Eucaristia, o serviço, a unção: eis a realidade que vivemos hoje, nesta celebração. O Senhor quer ficar conosco na Eucaristia, e nós tornamo-nos tabernáculos permanentes do Senhor. Trazemos conosco o Senhor, a ponto de Ele próprio nos dizer que, se não comermos o seu Corpo e não bebermos o seu Sangue, não entraremos no Reino dos Céus. Este é o mistério do Pão e do Vinho, do Senhor conosco, em nós, dentro de nós.

E o sacerdócio. Hoje gostaria de estar perto dos sacerdotes, todos os sacerdotes, desde o último ordenado até ao Papa. Todos somos sacerdotes. Os bispos, todos... Fomos ungidos, ungidos pelo Senhor; ungidos para fazer a Eucaristia, ungidos para servir.

Hoje não houve a Missa Crismal (espero que a possamos celebrar antes de Pentecostes; caso contrário, teremos que adiá-la para o próximo ano), mas não posso deixar passar esta Missa sem recordar os sacerdotes. Os sacerdotes, que oferecem a vida pelo Senhor; os sacerdotes que são servos. Nestes dias, aqui na Itália, morreram mais de sessenta, infectados ao prestar cuidados aos doentes nos hospitais e também aos médicos, aos enfermeiros, às enfermeiras... São “os santos da porta do lado”, sacerdotes que, servindo, deram a vida. E penso naqueles que estão longe. Hoje recebi a carta de um sacerdote, capelão duma prisão, distante, que conta como vive esta Semana Santa com os reclusos. Um franciscano. Sacerdotes que vão levar o Evangelho lá longe; e lá morrem. Dizia um bispo que a primeira coisa que fazia, quando chegava a estes lugares de missão, era ir ao cemitério, ao túmulo dos sacerdotes que lá deixaram a vida, ainda jovens, pela insalubridade local [as doenças locais]: não estavam preparados, eles não tinham os anticorpos. Ninguém sabe o seu nome: os sacerdotes anônimos. Os párocos de aldeia, que são párocos de quatro, cinco, sete paróquias, na montanha, e se deslocam de uma para a outra, que conhecem o povo... Uma vez dizia-me um que sabia o nome de todas as pessoas das paróquias. “Sério?” – perguntei-lhe. Retorquiu-me: “Até o nome dos cachorros”! Conhecem a todos... A proximidade sacerdotal. Bons, bons sacerdotes!

Hoje tenho-os muito presente no meu coração, e levo-os ao altar. Sacerdotes caluniados. Nos nossos dias sucede, com frequência, não poderem caminhar pela rua sem ter de ouvir coisas ruins que lhes dizem, relativas ao drama vivido com a descoberta dos sacerdotes que fizeram coisas ruins. Diziam-me alguns que não podem sair de casa com o clergyman, porque os insultam; e eles continuam. Sacerdotes pecadores, que, com os bispos pecadores e o Papa pecador, não se esquecem de pedir perdão e aprendem a perdoar, porque sabem que precisam pedir perdão e perdoar. Todos somos pecadores. Sacerdotes que sofrem crises, que não sabem como fazer, estão na escuridão...

Hoje todos vocês, irmãos sacerdotes, estão comigo no altar; vocês, consagrados. Digo apenas uma coisa: não sejam teimosos como Pedro; deixem lavar os seus pés. O Senhor é o seu servo; Ele está junto de vocês para lhes dar força, para lavar os seus pés.

E assim, com esta consciência da necessidade de ser lavados, sejam grandes perdoadores! Perdoem! Coração com grande generosidade no perdão. É a medida com que seremos medidos: como você perdoar, será perdoado. Será a mesma medida. Não tenha medo de perdoar. Às vezes surgem-nos dúvidas... Olhe para Cristo [contemple o Crucificado]. N’Ele, temos o perdão de todos. Sejam corajosos… mesmo no arriscar, no perdoar, para consolar. E se, naquele momento, não puderem dar um perdão sacramental, pelo menos deem a consolação de um irmão que acompanha e deixa a porta aberta para que [aquela pessoa] volte.

