Combate, proximidade, missão (1): “Escolhe a vida”

Primeiro capítulo de uma nova série sobre o caminho para a santidade, uma aventura em não importa apenas “dar-se”, mas, acima de tudo, “receber-se”.

Primer capítulo de una nueva serie sobre el camino hacia la santidad, una aventura en la que no solo se trata de «darse» sino, sobre todo, de «recibirse».

Como um príncipe. Era assim que o rapaz se sentia, apesar da sua pouca idade e das suas roupas modestas e gastas, quando entrava na igreja e ouvia o órgão tocando a todo vapor. “Tinha a impressão de que o instrumento cumprimentava a mim e aos meus companheiros como se fôssemos príncipes”, contaria muitos anos depois, relembrando sua infância em Canale d'Agordo, um pequeno vilarejo no nordeste da Itália. Naquela experiência de infância, Albino Luciani identificava o início de “uma vaga intuição, que mais tarde se tornou uma certeza convicta de que a Igreja Católica não é apenas algo grandioso, mas que também engrandece os pequenos e os pobres, honrando-os e elevando-os”[1].

Escolher a vida

Essas palavras do Bem-aventurado João Paulo I evocam naturalmente as de Santa Maria no Magnificat. A palavra que abre o canto de nossa Mãe significa engrandecer, cantar a grandeza de alguém. Maria exalta a Deus porque Ele engrandece os pequeninos. “Mostrou a força de seu braço: dispersou os soberbos de coração. Derrubou do trono os poderosos e elevou os humildes. Encheu de bens os famintos, e despediu os ricos de mãos vazias” (Lc 1,51-53).

Juntamente com esse cântico de Maria, São Lucas também nos transmitiu uma expansão do coração do Senhor que, em certo sentido, poderíamos chamar de Magnificat de Jesus. Como sua Mãe em Ain Karim, quando o carregava em seu ventre, Jesus agora fica cheio de “alegria no Espírito Santo”, vendo como Deus se aproxima dos pequeninos: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste essas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado. Tudo me foi entregue pelo meu Pai. Ninguém conhece quem é o Filho, a não ser o Pai; e ninguém conhece quem é o Pai, a não ser o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Lc 10,21-22).

Mas o que é que foi revelado aos pequeninos? Em que consiste essa revelação aos humildes, começando com Maria e José, e continuando com os apóstolos e as mulheres que acompanharam o Senhor, até tantos cristãos ao longo de vinte séculos? O que os torna grandes? Uma passagem de Deuteronômio pode nos guiar para uma primeira resposta. O Senhor fala ao coração de seu povo, em um tom ao mesmo tempo solene e terno: “Vê que eu hoje te proponho a vida e a felicidade, a morte e a desgraça (...). Tomo hoje o céu e a terra como testemunhas contra vós de que vos propus a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e teus descendentes, amando ao Senhor teu Deus, obedecendo à sua voz e apegando-te a ele a fim de que habites na terra que o Senhor jurou dar a teus pais, Abraão, Isaac e Jacó” (Dt 30,15.19-20).

O fato de essas palavras alternarem “tu” e “vós” parece mostrar que o Senhor não está falando ao seu povo em geral: está falando com cada um deles, porque a escolha pela Vida é feita no coração de cada uma de suas criaturas. São Josemaria escrevia “Vida”, com maiúscula, quando se referia à graça e à glória; à vida com Deus, aqui na terra e depois no céu. É comovente reler estas suas palavras de junho de 1975, poucos dias antes de ir para o céu: “todos somos a própria Vida de Cristo: e há tanto que fazer no mundo! Vamos pedir ao Senhor, sempre, que nos ajude a ser fiéis, a continuar o trabalho, a viver essa Vida, com maiúscula, que é a única que vale a pena: a outra não vale a pena, a outra se vai, como a água entre as mãos, escapa”[2].

