O artigo publicado a 6 de Outubro de 2002 no Osservatore Romano reflete sobre a “audácia atrativa com que Josemaria Escrivá passa do divino ao humano e do humano ao divino”.
Numa notável homilia pronunciada em 1967 e publicada com o título Amar o mundo apaixonadamente, Mons. Escrivá emprega a expressão “materialismo cristão”. Parece-me que ela condensa de um modo feliz a sua mensagem. Lê-se designadamente: “O sentido cristão autêntico – que professa a ressurreição de toda a carne – sempre combateu, como é lógico, a desencarnação, sem receio de ser julgado materialista. É lícito, portanto, falar de materialismo cristão, que se opõe audazmente aos materialismos fechados ao espírito. Que são os sacramentos – vestígios da Encarnação do Verbo, como afirmaram os antigos - senão a mais clara manifestação deste caminho que Deus escolheu para nos santificar e levar para o Céu? [...]
Mas de que forma conciliar a vida espiritual e o empenhamento no mundo? Capta-se que Mons. Escrivá nos seus escritos exclui toda e qualquer alternância ou justaposição esquizofrênica, sob a forma de uma vida dupla feita, por um lado, das mil e uma realidades e ocupações quotidianas das quais Deus estaria ausente e, por outro, de parênteses sagrados vividos como momentos de evasão. Mas ele rejeita igualmente qualquer espécie de confusão entre a vida espiritual e a presença no mundo, quer ela se produza por redução (a tentação do espiritualismo excessivo, que apresentaria a santificação cristã como dizendo respeito à vida interior e à salvação da alma, não tomando a sério em si mesmos os empenhamentos seculares) ou por absorção (a tentação do secularismo que tenderia a absorver a referência a Cristo ou aos valores cristãos num horizonte exclusivamente humano).
O que impressiona, pelo contrário, em Mons. Escrivá é a facilidade com que passa do divino ao humano e do humano ao divino, dando a sensação de uma pacífica continuidade e não de um hiato tormentoso entre um e outro, a milhas daquilo a que eu chamaria de bom grado, parafraseando Hegel, “a vida cristã vivida como consciência infeliz, ou até como má consciência”.
O materialismo cristão de São Josemaria conjuga de maneira feliz uma interação recíproca entre os dois aspectos: a vida espiritual atrai o empenhamento secular e o empenhamento secular atrai o aprofundamento da vida espiritual. Como ele gostava de dizer, “para sermos divinos, é preciso sermos também muito humanos”.
Com razão, Mons. Escrivá refere a Cristo a união do divino e do humano. Desde os primeiros séculos da Igreja, a fé católica procurou pensar a unidade de Deus e do homem em Cristo, rejeitando múltiplas heresias. Esta unidade de Cristo não pode consistir numa justaposição ou separação (nestorianismo), nem numa confusão dos dois, quer pela redução da humanidade de Cristo à sua divindade (docetismo e monofisismo), quer pela redução da sua divindade à humanidade (adocionismo e arianismo). Encontram-se aqui as categorias utilizadas atrás a propósito da mensagem de Mons. Escrivá.
Mas a unidade do divino e do humano em Cristo também não pode ser pensada como uma pura tensão entre os dois. Em vez disso, a Cristologia católica implica a interação recíproca do humano e do divino, na lógica do Concílio de Calcedônia, para quem a natureza humana e a natureza divina de Jesus, longe de estarem separadas uma da outra, de se confundirem ou de se oporem, ficam “salvaguardadas nas suas propriedades respectivas”.
Julgo que o materialismo cristão de Mons. Escrivá, com ou a sua preocupação de conciliar positivamente, sem separação nem confusão, a espiritualidade mais elevada e o empenhamento secular quotidiano, assenta sobre bases sólidas, a saber, sobre bases cristológicas que dão garantias de frutos duradouros.
Suplemento de l’ Osservatore Romano , 6-X-2002