Agradeço a Deus pela graça do sacerdócio; todos nós [agradecemos]. Agradeço a Deus por vocês, sacerdotes. Jesus ama-os! Pede apenas que deixem lavar os seus pés.


Sexta-feira da Paixão - Texto integral da pregação do Fr. Raniero Cantalamessa

Basílica de São Pedro

"São Gregório Magno dizia que a Escritura cum legentibus crescit, cresce com aqueles que a leem ( Moralia in Iob, XX,1.). Exprime significados sempre novos segundo as perguntas que o homem traz no coração ao lê-la. E nós, neste ano, lemos a narrativa da Paixão com uma pergunta – melhor, com um grito – no coração que se levanta de toda a terra. Devemos procurar colher a resposta que a palavra de Deus lhe dá.

O que acabamos de escutar é a narrativa do mal objetivamente maior jamais cometido na terra. Nós podemos olhar para ele de dois ângulos diversos: ou pela frente, ou por trás, isto é, ou pelas suas causas, ou pelos seus efeitos. Se nos detemos nas causas históricas da morte de Cristo, nós nos confundimos e cada um será tentado em dizer como Pilatos: “Eu não sou responsável pelo sangue deste homem” (Mt 27,24). A cruz é melhor compreendida pelos seus efeitos do que pelas suas causas. E quais foram os efeitos da morte de Cristo? Justificados pela fé nele, reconciliados e em paz com Deus, replenos de esperança de uma vida eterna! (cf. Rom 5,1-5)

Mas há um efeito que a situação em ato nos ajuda a colher em particular. A cruz de Cristo mudou o sentido da dor e do sofrimento humano. De todo sofrimento, físico e moral. Ela não é mais um castigo, uma maldição. Foi redimida pela raiz, quando o Filho de Deus a tomou sobre si. Qual é a prova mais segura de que a bebida que alguém lhe oferece não está envenenada? É se ele bebe em sua frente do mesmo copo. Assim Deus fez: na cruz bebeu, ao lado do mundo, do cálice da dor até a borra. Mostrou assim que ele não está envenenado, mas que há uma pérola em seu fundo.

E não só a dor de quem tem a fé, mas toda dor humana. Ele morreu por todos. “Quando for elevado da terra – dissera –, atrairei todos a mim” (Jo 12,32). Todos, não somente alguns! “Sofrer – escrevia São João Paulo II do seu leito no hospital após o atentado – significa tornar-se particularmente receptivo, particularmente aberto à ação das forças salvíficas de Deus, oferecidas em Cristo à humanidade”(Salvifici doloris, n. 23.). Graças à cruz de Cristo, o sofrimento se tornou também ele, à sua maneira, uma espécie de “sacramento universal de salvação” para o gênero humano.

* * *

Qual é a luz que tudo isso lança sobre a situação dramática que a humanidade está vivendo? Também aqui, mais do que para as causas, devemos olhar para os efeitos. Não apenas os negativos, dos quais ouvimos todo dia as tristes manchetes, mas também os positivos, que somente uma observação mais atenta nos ajudar a colher.

A pandemia de corona vírus nos despertou bruscamente do perigo maior que sempre correram os indivíduos e a humanidade, o do delírio de onipotência. Temos a ocasião – escreveu um conhecido Rabino judeu – de celebrar este ano um especial êxodo pascal, o “do exílio da consciência”(Yaakov Yitzhak Biderman). Bastou o menor e mais informe elemento da natureza, um vírus, para nos recordar que somos mortais, que o poderio militar e a tecnologia não bastam para nos salvar. “Não dura muito o homem rico e poderoso: – diz um salmo da Bíblia – é semelhante ao gado gordo que se abate” (Sl 49,21). E é verdade!