“Escolhe a vida”. Com essas palavras fortes do Deuteronômio, que ressoam mil vezes no Evangelho[3], o Senhor está dizendo a cada um de nós: olha, eu criei você para viver, para ser feliz... Você vai me escolher, vai escolher a Vida? Foi isso que os “pequeninos” descobriram e escolheram: eles sabem que Deus é a fonte e o destino do desejo infinito de viver que carregam dentro de si. E eles não querem mais nada. Entenderam que triunfar na vida, alcançar a vida, é deixar que o amor de Deus os inunde e depois compartilhar este amor generosamente. De Maria, irmã de Marta, o Senhor dirá que “ela escolheu a melhor parte” e que “não lhe será tirada” (Lc 10,42). E consolará seus discípulos da mesma forma: “Não tenhais medo, pequenino rebanho, pois foi do agrado do Pai dar a vós o Reino” (Lc 12,32). Os “pequeninos” vivem de Deus; é isso que os torna grandes. E santidade é isso: viver de Deus e, de Deus, para os outros.

Santidade é dar-se, porém é ainda mais “receber-se”

Quando consideramos a vida dos santos, os “pequenos” que escolheram a Vida, com frequência vemos com destaque o significado da santidade deles em termos de renúncia, luta e “fazer-se pequeno”. É claro: o santo necessariamente se opõe a muitas forças adversas. Jesus preparou o caminho para nós e previu que isso aconteceria: “No mundo, tereis tribulações. Mas, tende coragem! Eu venci o mundo” (Jo 16,33); “Se me perseguiram a mim, também perseguirão a vós” (Jo 15,20); “Satanás vos chamou para vos peneirar como trigo” (Lc 22,31). Enfim, não há espaço para uma visão fácil da vida cristã, embora não exista nenhuma forma de vida fácil nesta terra: no final, sempre é necessário o sacrifício, a renúncia, a luta por vários fins, mais ou menos elevados.

“Enquanto combatemos – um combate que há de durar até a morte –, não excluas a possibilidade de que se ergam, violentos, os inimigos de fora e de dentro”[4]. O amor a Deus também encontra em nós várias formas de resistência, porque significa “perder coisas”: a pessoa abre mão de controlar tudo em sua vida ou de satisfazer todos os seus caprichos; corre o risco de perder a aprovação de algumas pessoas, ou de receber a sua cruz.... “Quando nos abandonamos nas mãos de Deus, é frequente que Ele nos permita saborear a dor, a solidão, as contradições, as calúnias, as difamações, os escárnios”[5]. Certamente a pessoa perde muito do que o mundo chama de “vida”. No entanto, quem perde a vida dessa maneira não a perde para um vazio, mas em Deus. “Pois quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la”. (Mt 16,25). O santo “se perde” em Deus e, assim, começa a “encontrar-se”.

E o que significa encontrar-se em Deus? São João escreve em sua primeira carta: “Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele que nos amou” (1 Jo 4,10). A frase grega está escrita em um tempo verbal específico, o aoristo, que é uma espécie de “passado aberto”. É o mesmo tempo verbal que domina tanto o Magnificat de Maria quanto o Magnificat de Jesus. O que se representa em todos esses casos são “ações que o Senhor realiza de forma permanente na história”[6], na história de cada um e de cada uma. Portanto, São João não está dizendo que Deus me amou de uma vez para sempre, mas que Deus está sempre me amando. E que toda vez que eu amo realmente, é Deus que está me amando e que está amando em mim. Aqui e agora.

Dessa forma, é verdade que o santo se entrega, que ele “perde sua vida”, mas é ainda mais verdade – no sentido de que é uma verdade que abrange e fundamenta a anterior – que o santo “se encontra” em Deus e “recebe” tudo de Deus, assim como Jesus se recebe inteiramente do Pai[7]. Essa é a fonte secreta do amor dos santos; é isso que lhes permite viver de uma forma que parece impossível ou insuportável a um olhar meramente humano. Assim, embora sintam diariamente todas as suas limitações e fraquezas, eles avançam com a alma “imersa em Deus, deificada”; neles “fez-se o cristão viajante sedento, que abre a boca às águas da fonte”.[8]

