Contrição

“Cada vez que fazes um ato de contrição, recomeças, porque dás a Deus um novo amor”. A experiência da “Contrição” ocupa um lugar importante na mensagem de São Josemaria. Este texto, do “Diccionario de san Josemaría Escrivá de Balaguer” explica algumas chaves do seus ensinamentos.

Muitas vezes, São Josemaria dizia que a melhor das devoções são os atos de contrição. “A vida espiritual é - repito-o até cansar, de propósito - um contínuo começar e recomeçar. - Recomeçar? Sim! De cada vez que fazes um ato de contrição - e deveríamos fazer muitos diariamente -, recomeças, porque dás a Deus um novo amor.” (Forja 384). A doutrina sobre a contrição ocupa um lugar importante em sua mensagem; vamos analisá-la partindo da sua conexão com outra questão decisiva: a conversão.

1. Necessidade da conversão e da contrição cristãs

Jesus começou a sua pregação do anúncio do reino de Deus com a chamada à contrição, ao arrependimento e, como consequência, à conversão: “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo; fazei penitência e crede no Evangelho” (Mc 1, 15). A conversão implica um profundo reconhecimento de nossa condição de pecadores, das nossas misérias, uma humildade especifica que deteste o pecado e saiba deixar todas as insuficiências que arrastamos – as que são consequência do pecado original e as causadas por culpa nossa – nas mãos do Senhor mediante atos verdadeira e profundamente contritos. Isto é necessário quando se começa a viver uma vida autenticamente cristã. É, porém, igualmente necessário depois de anos de luta ascética exigente, já que com o passar do tempo se veem os próprios defeitos com mais clareza e pesam mais. Tal experiência não constitui motivo de surpresa, é antes algo muito normal na vida interior. Nenhum santo se sentia santo porque conhecia perfeitamente a discrepância que há entre o amor afetivo e o amor efetivo a Deus (O tema é recorrente no Tratado do amor a Deus de São Francisco de Sales, na Prática do amor a Jesus Cristo de Santo Afonso Maria de Ligório e em obras similares). É preciso reagir com visão sobrenatural, ver as coisas sob a luz da fé, que nos diz: uma das consequências do pecado original é a nossa constante inclinação ao pecado e ao erro. Apesar da luta ascética, dar-se conta desta inclinação pode levar à tentação de perder a paz e a alegria, caindo em escrúpulos que não veem os próprios defeitos como faltas de amor a Deus. Para sair dessa situação, só há um caminho, a verdadeira humildade. “Se cometeste um erro, pequeno ou grande, regressa a Deus depressa! Saboreia as palavras do salmo: cor contritum et humiliatum, Deus, non despicies, o Senhor nunca desprezará um coração contrito e humilhado” (Forja 172).

São Josemaria gostava sempre de ter bem presente a parábola do filho pródigo (Lc 15), “que nunca nos cansaremos de meditar” (É Cristo que passa, 178), pois “de certo modo, a vida humana é um constante retorno à casa do nosso Pai. Retorno mediante a contrição, mediante a conversão do coração, que se traduz no desejo de mudar, na decisão firme de melhorar de vida, e que, portanto, se manifesta em obras de sacrifício e de doação” (É Cristo que passa, 64).

2. Voltar ao nosso Pai Deus, mediante o sacramento da Penitência

Este voltar tende por sua própria natureza ao sacramento da Penitência. “Retorno à casa do Pai por meio desse sacramento do perdão em que, ao confessarmos os nossos pecados, nos revestimos de Cristo e nos tornamos assim seus irmãos, membros da família de Deus. (...) O que menos importa é a nossa dívida. Como no caso do filho pródigo, basta simplesmente abrirmos o coração, termos saudades do lar paterno, maravilhar-nos e alegrar-nos perante o dom divino de nos podermos chamar e ser verdadeiramente filhos de Deus, apesar de tanta falta de correspondência da nossa parte” (ibidem). A contrição tem, pois, estreita relação, por um lado, com a filiação divina que, segundo o ensinamento de São Josemaria, constitui o fundamento de toda a vida espiritual, e, por outro, com o sacramento da Penitência.

Consideremos em primeiro lugar sua relação com a filiação divina: “A consciência de nossa filiação divina dá alegria à nossa conversão: diz-nos que estamos voltando para a casa do Pai” (Ibidem). O homem precisa converter-se mediante a contrição, compreendendo o dom imenso e gratuito da sua filiação divina. A graça leva-nos a essa conversão sempre que, de uma forma ou outra, nos afastamos de Deus “Se agisses de acordo com os impulsos que sentes em teu coração e os que a razão te dita, estarias continuamente com a boca por terra, em prostração, como um verme sujo, feio e desprezível... diante deste Deus que tanto te vai suportando” (Caminho 597). Esta situação, porém, não nos deve tirar a paz e a confiança no Senhor. “A indulgência é proporcional à autoridade. Um simples juiz tem de condenar – talvez reconhecendo fatos atenuantes – o réu convicto e confesso. O poder soberano de um país, algumas vezes, concede uma anistia ou um indulto. À alma contrita, Deus a perdoa sempre” (Sulco, 763). “Se nos arrependemos, se brota do nosso coração um ato de dor, se nos purificamos no santo sacramento da Penitência, Deus vem ao nosso encontro e perdoa-nos. E já não há tristeza: é muito justo regozijar-se, porque o teu irmão tinha morrido e ressuscitou; estava perdido e foi encontrado (Lc 15, 32)” (É Cristo que passa, 178).

Os atos de contrição devem respirar o ar da filiação divina autenticamente vivida: “Um filho de Deus trata o Senhor como Pai. Não como quem presta um obséquio servil, nem com uma reverência protocolar, de mera cortesia, mas com plena sinceridade e confiança. Deus não se escandaliza dos homens. O nosso Pai do Céu perdoa qualquer ofensa quando o filho volta de novo para Ele, quando se arrepende e pede perdão” (É Cristo que passa, 64).

Mas se São Josemaria insiste na filiação divina, enfatiza a sua relação com o sacramento da Penitência, como o indica a Tradição cristã. Segundo ensinamento do Concílio de Trento, “Os atos do penitente são como que a matéria deste sacramento, a saber: a contrição, a confissão e a satisfação” (DH, 1673). Doutrina que é precisada acrescentando a seguir que a contrição ocupa o primeiro lugar entre os três atos do penitente (cfr. DH, 1674).

Deixando claro que este sacramento é absolutamente necessário para o perdão dos pecados graves, São Josemaria vai além, recomendando o uso frequente, inclusive semanal, deste sacramento. Tal conselho parte de uma razão teológica: a importância do perdão, também das faltas leves, e o fato de que todos os sacramentos implicam uma especifica configuração com Cristo, também o sacramento da Penitência. A configuração com Cristo neste sacramento torna o penitente partícipe de Cristo crucificado na medida em que Cristo, ao assumir a condição humana, submeteu-se ao juízo de Deus Pai sobre o pecado. Recebendo este sacramento, o penitente adquire uma especial dignidade ao ficar incorporado, mediante a sua contrição, à obra redentora de Jesus, a essa reconciliação realizada pela Cruz de Cristo, que alcança a humanidade inteira. São Josemaria diz: “Jesus: que eu nunca mais te perca (...). E então a desgraça e a dor nos unem, como nos uniu o pecado, e saem de todo o nosso ser gemidos de profunda contrição e frases ardente que a pena não pode, não deve registrar” (Santo Rosário, Quinto Mistério Glorioso); “Acaba sempre teu exame com um Ato de Amor – dor de Amor – : por ti, por todos os pecados dos homens...” (Caminho, 246).

3. Dor de amor

São Josemaria repete com frequência que a santidade pessoal consiste em identificar-se com Cristo, em “ser outro Cristo, o próprio Cristo”; tarefa que dura toda a vida e que leva a manter o desejo de conversão de forma constante. Pode dar-se o caso de que a conversão inicial parta de um grande afastamento de Deus, mas mesmo então não se deve desesperar: “Bem fundo caíste! – Começa os alicerces daí de baixo. – Sê humilde. – ‘Cor contritum et humiliatum, Deus, non despicies’. – Não desprezará Deus um coração contrito e humilhado” (Caminho 712). “Padre: como pode suportar todo este lixo? disseste-me, depois de uma confissão contrita. – Calei-me, pensando que, se a tua humildade te leva a sentir-te assim – como lixo, um montão de lixo! – ainda poderemos fazer algo de grande de toda tua miséria” (Caminho 605). Devemos ir sempre em frente pelo caminho cristão com plena confiança em Deus: “O Senhor converteu Pedro – que O tinha negado três vezes – sem lhe dirigir sequer uma única censura: com um olhar de Amor – É com esses mesmos olhos que Jesus nos olha, depois de nossas quedas. Oxalá possamos dizer-Lhe, como Pedro: ‘Senhor, Tu sabes tudo: Tu sabes que eu te amo! ’ e mudemos de vida” (Sulco 964).

Na vida espiritual habitual, porém, não se trata sempre de um começo completamente novo “Na nossa vida, na vida dos cristãos, a primeira conversão – esse momento único, que cada um de nós recorda, e em que se percebe claramente tudo o que o Senhor nos pede – é importante; mas ainda mais importantes, e mais difíceis, são as sucessivas conversões. E para facilitar o trabalho da graça divina com essas conversões sucessivas, é preciso conservar a alma jovem, invocar o Senhor, saber escutar, descobrir o que vai mal, pedir perdão (...). Ele nos escuta, e não deixará de atender às súplicas de um coração contrito e humilhado” (É Cristo que passa, 57; as palavras finais são uma citação do Salmo 51, que São Josemaria meditava diariamente). Justamente quando se tem anos de luta ascética, vendo as próprias faltas de correspondência ao amor de Deus, podemos cair na tentação de considerar as deficiências como algo inevitável. É então, precisamente, que se deve manter a alma jovem e profundamente humilde, e recear qualquer forma de aburguesamento espiritual. “Adverte a Escritura Santa que até o justo cai sete vezes (Pr 24, 16). Sempre que li estas palavras, a minha alma estremeceu com uma forte sacudidela de amor e de dor” (Amigos de Deus, 215).

A dor dos pecados é perfeita quando é uma “dor de amor”, quando é expressão de um amor que nasce do mais fundo da alma. Assim insistiu fortemente São Josemaria: “Dor de Amor. – Porque Ele é bom. – Porque é teu Amigo, que deu a sua Vida por ti. – Porque tudo o que tens de bom é dele. – Porque O tens ofendido tanto... Porque te tem perdoado... Ele!...a ti! – Chora, meu filho, de dor de Amor” (Caminho, 436; cfr. Caminho, 503). “Choras? – Não te envergonhes. Chora: sim, os homens também choram, como tu, na solidão e diante de Deus. – Durante a noite, diz o rei Davi, regarei de lágrimas o meu leito. Com essas lágrimas, ardentes e viris, podes purificar o teu passado e sobrenaturalizar a tua vida atual” (Caminho 216). “Quanto não devo a Deus, como cristão! A minha falta de correspondência, perante essa dívida, tem-me feito chorar de dor: de dor de Amor. ‘Mea culpa! ’ – Bom é que vás reconhecendo as tuas dívidas. Mas não te esqueças de como se pagam: com lágrimas...e com obras” (Caminho 242).

Nesse contexto entende-se bem que, como já vimos, para São Josemaria, a vida espiritual seja um contínuo começar e recomeçar. “Vivia, com esperança, o hoje e agora[1] (Bernal, 1976, p. 215). Estar aqui e agora na presença de Deus é fundamental em todo o ensinamento do fundador do Opus Dei. “Que os tropeços e as derrotas já não nos afastem mais dele. Como a criança débil se lança compungida nos braços vigorosos de seu pai, tu e eu nos arrimaremos ao jugo de Jesus. Só essa contrição e essa humildade transformarão nossa fraqueza humana em fortaleza divina” (Via Sacra, 7ª Estação). Como o amor não tem limites, cada momento apresenta – de certa forma – uma nova abertura ao amor de Deus, e “não esqueças que a Dor é a pedra de toque do Amor” (Caminho 439). A “dor de Amor” deve, portanto, ser algo constante na vida interior. “Fomenta na tua alma o afã de reparação, para conseguires cada dia uma contrição maior” (Forja, 198).

A dor e a contrição convertem-se aqui em desagravo, que se estende aos pecados de todos os homens. “Renova durante o dia os teus atos de contrição: olha que se ofende a Jesus sem parar e, infelizmente não O desagravam a este mesmo ritmo. Por isso venho repetindo desde sempre: os atos de contrição, quantos mais melhor! Serve-me tu de eco, com a tua vida e com os teus conselhos” (Sulco 480). Esta solidariedade com o gênero humano é uma consequência da íntima união com Cristo que se oferece por todos os homens na Cruz. Assim o Fundador do Opus Dei aconselha: “Acaba sempre o teu exame com um ato de Amor – dor de Amor – por ti, por todos os pecados dos homens... – E considera o cuidado paternal de Deus que afastou de ti os obstáculos para que não tropeçasses” (Caminho 246).

Finalmente, um texto que nos situa diante do horizonte mariano da contrição: “Dirige-te a Nossa Senhora e pede-lhe que faça a oferta – prova do seu carinho por ti – da contrição, da compunção pelos teus pecados e pelos pecados de todos os homens e mulheres de todos os tempos, com dor de Amor. E, com esta disposição, atreve-te a acrescentar: Mãe, Vida, minha Esperança, conduz-me pela tua mão...e, se há alguma coisa agora em mim que desagrada ao meu Pai-Deus, concede-me que a veja e que, entre os dois, a arranquemos. Continua sem medo: Ó clementíssima, ó piedosa, ó doce Virgem Santa Maria, roga por mim, para que, cumprindo a amabilíssima Vontade do teu Filho, seja digno de alcançar e gozar as promessas de Nosso Senhor Jesus” (Forja 161).


[1] Salvador Bernal, perfil do Fundador do Opus Dei, p. 282, Quadrante, São Paulo, 1978.