Enquanto pintava os afrescos da catedral de São Paulo em Londres, o pintor James Thornhill, a um certo ponto, foi tomado por tanto entusiasmo por um afresco seu que, afastando-se para vê-lo melhor, não percebia que quase despencava no vão do andaime. Um assistente, horrorizado, entendeu que um grito de chamada teria apenas acelerado o desastre. Sem pensar duas vezes, molhou um pincel na tinta e o arremessou contra o afresco. O mestre, pasmo, deu um passo adiante. A sua obra estava comprometida, mas ele estava salvo.

Assim Deus às vezes faz conosco: confunde os nossos projetos e a nossa tranquilidade, para nos salvar do abismo que não vemos. Mas cuidado para não nos enganarmos. Não foi Deus que arremessou o pincel contra o afresco de nossa orgulhosa civilização tecnológica. Deus é nosso aliado, não do vírus! “Eu tenho um desígnio de paz, não de sofrimento”, ele mesmo nos diz na Bíblia (Jr 29,11). Se esses flagelos fossem castigos de Deus, não seria explicado por que eles caem igualmente nos bons e nos maus, e por que geralmente são os pobres que têm as maiores consequências. Eles seriam mais pecadores que outros?

Aquele que chorou um dia pela morte de Lázaro chora hoje pelo flagelo que caiu sobre a humanidade. Sim, Deus "sofre", como todo pai e toda mãe. Quando descobrirmos um dia isso, teremos vergonha de todas as acusações que fizemos contra ele na vida. Deus participa da nossa dor para superá-la. “Deus – escreve Santo Agostinho –, por ser soberanamente bom, nunca deixaria qualquer mal existir em suas obras se não fosse bastante poderoso e bom para fazer resultar do mal o bem” (Enchiridion, 11,3 (PL 40, 236)).

Será que Deus Pai quis a morte do seu Filho, a fim de daí tirar o bem? Não, simplesmente permitiu que a liberdade humana fizesse o seu percurso, contudo, fazendo-a servir ao seu plano, não ao dos homens. Isto vale também para os males naturais, como terremotos e pestilências. Não os provoca. Ele deu também à natureza uma espécie de liberdade, claro, qualitativamente diversa daquela moral do homem, mas ainda assim, sempre uma forma de liberdade. Liberdade de evoluir-se segundo suas leis de desenvolvimento. Não criou o mundo como um relógio pré-programado em cada mínimo movimento. É o que alguns chamam de acaso, e que a Bíblia chama, ao contrário, de “sabedoria de Deus”.

* * *

O outro fruto positivo da presente crise de saúde é o sentimento de solidariedade. Quando foi, desde que há memória, que os homens de todas as nações se sentiram tão unidos, tão iguais, tão pouco contenciosos, como neste momento de dor? Jamais como agora temos sentido a verdade de um nosso grande poeta: “Homens, paz! Sobre a terra firme grande é mistério” (G. Pascoli, “I due fanciulli” (Os dois filhos).). Esquecemo-nos dos muros por construir. O vírus não conhece fronteiras. Em um segundo, abateu todas as barreiras e as distinções: de raça, de religião, de censo, de poder. Não devemos voltar atrás quando este momento tiver passado. Como tem nos exortado o Santo Padre, não devemos desperdiçar esta ocasião. Não deixemos que tanta dor, tantas mortes, tanto esforço heroico por parte dos profissionais de saúde tenha sido em vão. É esta a “recessão” que mais devemos temer.

Transformarão suas espadas em arados

e suas lanças em foices:

não pegarão em armas uns contra os outros

e não mais travarão combate (Is 2,4).