Os discípulos olham para Jesus com perplexidade, e Ele diz: “Eu tenho um alimento para comer que vós não conheceis” (Jo 4,32). Ele vive para fazer a vontade do Pai: essa é a sua vida, essa é a sua glória; Ele não precisa de mais nada (cf. Jo 4,33-34). Poucos momentos antes, havia dito à samaritana junto ao poço: “Se tu conhecesses o dom de Deus e quem é que te pede: ‘Dá-me de beber’, tu mesma lhe pedirias a ele, e ele te daria água viva” (Jo 4,10). O Senhor diz isso ao ouvido de cada um de nós. Se você conhecesse o dom de Deus, se percebesse o que quero lhe dar, não seria eu quem pediria um gole de água; não seria eu quem pediria o seu tempo, a sua força, a sua paciência, a sua luta... Seria você quem me perguntaria: Senhor, do que você precisa? Você já não mediria nem calcularia o que dá a Deus, porque perceberia que é Ele quem se dá a você cada vez que lhe dá algo, mesmo que seja uma moeda pequena, mesmo que seja um copo de água... Cada vez, é “todo um Deus”[9] que se entrega a você.

Talvez agora seja mais fácil entender por que, quando pensamos em santidade, também falamos de entrega, renúncia: é porque há uma resistência em nós. O mundo está ferido, os relacionamentos estão feridos, porque nossos corações estão feridos... Mas essa resistência, embora seja real, tende a perder força na medida em que nos unimos a Deus. O esforço para nos doarmos repetidamente não desaparece, mas se funde com o dom que sabemos que somos, com o amor infinito que nos abraça. Os homens e mulheres de Deus vivem em uma “paradoxal confluência de felicidade e dor”[10], como Jesus na Cruz; eles sentem com profunda certeza que estão recebendo mais do que dão: a sua alma “se sente e se sabe também fitada amorosamente por Deus, em todos os momentos”[11]. Como Santa Maria, eles sabem que Deus está fazendo grandes coisas neles (cf Lc 1,49); que Deus está amando neles, aquele que sempre ama primeiro, que é a fonte de seu amor.

A santidade consiste, portanto, no fundo, em entrar e permanecer nessa “corrente trinitária de amor”[12] que tem origem no Pai e que chega a nós por meio de Jesus, o amado, o primeiro amado: “Como meu Pai me amou, assim também eu vos amei. Permanecei no meu amor” (Jo 15,9). E esse amor do Pai e de Jesus no qual queremos permanecer é o Espírito Santo: é por isso que o chamamos de santificador[13] e doador de vida[14]. “E os santos de Deus? Oh, cada um dos santos é uma obra-prima da graça do Espírito Santo!”[15].

Combate, proximidade, missão

Com esses poucos compassos ficam traçados os eixos principais da série que está começando agora. Os capítulos que a compõem oferecem diferentes perspectivas sobre esse caminho de santidade que Deus quer que todos nós trilhemos, cada um à sua maneira: “pela direita, pela esquerda, em ziguezague, a pé, a cavalo”[16].

Os eixos da série podem ser resumidos em três palavras, que também definem as linhas principais da oração do Pai-Nosso: combate, proximidade e missão. Embora os três temas atravessem a série do início ao fim, porque estão sempre presentes na trajetória em direção a Deus, faz sentido parar um momento para considerar a razão dessa ordem, especialmente se tivermos em mente que, nessa jornada, o fundamental é o amor de Deus por nós.

Não parece necessário insistir na ingenuidade de pensar que é possível viver de Deus sem encontrar resistência, em nós e fora de nós. Mesmo que esse não seja o motor secreto do caminho para a santidade, nem o seu ponto de partida (na maioria das vezes), a luta não demora a chegar: “Filho, se decidires servir o Senhor, permanece na justiça e no temor e prepara a tua alma para a provação. Mantém o teu coração firme e sê constante, inclina teu ouvido e acolhe as palavras de inteligência, e não te assustes no momento da contrariedade” (Eclo 2,1-2). A provação, a tentação, o combate... são inevitáveis em um mundo ferido pelo pecado. “O Reino dos Céus sofre violência, e são os violentos que o conquistam” (Mt 11,12). Começar a reflexão a partir dessa perspectiva nos permite evitar uma visão excessivamente ingênua e “boazinha” do caminho para o céu. No entanto, também seria ingênuo e superficial pensar que a santidade consiste principalmente nessa luta. A santidade consiste em viver de Deus, em deixar que Ele viva em mim (cf. Gal 2,20).

