O materialismo cristão de Josemaria Escrivá

O “materialismo cristão”, expressão utilizada pelo fundador do Opus Dei, exprime bem, segundo D. André Mutien Léonard, bispo de Namur (Bélgica), os ensinamentos de S. Josemaría Escrivá.

"Na linha do horizonte, parecem unir-se o céu e a terra..."

O artigo publicado a 6 de Outubro de 2002 no Osservatore Romano reflete sobre a “audácia atrativa com que Josemaria Escrivá passa do divino ao humano e do humano ao divino”.

Numa notável homilia pronunciada em 1967 e publicada com o título Amar o mundo apaixonadamente, Mons. Escrivá emprega a expressão “materialismo cristão”. Parece-me que ela condensa de um modo feliz a sua mensagem. Lê-se designadamente: “O sentido cristão autêntico – que professa a ressurreição de toda a carne – sempre combateu, como é lógico, a desencarnação, sem receio de ser julgado materialista. É lícito, portanto, falar de materialismo cristão, que se opõe audazmente aos materialismos fechados ao espírito. Que são os sacramentos – vestígios da Encarnação do Verbo, como afirmaram os antigos - senão a mais clara manifestação deste caminho que Deus escolheu para nos santificar e levar para o Céu? [...]

Mas de que forma conciliar a vida espiritual e o empenhamento no mundo? Capta-se que Mons. Escrivá nos seus escritos exclui toda e qualquer alternância ou justaposição esquizofrênica, sob a forma de uma vida dupla feita, por um lado, das mil e uma realidades e ocupações quotidianas das quais Deus estaria ausente e, por outro, de parênteses sagrados vividos como momentos de evasão. Mas ele rejeita igualmente qualquer espécie de confusão entre a vida espiritual e a presença no mundo, quer ela se produza por redução (a tentação do espiritualismo excessivo, que apresentaria a santificação cristã como dizendo respeito à vida interior e à salvação da alma, não tomando a sério em si mesmos os empenhamentos seculares) ou por absorção (a tentação do secularismo que tenderia a absorver a referência a Cristo ou aos valores cristãos num horizonte exclusivamente humano).

O que impressiona, pelo contrário, em Mons. Escrivá é a facilidade com que passa do divino ao humano e do humano ao divino, dando a sensação de uma pacífica continuidade e não de um hiato tormentoso entre um e outro, a milhas daquilo a que eu chamaria de bom grado, parafraseando Hegel, “a vida cristã vivida como consciência infeliz, ou até como má consciência”.

O materialismo cristão de São Josemaria conjuga de maneira feliz uma interação recíproca entre os dois aspectos: a vida espiritual atrai o empenhamento secular e o empenhamento secular atrai o aprofundamento da vida espiritual. Como ele gostava de dizer, “para sermos divinos, é preciso sermos também muito humanos”.

Com razão, Mons. Escrivá refere a Cristo a união do divino e do humano. Desde os primeiros séculos da Igreja, a fé católica procurou pensar a unidade de Deus e do homem em Cristo, rejeitando múltiplas heresias. Esta unidade de Cristo não pode consistir numa justaposição ou separação (nestorianismo), nem numa confusão dos dois, quer pela redução da humanidade de Cristo à sua divindade (docetismo e monofisismo), quer pela redução da sua divindade à humanidade (adocionismo e arianismo). Encontram-se aqui as categorias utilizadas atrás a propósito da mensagem de Mons. Escrivá.

Mas a unidade do divino e do humano em Cristo também não pode ser pensada como uma pura tensão entre os dois. Em vez disso, a Cristologia católica implica a interação recíproca do humano e do divino, na lógica do Concílio de Calcedônia, para quem a natureza humana e a natureza divina de Jesus, longe de estarem separadas uma da outra, de se confundirem ou de se oporem, ficam “salvaguardadas nas suas propriedades respectivas”.

Julgo que o materialismo cristão de Mons. Escrivá, com ou a sua preocupação de conciliar positivamente, sem separação nem confusão, a espiritualidade mais elevada e o empenhamento secular quotidiano, assenta sobre bases sólidas, a saber, sobre bases cristológicas que dão garantias de frutos duradouros.

Suplemento de l’ Osservatore Romano , 6-X-2002