É o momento de tornar real algo desta profecia de Isaías, da qual a humanidade desde sempre aguarda o cumprimento. Demos um basta à trágica corrida às armas. Vocês gritam com todas as suas forças, jovens, porque é acima de tudo o seu destino que está em jogo. Destinemos os intermináveis recursos empregados às armas a finalidades de que, nestas situações, vemos a necessidade e a urgência: a saúde, o saneamento, a alimentação, o cuidado da criação. Deixemos à geração que virá, se necessário, um mundo mais pobre de coisas e dinheiro, porém mais rico de humanidade.

* * *

A palavra de Deus nos diz qual é a primeira coisa que devemos fazer em momentos como estes: gritar a Deus. É ele mesmo quem põe nos lábios dos homens as palavras para se gritar a ele, às vezes, até palavras duras, de lamento, e quase de acusação. “Levantai-vos, vinde logo em nosso auxílio, libertai-nos pela vossa compaixão! […] Despertai! Não nos deixeis eternamente!” (Sl 44,24.27). “Mestre, estamos perecendo e tu não te importas?” (Mc 4,38).

Será que Deus ama ser implorado para conceder os seus benefícios? Será que a nossa oração pode fazer Deus mudar seus planos? Não, mas há coisas que Deus decidiu conceder-nos como fruto, junto com sua graça e a nossa oração, quase como para compartilhar com as suas criaturas o mérito do benefício recebido (Cf. S. Tomás de Aquino, S.Th. II-IIae, q. 83, a.2.). É ele quem nos impulsiona a fazê-lo: “Pedi e vos será dado, disse Jesus, batei e a porta vos será aberta” (Mt 7,7).

Quando, no deserto, os hebreus eram mordidos por serpentes venenosas, Deus ordenou a Moisés para levantar sobre uma haste uma serpente de bronze, e quem a olhava não morria. Jesus se apropriou deste símbolo. “Como Moisés levantou a serpente no deserto – disse a Nicodemos –, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna” (Jo 3,14-15). Também nós, neste momento, somos mordidos por uma invisível “serpente” venenosa. Olhemos para aquele que foi “levantado” por nós sobre a cruz. Adoremo-lo por nós e por todo o gênero humano. Quem olhar para ele com fé e amor não morrerá. E se morrer, será para entrar na vida eterna.

"Depois de três dias eu ressuscitarei", Jesus predisse (cf. Mt 9:31). Nós também, depois desses dias que esperamos que sejam curtos, ressuscitemos e saímos dos túmulos de nossas casas. Não para voltar à vida anterior como Lázaro, mas para uma nova vida, como Jesus. Uma vida mais fraterna, mais humana. Mais cristã!

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Traduzido do italiano por Ir. Ricardo Farias, OFMCap


Via-Sacra presidida pelo Santo Padre - Sexta-feira Santa

Meditações das estações


Vigília Pascal na Noite Santa

Basílica Vaticana
Sábado Santo, 11 de abril de 2020


«Terminado o sábado» (Mt 28, 1), as mulheres foram ao sepulcro. O Evangelho desta santa Vigília começa assim: com o sábado. Este é o dia do Tríduo Pascal que mais descuramos, ansiosos de passar da cruz de sexta-feira à aleluia de domingo. Este ano, porém, damo-nos conta, mais do que nunca, do sábado santo, o dia do grande silêncio; podemos rever-nos nos sentimentos que tinham as mulheres naquele dia. Como nós, tinham nos olhos o drama do sofrimento, duma tragédia inesperada, que se verificou demasiado rapidamente. Viram a morte e tinham a morte no coração. À amargura, juntou-se o medo: acabariam, também elas, como o Mestre? E depois os receios pelo futuro, carecido todo ele de ser reconstruído. A memória ferida, a esperança sufocada. Para elas, era a hora mais escura, como o é hoje para nós.