“Deus está conosco o tempo todo (...) E está como um Pai amoroso – quer mais a cada um de nós do que todas as mães do mundo podem querer a seus filhos –, ajudando-nos, inspirando-nos, abençoando… e perdoando”[17]. Essa proximidade, pela qual sabemos que Deus nos ouve na oração e em todos os momentos, também se manifesta a nós por Deus por meio dos nossos irmãos e irmãs na fé: amizade, acompanhamento espiritual, os sacramentos.... Um cristão sabe que está sempre acompanhado de perto por Deus e por seus irmãos e irmãs; ele sabe que está sempre em casa. E isso, por sua vez, o aproxima dos outros, para dar a eles também o calor de lar que ele recebe constantemente. Foi assim que a Bem-aventurada Guadalupe viveu, como tantos outros: “A certeza que tinha da proximidade de Deus, do Seu amor por ela, encheu-a de simplicidade e serenidade e a fazia seguir sempre em frente procurando amar em tudo a Deus e aos outros, sem medo dos seus erros e seus defeitos”[18].

O caminho para a santidade não é, portanto, um caminho solitário, nem um projeto de salvação individualista. Na vida de um cristão, todas as coisas estão relacionadas, são parte de uma família. O Senhor, nossos irmãos e irmãs, nossos filhos, nossos pais, nossos amigos, nossos colegas... eles são a razão dos nossos esforços, das nossas vitórias. Se não fosse por eles, talvez parássemos de lutar, talvez desistíssemos... Mas sabemos que, assim como podemos contar com o apoio deles, eles contam conosco; em suma, eles precisam de nós: “Eu sou uma missão nesta terra, e para isso estou neste mundo. É preciso considerarmo-nos como que marcados a fogo por esta missão de iluminar, abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar”[19]. É assim que os santos viveram: de Deus e para Deus; dos outros e para os outros.

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Quando São Josemaria pensava no destino da nossa viagem, imaginava o momento em que “toda a Grandeza de Deus, toda a Sabedoria de Deus e toda a Beleza de Deus, toda a vibração, toda a cor, toda a harmonia” se derramariam “nesse pequeno vaso de barro que somos, cada um de nós”[20]. E virava para um lado, imaginando os seus filhos ainda acima: “Tenho uma fraqueza e é que eu amo muito vocês. Acho que meu Céu consistirá em entrar sorrateiramente por uma pequena porta e me colocar em um canto, olhando e amando a Santíssima Trindade. E de lá, escondido, ver minhas filhas e filhos no paraíso, bem alto, muito perto de Deus”[21].


[1] A. Luciani (Bem-aventurado João Paulo I), “In occasione del restauro dell’organo della chiesa di Canale d’Agordo”, em Opera Omnia, Vol. 9, EMP, Padua 1989, p. 457.

[2] São Josemaria, anotações de uma reunião familiar, 7/06/1975, citado em S. Bernal, Perfil do Fundador do Opus Dei, Quadrante, p. 207. Cf. também p.ex. Caminho, nn. 218, 255, 399, 737; Sulco, n. 817; Forja, nn. 777, 818.

[3] Trata-se de um dos fios condutores do evangelho de São João. Confrontar por exemplo os diálogos com a Samaritana (Jo 4, 10-14) e com Marta (Jo 11, 25-27); cf também Jo 5, 39-40; 7, 37-39; 10,10.

[4] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 214.

[5] Ibidem, n. 301.

[6] Bento XVI, Audiência, 15/02/2006.

[7] Cfr. