Contemplação no meio do mundo

“Viver ao lado de Josemaria Escrivá significou para mim uma constante lição de unidade de vida: cada um dos seus gestos, todas as suas palavras, todos os projetos que empreendia (...) nasciam da fé, tomavam forma na esperança da ajuda divina, manifestavam o desejo de servir a Deus”.

São Josemaria Escrivá. Sentirei uma profunda emoção ao ver colocado, no momento da canonização, o adjetivo “santo” antes do nome daquele a quem mais devo na terra. O Senhor concedeu-me a graça de ser testemunha dessa santidade de vida, dia após dia, durante vinte e cinco anos.

Entre as características que me parecem mais adequadas para descrever a figura de Josemaría Escrivá, destacarei sobretudo uma: a unidade de vida. Com esta expressão, a teologia espiritual costuma designar a idéia, presente em tantos Padres da Igreja, da junção de Marta e Maria, da fusão da ação com a contemplação, da oração com o trabalho (termo que utilizo aqui em sentido amplo, abrangendo tanto os deveres profissionais como os familiares, as relações sociais, os deveres cívicos em geral).

A unidade de vida brota da ação do Espírito Santo na alma; não se trata de uma característica meramente humana, resultado da ordem mental, de uma organização eficientíssima ou do esforço pessoal por atingir uma espécie de tranquilidade de ânimo. É de certo modo um sinônimo de santidade e, portanto, uma meta para todos os cristãos.

A Carta Apostólica Christifideles laici realça a sua importância no contexto da santificação da vida cotidiana (cfr. n. 17): somente se forem vistos à luz dessa unidade, os afazeres de cada dia podem ser encarados como ocasiões de união com Deus; mais ainda, esses afazeres se revelam como que transfigurados pela graça. Quando nos deixamos absorver pela dimensão horizontal da existência, a cotidianidade (se não por outro motivo, ao menos pelo próprio ritmo imposto pelas tarefas que a sobrecarregam) gera dispersão: pressa, distração, urgência de encontrar soluções para os problemas prementes, a ponto de não deixar espaço para outros pensamentos... As obrigações do trabalho tendem a subtrair tempo de convivência com a família; os modelos da sociedade consumista apagam a força de um ideal que pede austeridade e sacrifício; as necessidades econômicas absorvem toda a energia, em prejuízo de outros deveres mais altos. E assim o coração do homem, exposto a essa tremenda pressão, corre o risco de fragmentar-se. Ao contrário, quando se tem unidade de vida, as tensões às quais somos diariamente expostos se conjugam com harmonia.

Viver ao lado de Josemaria Escrivá significou para mim uma constante lição de unidade de vida: cada um dos seus gestos, todas as suas palavras, todos os projetos que empreendia estavam explicitamente orientados para o Senhor. Nasciam da fé, tomavam forma na esperança da ajuda divina, manifestavam o desejo de servir a Deus.

Nele se via encarnado o programa expresso nestas palavras de Caminho: “Dizia uma alma de oração: nas intenções, seja Jesus o nosso fim; nos afetos, o nosso Amor; na palavra, o nosso assunto; nas ações, o nosso modelo” (n. 271).

Assim como na pessoa de Cristo se unem o humano e o divino – ensinava Josemaria Escrivá –, do mesmo modo devem unir-se existencialmente no cristão – chamado a transformar-se em outro Cristo, no próprio Cristo – os traços humanos e sobrenaturais da própria vida.

Além da vivência pessoal, uma assídua reflexão conduziu Josemaria Escrivá a detectar com grande lucidez as implicações da unidade de vida. Essa unidade comporta, antes de tudo, a coerência entre a fé e as obras, o pleno respeito pela lei moral, sem restrições nem soluções de compromisso, em todas as situações (familiares, profissionais, etc.) que o cristão é chamado a enfrentar.

Profundamente consciente do valor exemplar da coerência com a fé, o fundador do Opus Dei fazia-nos observar que disso depende, em grande parte, a contribuição que todos os fiéis devem prestar à edificação do Reino de Deus sobre a terra. Nesse contexto, a Christifideles laici (n. 59) lembra a clareza com que o Concílio convoca os leigos a superar qualquer fissura entre a fé e a conduta, «deixando-se conduzir pelo espírito do Evangelho» no cumprimento dos deveres terrenos (Const. Past. Gaudium et spes, n. 43).

Graças a esse enfoque da unidade de vida, pode-se compreender melhor a insistência com que o fundador do Opus Dei explicava que a primeira condição para santificar o trabalho é trabalhar bem, não só com diligência, mas sobretudo com sentido de justiça e caridade para com o próximo (colegas ou clientes, colaboradores, subordinados ou superiores): “Temos que trabalhar muito na terra, e temos que trabalhar bem, porque essas ocupações habituais são a matéria que devemos santificar” (Amigos de Deus, n. 202). Uma atividade exercida pelo recurso à improvisação, com superficialidade, com indolência, não traz nenhum benefício ao bem comum, não só pelo seu vazio substancial, mas principalmente porque não pode ser oferecida a Deus. Esta constatação leva-nos a dar um importante passo adiante nas nossas reflexões sobre a unidade de vida: a busca da perfeição no trabalho é inseparável da presença de uma finalidade expressamente sobrenatural.

O texto citado prossegue assim: “Mas nunca nos esqueçamos de as realizar por Deus. Se as fizéssemos por nós mesmos, isto é, por orgulho, só produziríamos folharada; e nem Deus nem os homens conseguiriam saborear um pouco de doçura em árvore tão frondosa”.

Fica, assim, focalizado o núcleo central do nosso pensamento: obtém-se a instauração de uma verdadeira unidade entre as várias esferas da nossa vida quando todas são elevadas, in actu, à ordem da graça, ou seja, quando são referidas hic et nunc a Deus. “Nós, os cristãos” – escreveu esse sacerdote santo – “não suportamos uma vida dupla: mantemos uma unidade de vida, simples e forte, em que se fundamentam e se compenetram todas as nossas ações” (É Cristo que passa, n. 126). Não se trata de uma vaga aspiração, de um genérico estado de ânimo de nostalgia do divino.

Para São Josemaria, a conquista de uma unidade dessa natureza representa “uma condição essencial para os que procuram santificar-se no meio das circunstâncias habituais do seu trabalho, das suas relações familiares e sociais. Jesus não admite essa divisão” (Amigos de Deus, n. 165).

As citações poderiam multiplicar-se até o infinito, mas parece-me que o que acabamos de ver é suficiente para fundamentar a idéia de que a unidade de vida – como tudo o que diz respeito à simplicidade, à harmonia, à ausência de desagregação – traz em si mesma um reflexo do divino, uma vez que Deus é unidade. Por isso, nela se pode legitimamente enxergar um vértice da vida espiritual. Refiro-me à contemplação no meio do mundo, que representa um ponto de convergência de toda a mensagem espiritual de São Josemaria Escrivá. A ele me dirijo agora para pedir que nos ajude a todos nós, neste dia de abundantes graças, a dar um passo decisivo rumo a essa meta de vida interior.

Artigo do L’Osservatore Romano, 6 de outubro de 2002, publicado no Brasil pela Gazeta do Povo. D. Javier Echevarría, Bispo Prelado do Opus Dei de 1994 a 2016.

    D. Javier Echevarría // Gazeta do Povo