Contudo, nesta situação, as mulheres não se deixam paralisar. Não cedem às forças obscuras da lamentação e da lamúria, não se fecham no pessimismo, nem fogem da realidade. Realizam algo simples e extraordinário: nas suas casas, preparam os perfumes para o corpo de Jesus. Não renunciam ao amor: na escuridão do coração, acendem a misericórdia. Nossa Senhora, no sábado – dia que Lhe será dedicado –, reza e espera. No desafio da tristeza, confia no Senhor. Sem o saber, estas mulheres preparavam na escuridão daquele sábado «o romper do primeiro dia da semana» (Mt 28, 1), o dia que havia de mudar a história. Jesus, como semente na terra, estava para fazer germinar no mundo uma vida nova; e as mulheres, com a oração e o amor, ajudavam a esperança a desabrochar. Quantas pessoas, nos dias tristes que vivemos, fizeram e fazem como aquelas mulheres, disseminando rebentos de esperança com pequenos gestos de solicitude, de carinho, de oração!

Ao amanhecer, as mulheres vão ao sepulcro. Lá diz-lhes o anjo: «Não tenhais medo. Não está aqui; ressuscitou» (cf. Mt 28, 5-6). Diante dum túmulo, ouvem palavras de vida... E depois encontram Jesus, o autor da esperança, que confirma o anúncio dizendo-lhes: «Não temais» (28, 10). Não tenhais medo, não temais: eis o anúncio de esperança para nós, hoje. Tais são as palavras que Deus nos repete hoje, na noite que estamos a atravessar.

Nesta noite, conquistamos um direito fundamental, que não nos será tirado: o direito à esperança. É uma esperança nova, viva, que vem de Deus. Não é mero otimismo, não é uma palmadinha nas costas nem um encorajamento de circunstância, com o aflorar dum sorriso. Não. É um dom do Céu, que não podíamos obter por nós mesmos. Tudo correrá bem: repetimos com tenacidade nestas semanas, agarrando-nos à beleza da nossa humanidade e fazendo subir do coração palavras de encorajamento. Mas, à medida que os dias passam e os medos crescem, até a esperança mais audaz pode desvanecer. A esperança de Jesus é diferente. Coloca no coração a certeza de que Deus sabe transformar tudo em bem, pois até do túmulo faz sair a vida.

O túmulo é o lugar donde, quem entra, não sai. Mas Jesus saiu para nós, ressuscitou para nós, para trazer vida onde havia morte, para começar uma história nova no ponto onde fora colocada uma pedra em cima. Ele, que derrubou a pedra da entrada do túmulo, pode remover as rochas que fecham o coração. Por isso, não cedamos à resignação, não coloquemos uma pedra sobre a esperança. Podemos e devemos esperar, porque Deus é fiel. Não nos deixou sozinhos, visitou-nos: veio a cada uma das nossas situações, no sofrimento, na angústia, na morte. A sua luz iluminou a obscuridade do sepulcro: hoje quer alcançar os cantos mais escuros da vida. Minha irmã, meu irmão, ainda que no coração tenhas sepultado a esperança, não desistas! Deus é maior. A escuridão e a morte não têm a última palavra. Coragem! Com Deus, nada está perdido.

Coragem: é uma palavra que, nos Evangelhos, sai sempre da boca de Jesus. Só uma vez é pronunciada por outros, quando dizem a um mendigo: «Coragem, levanta-te que [Jesus] chama-te» (Mc 10, 49). É Ele, o Ressuscitado, que nos levanta a nós, mendigos. Se te sentes fraco e frágil no caminho, se cais, não tenhas medo; Deus estende-te a mão dizendo: «Coragem!» Entretanto poderias exclamar como padre Abbondio: «A coragem, não no-la podemos dar» (I promessi sposi, XXV). Não a podes dar a ti mesmo, mas podes recebê-la, como um presente. Basta abrir o coração na oração, basta levantar um pouco aquela pedra colocada à boca do coração, para deixar entrar a luz de Jesus. Basta convidá-Lo: «Vinde, Jesus, aos meus medos e dizei também a mim: “coragem!” Convosco, Senhor, seremos provados; mas não turvados. E, seja qual for a tristeza que habite em nós, sentiremos o dever de esperar, porque convosco a cruz desagua na ressurreição, porque Vós estais connosco na escuridão das nossas noites: sois certeza nas nossas incertezas, Palavra nos nossos silêncios e nada poderá jamais roubar-nos o amor que nutris por nós».

Eis o anúncio pascal, anúncio de esperança. Este contém uma segunda parte, o envio. «Ide anunciar aos meus irmãos que partam para a Galileia» (Mt 28,10): diz Jesus. Ele «vai à vossa frente para a Galileia» (28, 7): diz o anjo. O Senhor precede-nos, precede-nos sempre. É bom saber que caminha diante de nós, que visitou a nossa vida e a nossa morte para nos preceder na Galileia, isto é, no lugar que, para Ele e para os seus discípulos, lembrava a vida diária, a família, o trabalho. Jesus deseja que levemos a esperança lá, à vida de cada dia. Mas, para os discípulos, a Galileia era também o lugar das recordações, sobretudo da primeira chamada. Voltar à Galileia é lembrar-se de ter sido amado e chamado por Deus. Cada um de nós tem a sua própria Galileia. Precisamos de retomar o caminho, lembrando-nos de que nascemos e renascemos a partir duma chamada gratuita de amor, lá, na minha Galileia. Este é o ponto donde recomeçar sempre, sobretudo nas crises, nos tempos de provação: na recordação da minha Galileia.

Mais ainda. A Galileia era a região mais distante de Jerusalém, onde estavam. E não só geograficamente: a Galileia era o lugar mais distante do caráter sacro da Cidade Santa. Era uma região habitada por povos diferentes, que praticavam vários cultos: era a «Galileia dos gentios» (Mt 4, 15). Jesus envia para lá, pede para recomeçar de lá. Que nos diz isto? Que o anúncio da esperança não deve ficar confinado nos nossos recintos sagrados, mas ser levado a todos. Porque todos têm necessidade de ser encorajados e, se não o fizermos nós que tocamos com a mão «o Verbo da vida» (1 Jo 1, 1), quem o fará? Como é belo ser cristãos que consolam, que carregam os fardos dos outros, que encorajam: anunciadores de vida em tempo de morte! A cada Galileia, a cada região desta humanidade a que pertencemos e que nos pertence, porque todos somos irmãos e irmãs, levemos o cântico da vida! Façamos calar os gritos de morte: de guerras, basta! Pare a produção e o comércio das armas, porque é de pão que precisamos, não de metralhadoras. Cessem os abortos, que matam a vida inocente. Abram-se os corações daqueles que têm, para encher as mãos vazias de quem não dispõe do necessário.

No fim, as mulheres «estreitaram os pés» de Jesus (Mt 28, 9), aqueles pés que, para nos encontrar, haviam percorrido um longo caminho até entrar e sair do túmulo. Abraçaram os pés que espezinharam a morte e abriram o caminho da esperança. Hoje nós, peregrinos em busca de esperança, estreitamo-nos a Vós, Jesus ressuscitado. Voltamos as costas à morte e abrimos os corações para Vós, que sois a Vida.


Domingo de Páscoa e da Ressurreição do Senhor


"Urbi et Orbi" - Páscoa 2020

Queridos irmãos e irmãs, feliz Páscoa!

Hoje ecoa em todo o mundo o anúncio da Igreja: «Jesus Cristo ressuscitou»; «ressuscitou verdadeiramente»!

Como uma nova chama, se acendeu esta Boa Nova na noite: a noite dum mundo já a braços com desafios epocais e agora oprimido pela pandemia, que coloca a dura prova a nossa grande família humana. Nesta noite, ressoou a voz da Igreja: «Cristo, minha esperança, ressuscitou!» (Sequência da Páscoa).

É um «contágio» diferente, que se transmite de coração a coração, porque todo o coração humano aguarda esta Boa Nova. É o contágio da esperança: «Cristo, minha esperança, ressuscitou!» Não se trata duma fórmula mágica, que faça desvanecerem-se os problemas. Não! A ressurreição de Cristo não é isso. Mas é a vitória do amor sobre a raiz do mal, uma vitória que não «salta» por cima do sofrimento e da morte, mas atravessa-os abrindo uma estrada no abismo, transformando o mal em bem: marca exclusiva do poder de Deus.

O Ressuscitado é o Crucificado; e não outra pessoa. Indeléveis no seu corpo glorioso, traz as chagas: feridas que se tornaram frestas de esperança. Para Ele, voltamos o nosso olhar para que sare as feridas da humanidade atribulada.

Hoje penso sobretudo em quantos foram atingidos diretamente pelo coronavírus: os doentes, os que morreram e os familiares que choram a partida dos seus queridos e por vezes sem conseguir sequer dizer-lhes o último adeus.

O Senhor da vida acolha junto de Si no seu Reino os falecidos e dê conforto e esperança a quem ainda está na prova, especialmente aos idosos e às pessoas sem ninguém. Não deixe faltar a sua consolação e os auxílios necessários a quem se encontra em condições de particular vulnerabilidade, como aqueles que trabalham nas casas de cura ou vivem nos quartéis e nas prisões.

Para muitos, é uma Páscoa de solidão, vivida entre lutos e tantos incómodos que a pandemia está a causar, desde os sofrimentos físicos até aos problemas económicos.

Esta epidemia não nos privou apenas dos afetos, mas também da possibilidade de recorrer pessoalmente à consolação que brota dos Sacramentos, especialmente da Eucaristia e da Reconciliação. Em muitos países, não foi possível aceder a eles, mas o Senhor não nos deixou sozinhos! Permanecendo unidos na oração, temos a certeza de que Ele colocou sobre nós a sua mão (cf. Sal 139/138, 5), repetindo a cada um com veemência: Não tenhas medo! «Ressuscitei e estou contigo para sempre» (cf. Missal Romano).

Jesus, nossa Páscoa, dê força e esperança aos médicos e enfermeiros, que por todo o lado oferecem um testemunho de solicitude e amor ao próximo até ao extremo das forças e, por vezes, até ao sacrifício da própria saúde. Para eles, bem como para quantos trabalham assiduamente para garantir os serviços essenciais necessários à convivência civil, para as forças da ordem e os militares que em muitos países contribuíram para aliviar as dificuldades e tribulações da população, vai a nossa saudação afetuosa juntamente com a nossa gratidão.

Nestas semanas, alterou-se improvisamente a vida de milhões de pessoas. Para muitos, ficar em casa foi uma ocasião para refletir, parar os ritmos frenéticos da vida, permanecer com os próprios familiares e desfrutar da sua companhia. Mas, para muitos outros, é também um momento de preocupação pelo futuro que se apresenta incerto, pelo emprego que se corre o risco de perder e pelas outras consequências que acarreta a atual crise. Encorajo todas as pessoas que detêm responsabilidades políticas a trabalhar ativamente em prol do bem comum dos cidadãos, fornecendo os meios e instrumentos necessários para permitir a todos que levem uma vida digna e favorecer – logo que as circunstâncias o permitam – a retoma das atividades diárias habituais.

Este não é tempo para a indiferença, porque o mundo inteiro está a sofrer e deve sentir-se unido ao enfrentar a pandemia. Jesus ressuscitado dê esperança a todos os pobres, a quantos vivem nas periferias, aos refugiados e aos sem abrigo. Não sejam deixados sozinhos estes irmãos e irmãs mais frágeis, que povoam as cidades e as periferias de todas as partes do mundo. Não lhes deixemos faltar os bens de primeira necessidade, mais difíceis de encontrar agora que muitas atividades estão encerradas, bem como os medicamentos e sobretudo a possibilidade duma assistência sanitária adequada. Em consideração das presentes circunstâncias, sejam abrandadas também as sanções internacionais que impedem os países visados de proporcionar apoio adequado aos seus cidadãos e seja permitido a todos os Estados acudir às maiores necessidades do momento atual, reduzindo – se não mesmo perdoando – a dívida que pesa sobre os orçamentos dos mais pobres.

