Existência de uma peculiar vocação ao Opus Dei

Trecho do capítulo "A vocação ao Opus Dei como vocação na Igreja", escrito por Fernando Ocáriz e incluído no livro "O Opus Dei na Igreja" (Editora Rei dos Livros).

Foto: Daniel Frese

À luz das precedentes considerações gerais sobre a vocação, podemos já enfrentar a questão central do presente capítulo, enunciada no seu início: a incorporação no Opus Dei é fruto de uma vocação, de um chamamento divino. Por outras palavras, não é fruto da mera decisão pessoal que, ao advertir algo bom, tende a fazê-lo próprio – o que, com linguagem vulgar, pode designar-se como o simples orientar-se para uma tarefa –, mas de uma decisão que surge do saber-se chamado por Deus. Esta vocação, apesar de peculiar, não constitui todavia quem a recebe em algo diferente de um fiel cristão corrente ou, se for o caso, de um sacerdote secular.

A reflexão teológica sobre esta questão ter-se-á de referir tanto à existência dessa vocação como à sua peculiaridade, e por­tanto às diversas características próprias das vocações peculia­res anteriormente estudadas, isto é, o carácter omnicompreensivo e – o que é talvez primário e decisivo –o seu carácter prévio à decisão pessoal, sem o qual todas as outras características poderiam existir, mas não constituiriam propria­mente uma vocação peculiar, no sentido que demos a esta expressão. Tudo isso, além do mais, nos remeterá para uma luz fundacional de origem divina (carismática) reconhecida pela Igreja. Por conseguinte, a nossa reflexão há de centrar-se no tes­temunho de Josemaria Escrivá sobre a luz fundacional, sobre a inspiração divina que fez nascer o Opus Dei no seio da Igreja[1].

De fato, como já foi assinalado no início do presente capí­tulo, o Fundador afirmou constantemente a existência de uma vocação peculiar ao Opus Dei, com expressões diretas e níti­das, como a anteriormente citada de uma carta aos membros da Obra: «Não estamos vós e eu no Opus Dei, porque tenhamos decidido levar a cabo uma obra boa, ou mesmo nobilíssima. Estamos aqui porque Deus nos chamou, com uma vocação pes­soal e peculiar»[2]. Não se afirma simplesmente o carácter vocacional da concreta dedicação a uma obra boa, no sentido em que toda a vida humana é vocação, mas fala-se de uma voca­ção que, sendo pessoal como toda a determinação da vocação cristã, é ao mesmo tempo peculiar, originada numa radical ini­ciativa divina prévia à própria liberdade[3]. Isto é, Jose­maria viu, com a luz fundacional, esta característica primária de toda a autêntica vocação e – o que é decisivo – assim foi con­firmado pelo juízo da Igreja.

Essa iniciativa divina — escolha, vocação — não convoca, no Opus Dei, a realizar determinados atos, a dar a alguns aspectos da própria vida uma certa orientação, mas convida a dar a toda a existência, em todas as dimensões, uma novidade de sentido. O fundador expressava esta realidade dizendo, por exemplo, que a vocação ao Opus Dei é um encontro voca­cional pleno, que afeta plenamente a vida, toda a vida. «Encon­tro vocacional pleno, repito, porque – qualquer que seja o estado civil da pessoa — é plena a sua dedicação ao trabalho e ao fiel cumprimento dos seus próprios deveres de estado, segundo o espírito do Opus Dei. Por isto, dedicar-se a Deus no Opus Dei não implica uma seleção de atividades, não supõe dedicar mais ou menos tempo da nossa vida para empregá-lo em obras boas, abandonando outras. O Opus Dei insere-se em toda a nossa vida»[4]. Trata-se, pois, de uma vocação omnicompreensiva da existência. Por conseguinte, esta vocação não chama simplesmente a fazer algo, mas a ser algo: «cada um de nós, com a sua vida de entrega ao serviço da Igreja, deve ser Opus Dei – isto é: operatio Dei –, trabalho de Deus, para fazer o Opus Dei na terra»[5]. O carácter omnicompreensivo da vocação faz que ser Opus Dei não seja outra coisa senão um modo – entre os muitos que existem e podem existir – de ser Igreja, pois a Igreja é o lugar onde Deus chama e onde se rea­liza o fim de toda a vocação: a comunhão com Deus.

Nos cristãos aos quais a vocação pessoal não separa das ordinárias condições de vida no meio do mundo (isto é, nos lei­gos), o carácter omnicompreensivo da vocação cristã comporta a assunção do que costuma chamar-se vocação humana, e con­cretamente da vocação profissional. Como é sabido, por voca­ção humana entende-se a inclinação, fruto das capacidades naturais, da educação e do conjunto das circunstâncias, que leva a pessoa a procurar configurar a sua existência de um determi­nado modo. À luz da fé, o cristão descobre em tudo isso uma expressão da Providência divina que, de um modo ou de outro, «chama cada pessoa a realizar uma tarefa no mundo»[6].

Assim expressava o fundador, numa das suas homi­lias a pertença da vocação humana à vocação divina: «A vossa vocação humana é parte, e parte importante, da vossa vocação divina. Esta é a razão pela qual tendes que vos santificar - contribuindo ao mesmo tempo para a santificação dos outros, dos vossos iguais - precisamente santificando o vosso trabalho e o vosso ambiente: essa profissão ou ofício que preenche vossos dias, que dá uma fisionomia peculiar à vossa personalidade humana, que é a vossa maneira de estar no mundo; esse lar, a vossa família; e essa nação em que nascestes e que amais»[7]. Como é lógico, idêntico ensinamento será dirigido aos membros do Opus Dei: «a vossa vocação profissional, meus filhos, é parte da vossa vocação divina, porque Deus Nosso Senhor quer que santifi­queis a profissão, vos santifiqueis na profissão e santifiqueis os outros com a profissão. Esse foi o meu ensinamento desde 1928»[8]. Por vezes, o Fundador repisa ainda com maior força esta ideia, dizendo que «a vocação profissional não é só uma parte, mas uma parte principal da nossa vocação sobrena­tural»[9].

Sendo a vocação ao Opus Dei o que vimos – uma vocação originada numa iniciativa divina absolutamente prévia à liber­dade e omnicompreensiva da existência pessoal –, terá de ter também um carácter permanente. E, assim, com efeito, foi vista pelo fundador desde o primeiro momento. Porque não tem a sua origem no sujeito, mas na prévia iniciativa de Deus, esta vocação «não é um estado de ânimo»[10] mas leva a um determinado empenho cristão, a uma entrega a Deus, definitiva, permanente: «a nossa entrega a Deus — escrevia o Fundador aos membros do Opus Dei em 1934 — não é um estado de ânimo, uma situação de passagem»[11]. A íntima conexão entre a omnicompreensividade e o carácter definitivo ou permanente da vocação, levava frequentemente o Fundador a afirmar preci­samente a permanência como consequência da omnicompreensividade. Por exemplo, com uma comparação gráfica, escreveu também aos membros da Obra: «O nosso compromisso de amor com Deus e de serviço à sua Igreja não é como uma peça de roupa, que se põe e se tira: porque abarca toda a nossa vida, e a nossa vontade – com a graça do Senhor – é que a abarque sempre»[12].

No que diz respeito à outra característica própria das voca­ções peculiares assinaladas anteriormente, isto é, o fato de comportarem um modo de ser cristão (uma determinada espiri­tualidade e uma determinada maneira de participar na missão única da Igreja), que é também consequência da omnicom­preensividade, o ensinamento do Fundador foi igualmente cons­tante desde o princípio, e vem expresso nos Estatutos do Opus Dei com as seguintes palavras: «A Prelazia propõe-se, de acordo com as normas do direito particular, a santificação dos seus membros mediante o exercício das virtudes cristãs, cada um no seu próprio estado, profissão e condição de vida, segundo a sua espiritualidade específica, totalmente secular.

»Além disso, a Prelazia procura trabalhar com todas as suas forças para que pessoas de todas as condições e estados civis da sociedade, e primeiramente os intelectuais, adiram de todo o coração aos preceitos de Cristo Senhor e os levem à prática no meio do mundo, também mediante a santificação do trabalho profissional próprio de cada um, a fim de que todas as coisas se ordenem para a Vontade do Criador; e preparar homens e mulheres para que exerçam também o apostolado na sociedade civil»[13].

À luz do acontecimento fundacional, Josemaria Escrivá percebeu claramente que, para incorporar­-se no que depois chamaria Opus Dei, se requeria uma vocação divina (prévia à liberdade do chamado), omnicompreensiva da existência, definitiva ou permanente, que implicava um peculiar estilo de vida cristã (espiritualidade e modo peculiar de partici­par na missão da Igreja). Neste sentido forte falou de vocação peculiar; em que, além disso, está presente também a dimensão institucional, que costuma estar contida no que chamamos voca­ções peculiares – ainda que não esteja necessariamente – não só como questão de fato, mas como essencial; isto é, incluída no próprio carisma fundacional[14].

A vocação ao Opus Dei – como toda a vocação peculiar na Igreja – requer a tomada de consciência, isto é que aconteça uma experiência psicológica do chamamento divino, no sentido exposto anteriormente (a luz e o impulso da graça da vocação). Luz que faz ver que o caminho pessoal para viver plenamente as exigências do ser cristão é a vida ordinária no meio do mundo (o trabalho, a família, as relações sociais, etc.): neste sentido, o Fundador ensinava que, no Opus Dei, «a vocação recebida é igual à que surgia na alma daqueles pescadores, camponeses comerciantes ou soldados que, sentados ao pé de Jesus Cristo na Galiléia, Lhe ouviam dizer: Sede perfeitos, como vosso Pai celestial é perfeito (Mt 5, 48)»[15], fazendo ver também o pre­ciso sulco institucional (o Opus Dei) ao qual Deus chama, e, ao mesmo tempo, impelindo a empreendê-lo e percorrê-lo.

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[1] A inspiração divina do Opus Dei, desde o primeiro momento afirmada pelo Fundador, como foi considerada no capítulo 1, assinala-se expressamente em JOÃO PAULO II, Const. apost. Ut sit, 28-XI-1982, Proemio.

[2] Carta, 14-11-1944, n. 1.

[3] Recorde-se o assinalado anteriormente acerca deste carácter prévio no con­texto do mistério eternidade-temporalidade.

[4] Carta, 25-1-1961, n. 11.

[5] Carta, 14-11-1950, n. 4.

[6]A. PIGNA, La vocación. Teología y discernimiento, cit., p. 12. Daí, o sentido cristão de considerar vocação - vocação humana -aquela inclinação. Não obs­tante, é patente que a Providência conta com as livres escolhas da pessoa na própria configuração da sua vocação humana e, portanto, que esta não é, de si, uma realidade unívoca nem imutável.

[7] É Cristo que passa, n.° 46. Cfr. Amigos de Deus, n.° 60.

[8] Carta, 6-V-1945, n. 16.

[9] Carta, 31-V-1954, n. 18. Naturalmente, a vocação profissional - para os fiéis do Opus Dei, tal como para os outros homens e mulheres - não inclui a exi­gência de permanecer sempre numa mesma profissão, nem - como a mais geral vocação humana - é necessariamente uma realidade unívoca.

[10] Instrucción, 8-XII-1941, n. 74.

[11] Instrucción, 1-IV -1934, n. 20.

[12]Carta, 11-III-1940, n. 10.

[13]Statuta, n. 2.

[14]Cfr. JOÃO PAULO II, Const. apost. Ut sit, Proemio. Sobre este aspecto, vid. capítulo I, secção I, passim.

[15]Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, n.° 62.