Desprendido das coisas

Dom Javier Echevarría recorda como São Josemaria procurava viver a virtude da pobreza, que em sua vida e no espírito do Opus Dei tem características originais, levando a usar os bens terrenos com desprendimento, e para ajudar aos outros.

A pobreza é outra virtude muito importante, que se reveste na vida de mons. Escrivá e no espírito do Opus Dei de características realmente originais, nem sempre bem compreendidas. Para um cristão comum, para um pai ou mãe de família, a pobreza não é apenas austeridade ou renúncia; exige também um testemunho explícito de amor e serviço, de solidariedade, como se expõe com certa detenção, entre outros lugares, em Questões Atuais do Cristianismo (Entrevistas com Mons. Escrivá), ns. 110-111. Essa virtude, em termos laicais, não leva apenas a estar desprendido, mas a utilizar as coisas criadas para resolver os problemas da vida humana e estabelecer o ambiente espiritual e material que facilite o desenvolvimento das pessoas e das comunidades. Mas, sem dúvida, o seu fundamento reside na estrita sobriedade pessoal. Mons. Escrivá aludiu muitas vezes ao fato de os seus anos de Logroño, depois da falência da empresa paterna, ter sido para ele uma autêntica escola em muitos pormenores da vida cotidiana e, concretamente, da pobreza.

Aprendeu então a enfrentar com garbo as privações, tornando agradável a vida aos outros, sem se queixar do trabalho ou da falta de serviço doméstico. Ficou-lhe muito gravado o semblante de seu pai, cheio de paz e sorridente, que dava ao lar alegria e serenidade, reforçando a união da família; e também se recordava vivamente da laboriosidade e do sacrifício generoso de sua mãe e de sua irmã, que sabiam manter um tom de distinção no lar, ainda que não dispusessem dos meios de que gozavam em Barbastro.

Foi uma pobreza envergonhada, arrostada com extraordinária dignidade, que perfilou ainda mais o agudo engenho do Fundador do Opus Dei, já que descobria os detalhes com que seus pais se esforçavam, sem mesquinhez, por tirar o máximo proveito de tudo o que possuíam, para tornar a convivência amável.

Já em Roma, nos anos cinquenta, o senhor foi testemunha excepcional do amor à pobreza de mons. Escrivá.

Nunca o vi preocupado ou interessado em ter algo de pessoal, porque pensava que era preciso dedicar todos os meios materiais ao trabalho apostólico. Por exemplo, cuidou de ir formando uma boa biblioteca teológica, filosófica e jurídica, mas nunca pôs o seu nome nos livros, e menos ainda escreveu na margem das páginas ou as sublinhou: queria que os outros os utilizassem, sem sentir-se proprietário.

Quanto aos objetos comuns de asseio pessoal e aos instrumentos de trabalho, tinha o imprescindível. Utilizava uma caneta de ponta grossa e, posteriormente, uma esferográfica. Aproveitava o papel ao máximo; e até cortava os envelopes velhos – se não continham cartas – a modo de pequenas fichas, nas quais tomava notas. Brincava, às vezes, a propósito do seu costume de escrever no verso de folhas já usadas: Não escrevo no refile, porque não é possível!

Para fazer-nos compreender a necessidade de cuidar das peças do vestuário, lembrava – como já mencionei – o comportamento de alguém que deixava a roupa de qualquer maneira no quarto: É verdade que as coisas devem ser consumidas e gastas, mas sabendo que não devemos tratá-las mal e que é necessário fazê-las durar, já que não são nossas: são um meio para a nossa santidade e para o nosso apostolado, porque devemos utilizá-las como administradores e não como proprietários que malbaratam o que possuem.

Admitiu apenas o indispensável para o seu vestuário. Lembro-me de que, certa vez, lhe ofereceram um suéter de lã, e imediatamente o enviou para o depósito, porque já utilizava um. Quando lhe comentamos que podia guardá-lo até que o outro se estragasse, não concordou: Quereis que eu deixe de praticar a bendita pobreza, que nos leva a ter apenas o necessário e, às vezes, menos do que o necessário?

Desde que o conheci até 1972, usou os mesmos óculos que tinha adquirido em 1940. Trocou os óculos de sol em 1974, quando lhe graduaram novamente a vista. Tinham-lhe sido comprados em 1940 por um membro do Opus Dei, depois de o ter acompanhado em algumas viagens durante a primavera e o verão, quando o sol brilha mais intensamente. A sua reação inicial fora chamar-lhe a atenção, por achar que era um objeto desnecessário. Depois, com o transcorrer do tempo, mostrou-se agradecido por aquele gesto filial e compreendeu que lhe tinham dado a possibilidade de trabalhar mais. Não deixou de pedir perdão àquele seu filho.

Quando rendeu a alma ao Senhor, não deu absolutamente nenhum trabalho recolher e guardar os seus objetos de uso pessoal, pois tinha apenas o imprescindível.

Como era o seu quarto de dormir?

Havia no seu quarto de dormir quatro móveis muito baratos: uma cama de ferro feita por um ferreiro, que custou exatamente vinte e cinco mil liras em 1953; um banquinho armado com tábuas de caixotes de fruta e forrado por cima com um tecido modesto, que assim ficou desde 1952. Por último, um cadeirão de madeira e uma mesa que estavam entre a mobília de Villa Tevere, quando esta foi adquirida. Colocou-se ao lado um abajur de pé, para que pudesse trabalhar. Como decoração, durante muito tempo, não teve senão uma pequena imagem da Santíssima Virgem, que depois pôde ser substituída por um quadro da Sagrada Família que lhe ofereceram em Palermo.

Acedeu a que se colocasse no dormitório um crucifixo de bronze sobre uma cruz grande de madeira. E mais tarde trouxeram-se de Madrid uns azulejos com as palavras: “Afasta de mim, Senhor, o que me afaste de ti”.

Depois foi pondo alguns outros objetos que serviam de despertadores para se lembrar de Deus. No aplique de luz que tinha à cabeceira da cama, colocou um grande terço com a medalha central da Virgem de Guadalupe. Instalou também uns azulejos – cozidos por um membro do Opus Dei na mufla usada para as obras – em que se representa um Sagrado Coração trespassado por uma flecha, com as abreviaturas das palavras Iesus Christus, e debaixo, Deus Homo.

Conservou também, numa tabuinha muito pobre – das que eram utilizadas na construção –, uma estampa de papel com a figura do seu patrício, São José de Calasanz. Junto desse quadrinho, colocou uma cruz de Caravaca, que é uma cruz metálica com quatro braços, em vez dos dois habituais, formados por dois travessões paralelos. Passados anos, teve debaixo do quadro da Sagrada Família uma pequena imagem de Santo Antão – seu patrono –, que um adeleiro romano lhe deu.

O piso era pobre e gelado. No final da sua vida, em 1974, mons. Álvaro del Portillo e eu resolvemos que se cobrisse com um carpete, para evitar o frio. Tomamos essa decisão considerando que era propenso a contrair infecções dos brônquios, depois de ter caído mais de uma vez ao chão. A sua primeira reação, já que não o tínhamos consultado, para evitar uma negativa, foi de desgosto por se ter feito esse gasto pensando na sua pessoa. Assentiu depois de lhe termos comentado que tínhamos agido de acordo com os médicos.

O Fundador do Opus Dei também dava importância a outras exigências da pobreza laical, como procurar e usar adequadamente os meios necessários, trabalhar com empenho, aproveitar o tempo a fundo, servir os outros.

Não se cansou de insistir no reto uso dos instrumentos materiais, de cuidar deles para que rendessem ao máximo e de estarmos, ao mesmo tempo, alegremente desprendidos. Presenciei também o rigor com que exigia o desprendimento: Não devemos sentir-nos proprietários nem de um centavo, nem de um pequeno objeto. Seria ridículo que, depois de termos entregado a vida inteira a Deus, nos deixássemos enredar num capricho ou numa ninharia.

Em 1951, escutei-lhe algumas das exigências dessa virtude: Vamos concretizar alguns sinais da verdadeira pobreza na nossa Obra: a) não ter nada como próprio; b) não ter coisa alguma supérflua; c) não se queixar quando falta o necessário; d) quando se trata de escolher, preferir o mais pobre, o menos simpático; e) não maltratar nada do que usamos, nem nos nossos Centros, nem nos lugares onde trabalhamos, nem em qualquer lugar em que nos encontremos; f) aproveitar o tempo.

Com incansável constância, repetia: Não crieis falsas necessidades: há muitas coisas que parecem indispensáveis e, na realidade, não o são. Em 1950, por exemplo, soube que se tinham doado dois automóveis a um Centro do Opus Dei. Aconselhou imediatamente os respectivos Diretores a ficar com um, se precisavam dele, e a vender o outro para cuidar da expansão do trabalho naquele lugar. Insistiu-lhes em que não deviam ter coisas supérfluas, ainda que fossem presentes: se nos dão um elefante branco – disse-lhes –, não o vamos meter dentro de casa; vendemo-lo pelo preço que nos derem, porque não serve para o nosso trabalho apostólico, e nós devemos utilizar as coisas da terra para ajudar as almas. Abrimos mão de tudo o mais, sem exceção alguma.

Em 1967, na Sede Central, fez-me uma série de considerações sobre a pobreza: evitar que as pessoas deixassem de comer sem motivo; não perder o tempo trabalhando mal; saber dominar a falta de paciência quando um trabalho requer tempo; não precipitar-se em realizar as tarefas próprias, pois por elas nos devemos santificar; aproveitar as coisas tirando delas o melhor partido possível; evitar o mau exemplo e, em contrapartida, pensar que as outras pessoas haverão de aprender de nós, se virem as nossas tarefas cotidianas realizadas com amor de Deus e bem acabadas; cuidar das pequenas coisas e não desperdiçá-las, porque podem ser fonte de um gasto inútil e constante; pensar na saúde dos outros, ao preparar as refeições.

Ensinou os membros do Opus Dei a viver com a responsabilidade de uma pessoa pobre, que utiliza as coisas gastando o menos possível. Por isso, desde o começo, exigiu que cada um, com o seu trabalho, ganhasse o necessário para o seu sustento e para ajudar os apostolados da Obra. Fazia compreender a todos – aos que acabavam de vir à Obra e aos mais antigos – que não podiam desinteressar-se da grave obrigação de não ser um fardo, que deviam contentar-se com o indispensável e contribuir com total generosidade para as necessidades apostólicas do mundo inteiro.

Não parece possível expô-lo aqui detidamente, mas, como insinuava um pouco atrás, o sentido laical da pobreza cristã tem muito a ver com a dignidade da pessoa humana e também está na raiz da justiça social. O Fundador do Opus Dei sublinhou sempre esses aspectos, como meio específico de santificação no meio do mundo.

Inculcou em todos aqueles com quem se relacionava o cumprimento dos deveres de justiça: dos pais para com os filhos; dos filhos para com os pais; dos estudantes para com a família, a sociedade e os professores; dos professores para com a ciência, os discípulos e a sociedade; das autoridades para com os súditos, exercendo o poder em serviço deles; enfim, de qualquer profissional, pelo cumprimento bem acabado do seu trabalho.

Desde a sua juventude, interessou-se pelos ambientes mais necessitados ou marginalizados; dedicou-se a atendê-los pessoalmente quando começou o seu ministério, e, depois, ensinou aos que o rodeavam o dever de se ocuparem dos indigentes, de os ajudarem a exercer os seus direitos, para que pudessem alcançar o bem-estar adequado, acorde com o desenvolvimento da dignidade humana. Ao ver a situação dos operários e trabalhadores rurais, ou dos que estavam sem trabalho, fomentou a consciência de que era preciso proporcionar-lhes moradia, alimentação, formação profissional para eles e para os filhos, etc.

Promoveu muitas iniciativas por intermédio de membros da Obra, em muitos países do mundo. Por exemplo, na Prelazia de Yauyos (no Peru), foram inumeráveis as atividades promovidas em favor dos trabalhadores rurais que viviam na mais incrível miséria e escassez: escolas em diferentes povoados, centros para a formação da mulher, difusão de programas radiofônicos. E a mesma coisa aconteceu no México, onde se fez um formidável trabalho social entre os habitantes dos diversos vales, contribuindo para a elevação humana do trabalho e para a educação dos filhos.

Como consequência do zelo apostólico do Fundador do Opus Dei, multiplicaram-se essas iniciativas na Itália, Portugal, Espanha, França, Estados Unidos, México, diferentes países da América do Sul, da Ásia e da África: transmitia aos seus filhos do mundo inteiro o seu fervoroso desejo de que se pusessem em andamento atividades de promoção social, para defender a justiça e colocar os mais necessitados em condições de viverem com a dignidade devida à pessoa humana.

Sei de muitas conversas de mons. Escrivá com dirigentes de empresas da Espanha, da Itália, Suíça, Portugal, México, Alemanha, Argentina, Filipinas, Venezuela, Brasil, etc.; tratava-se de católicos e não católicos, nos quais soube despertar a preocupação positiva por servir a sociedade. Com grande sentido catequético, recordava-lhes pontos fundamentais da doutrina da Igreja e animava-os a empreender uma ampla promoção social, com sincera e generosa dedicação. Esclarecia-lhes que, para poderem influir entre os seus iguais e transmitir-lhes as suas saudáveis preocupações, não era necessário que mudassem de ambiente ou de padrão de vida, mas que deviam fomentar um total desprendimento das suas riquezas, sabendo-se administradores dos bens de Deus.

Insistia-lhes, além disso, em que tinham a obrigação de pagar a todos os que deles dependiam com a justiça e a equidade de quem tem consciência cristã ou – ao menos – deseja respeitar a lei natural. Sublinhava-lhes a responsabilidade que tinham de cumprir esse dever cristão precisamente nas suas empresas e indústrias, já que com esses negócios – se eram justos – estavam facilitando emprego e promoção a milhares e milhares de pessoas; não podiam tratar os seus empregados como objetos ou meros servidores, mas como irmãos que prestam um trabalho e necessitam do respeito, da ajuda e de uma justa retribuição para poderem viver em condições dignas, eles e as suas famílias.

Os membros do Opus Dei comprometem-se a contribuir para a manutenção dos trabalhos apostólicos mediante o seu trabalho profissional, mas conservam o patrimônio – se o têm –, sobre o qual decidem com liberdade e responsabilidade cristãs. Talvez seja por isso que mons. Escrivá acentuava tanto a necessidade de se fazer exame de consciência sobre a virtude da pobreza.

Certa vez, um pai de família quis falar com o Fundador do Opus Dei para lhe pedir contas sobre a dedicação do seu filho à Obra, alegando que possuía um grande patrimônio e desejava saber qual o destino que se daria a esses bens. Depois de escutá-lo pacientemente, mons. Escrivá respondeu-lhe que a única coisa que lhe interessava daquele seu filho, se tinha vocação, era que se empenhasse em alcançar a santidade própria e a das pessoas com quem se relacionasse. Quanto ao patrimônio econômico, além de que o seu filho tem liberdade para dispor dele como lhe apeteça, não me interessa absolutamente nem um tostão. Por mim, pode fazer, se quiser, uma praça de touros na sua cidade natal.

Ouvi-o dizer em várias ocasiões que aceitou com alegria a Vontade do Senhor quando – em 1932 – faleceu um dos primeiros membros do Opus Dei, Luís Gordon, um dos poucos que já tinham terminado a carreira universitária e que estava em condições de ajudá-lo. Além disso, a família desse seu filho dispunha de abundantes meios econômicos e teria podido contribuir para o desenvolvimento do trabalho apostólico com o seu patrimônio e com donativos provenientes das suas amizades. Sempre nos explicava que compreendeu com clareza que assim Deus lhe fazia ver a necessidade de estar desprendido das coisas da terra, até do que humanamente se encontra à nossa disposição.

Quando evocava esse desprendimento, não atribuía nenhum mérito à sua pessoa. E chegava sempre à mesma conclusão: Como o Senhor faz bem as coisas! Deixava-me ver, de um modo ou de outro, com constância, que a Obra era dEle, e que eu deveria realizá-la contando única e exclusivamente com Ele, sem apoiar-me para nada nos meios humanos. Depois, com bom humor, acrescentava que a sua mãe lhe repetia muitas vezes que o Senhor tinha previsto as coisas perfeitamente, porque – dizia – “tens as mãos furadas e, a qualquer um que te pedisse uma esmola, terias dado até o último centavo, sem ficar sequer com o necessário para sobreviver”.

Devo ressaltar que lutou contra o perigo do aburguesamento e não deixou de alertar os seus filhos a esse propósito, independentemente da sua situação social ou profissional. Queria evitar, até no menor detalhe, que alguém se aburguesasse. Graças a essa insistência e às disposições que estabeleceu, os membros do Opus Dei aprenderam a amar e a praticar a pobreza, e procuram não afastar-se do rigor com que foi vivida desde os primeiros tempos da Obra, sabendo-se administradores dos bens do Senhor. Por isso, nas suas palestras, nas suas meditações, perguntava-se a si próprio e perguntava aos outros se estávamos em condição de responder com pobreza heroica ao pedido do Senhor: Redde mihi rationem villicationis tuae[1].

Para receber as visitas, descia do segundo andar – onde trabalhava habitualmente – para o térreo. Como tinha de ir por lugares que eram poucos utilizados, acendiam-se as luzes quando passava e depois apagavam-se. Um dia, pediu-nos que, ao invés de acender as luzes, abríssemos as janelas, pois economizaríamos o gasto. Nesse mesmo dia, ao voltar depois de receber umas visitas, comentou-nos: Quando vos dei essa indicação, pensei: Josemaria, não serás um pão-duro? Não! Percebo que, nesses pequenos detalhes, podemos viver a fineza do homem que cuida do que é de Deus ou do que leva a Deus. A vida dos homens está cheia desses pequenos esforços, nos quais se concretiza a realidade da nossa resposta, vivendo também um desprendimento de tudo o que utilizamos.

Não resta dúvida de que esse cuidado com as pequenas coisas contribuía também para disfarçar a carência de meios. Talvez pudesse acrescentar aqui algum outro episódio.

Enquanto se instalava a Sede Central do Opus Dei, verifiquei como mons. Escrivá tirava proveito de tudo para conseguir um ambiente simpático e familiar com o indispensável: por exemplo, fazer um reposteiro com retalhos de pano velho; visitar os adeleiros para adquirir coisas simpáticas que, por pouco preço e com algum conserto mínimo, pudessem servir; recolher fragmentos velhos de objetos utilizados para colocá-los em vitrines como lembranças, como elementos de decoração, etc. Aprendíamos constantemente a tirar o máximo partido do que estava em nossas mãos, sem deixar que nada se perdesse.

Nunca escrevia numa folha colocada diretamente sobre a mesa, para não riscar a madeira; punha por baixo uma cartolina ou vários papéis, de modo que a pressão da caneta, do lápis ou da esferográfica não deixasse marcas sobre o tampo. Ensinou-nos assim, aos que estávamos à sua volta, a não estragar as mesas. Além disso, insistia, serve de pequena mortificação e mantendes a casa com a alegria própria de um lar cristão, em que, com todo este conjunto de detalhes materiais, se vive a caridade cristã, facilitando o ambiente de família, e se sente a responsabilidade de levar adiante uma casa, evitando gastos desnecessários. Vi também como explicava às suas filhas o modo de enxugar as taças, para evitar que se quebrassem.

Em 1950, ensinou-me a subir as escadas, porque eu arrastava um pouco os pés em cada degrau. Depois de sugerir-me que podia oferecer a Deus essa mortificação de levantar e assentar os pés sem atritá-los, acrescentou: Além disso, pela bendita pobreza que vivemos, gastarás menos os sapatos sem tanto atrito, estragarás menos os degraus porque não os riscarás e, pensando nos outros, evitarás que as pessoas se desleixem em cuidar dos lugares onde vivem ou das coisas que utilizam.

Por essa mesma razão de pobreza, mandou colocar passadeiras de lona para cobrir o lugar dos tapetes por onde se transitava, a fim de que se estragassem menos; eram tiradas quando se recebiam visitas e colocadas de volta quando o convidado se ia embora. Ensinou-nos também que os tapetes deveriam ser mudados de posição com certa periodicidade, girando-os cento e oitenta graus, de modo que as áreas mais protegidas se tornassem lugar de passagem durante algum tempo, evitando assim que o tapete se desgastasse e fosse necessário trocá-lo num tempo relativamente curto.

Em 1953, cuidei de uma parte das obras da Sede Central em que se estavam terminando os últimos detalhes. De comum acordo com o eletricista, decidi deixar um pedaço de fio a descoberto, pois ficaria atrás de um biombo e não seria visto; como media dez centímetros, achei que não tinha importância. Mal chegou a esse cômodo, mons. Escrivá chamou-me e disse-me com clareza que era necessário acabar bem as coisas, por amor de Deus e por pobreza. Tinha-se pago ao eletricista para que fizesse a instalação sem nenhum fio elétrico à mostra, pois com o tempo aquele cabo poderia gastar-se ou enganchar-se em outro objeto. Além disso, o fato de que não se visse não constituía desculpa nenhuma, pois nós trabalhamos para Deus e devemos fazer tudo pensando que Ele o contempla.

Também se sabe, enfim, que levava esse cuidado ao extremo quando se tratava de coisas relacionadas com o culto divino.

Sancta sancte tractanda[2]. Escutei-lhe muitas vezes essas palavras. Adquiriam nele um significado profundo, que se traduzia na fé e na solicitude com que cuidava de tudo o que se referia diretamente ao culto de Deus. Esse cuidado – insistia – é prática do amor a Deus e prática da virtude da pobreza.

Queria que os objetos litúrgicos fossem utilizados somente para aquilo que tinham sido feitos; sem deixar-se levar pelo perfeccionismo, punha a máxima diligência nas coisas que se destinavam ao culto. Gostava de lembrar que em algumas Cortes – e mencionava a da Inglaterra –, antes das cerimônias de protocolo, se faz um ensaio e se utilizam os objetos com extremo cuidado. Acrescentava que com muito maior razão se devem preparar bem as cerimônias que se referem a Deus Nosso Senhor, ainda que se repitam todos os dias.

Sempre me surpreendeu a sua reação de dor quando, por ligeireza ou falta de consideração, se tratavam os objetos litúrgicos com desleixo. Vi-o chamar muitas vezes a atenção quando se deixavam cair as patenas, ou se colocavam mal os cálices, ou não se guardavam ordenadamente os paramentos.

Presenciei também a piedade e a unção com que limpava e conservava os vasos sagrados, e a maneira como ensinava os sacerdotes a purificar os cálices e as patenas, para não riscar o dourado nem forçar a copa, para evitar amolgadelas e para que o pé não se quebrasse.

Animou milhares de sacerdotes a velar com especial afeto pela dignidade, limpeza e qualidade dos retábulos, de tal maneira – encarecia-lhes – que os vossos paroquianos ou as pessoas que dependem do vosso trabalho espiritual vejam através dessas realidades a vossa fé, o vosso amor, a vossa paixão pelo Senhor.

Em 2 de outubro de 1968, encontrava-se na Espanha, numa casa de retiros do sul da Península chamada Pozoalbero. Era o aniversário da fundação da Obra e por isso teve-se a Bênção solene com o Santíssimo. Era um dia bastante quente e tinham-se preparado alguns paramentos emprestados, muito ricos, mas muito pesados. Perguntaram-me se era oportuno utilizá-los, e, pelo calor que fazia, sugeri que se empregassem os habituais. Com o seu desejo de desaparecer, mons. Escrivá participou da cerimônia escondido num canto. Quando terminou, perguntou-nos se não havia paramentos melhores para esses dias solenes. Quando lhe respondi que sim e lhe expliquei o motivo da minha indicação, sublinhou: A tua caridade dá-me alegria, masdaqui em diante, se não houver alguma razão de verdadeiro peso, fomenta o esplendor no culto: os incômodos do calor neste caso eram mínimos, e todos os incômodos serão sempre mínimos ao lado da generosidade que Deus teve e tem conosco. Não o esqueças em toda a tua vida, e ensina-o aos outros: a Deus, devemos dar-lhe sempre o melhor.


[1] “Presta-me contas da tua administração”: Lc 16, 2.

[2] “As coisas santas devem ser tratadas santamente”.


Trecho do livro "Recordações sobre Monsenhor Escrivá", entrevista de Salvador Bernal a Mons. Javier Echevarría.