Este não é tempo para egoísmos, pois o desafio que enfrentamos nos une a todos e não faz distinção de pessoas. Dentre as muitas áreas do mundo afetadas pelo coronavírus, penso de modo especial na Europa. Depois da II Guerra Mundial, este Continente pôde ressurgir graças a um espírito concreto de solidariedade, que lhe permitiu superar as rivalidades do passado. É muito urgente, sobretudo nas circunstâncias presentes, que tais rivalidades não retomem vigor; antes, pelo contrário, todos se reconheçam como parte duma única família e se apoiem mutuamente. Hoje, à sua frente, a União Europeia tem um desafio epocal, de que dependerá não apenas o futuro dela, mas também o do mundo inteiro. Não se perca esta ocasião para dar nova prova de solidariedade, inclusive recorrendo a soluções inovadoras. Como alternativa, resta apenas o egoísmo dos interesses particulares e a tentação dum regresso ao passado, com o risco de colocar a dura prova a convivência pacífica e o progresso das próximas gerações.

Este não é tempo para divisões. Cristo, nossa paz, ilumine a quantos têm responsabilidades nos conflitos, para que tenham a coragem de aderir ao apelo a um cessar-fogo global e imediato em todos os cantos do mundo. Este não é tempo para continuar a fabricar e comercializar armas, gastando somas enormes que deveriam ser usadas para cuidar das pessoas e salvar vidas. Ao contrário, seja o tempo em que finalmente se ponha termo à longa guerra que ensanguentou a amada Síria, ao conflito no Iémen e às tensões no Iraque, bem como no Líbano. Seja este o tempo em que retomem o diálogo israelitas e palestinenses para encontrar uma solução estável e duradoura que permita a ambos os povos viverem em paz. Cessem os sofrimentos da população que vive nas regiões orientais da Ucrânia. Ponha-se termo aos ataques terroristas perpetrados contra tantas pessoas inocentes em vários países da África.

Este não é tempo para o esquecimento. A crise que estamos a enfrentar não nos faça esquecer muitas outras emergências que acarretam sofrimentos a tantas pessoas. Que o Senhor da vida Se mostre próximo das populações da Ásia e da África que estão a atravessar graves crises humanitárias, como na Região de Cabo Delgado, no norte de Moçambique. Acalente o coração das inúmeras pessoas refugiadas e deslocadas por causa de guerras, seca e carestia. Proteja os inúmeros migrantes e refugiados, muitos deles crianças, que vivem em condições insuportáveis, especialmente na Líbia e na fronteira entre a Grécia e a Turquia. E não quero esquecer a ilha de Lesbos. Faça com que na Venezuela se chegue a soluções concretas e imediatas, destinadas a permitir a ajuda internacional à população que sofre por causa da grave conjuntura política, socioeconómica e sanitária.

Queridos irmãos e irmãs,

Verdadeiramente palavras como indiferença, egoísmo, divisão, esquecimento não são as que queremos ouvir neste tempo. Mais, queremos bani-las de todos os tempos! Aquelas parecem prevalecer quando em nós vencem o medo e a morte, isto é, quando não deixamos o Senhor Jesus vencer no nosso coração e na nossa vida. Ele, que já derrotou a morte abrindo-nos a senda da salvação eterna, dissipe as trevas da nossa pobre humanidade e introduza-nos no seu dia glorioso, que não conhece ocaso.

Com estas reflexões, gostaria de vos desejar a todos uma Páscoa feliz.


Regina Coeli - 13 de abril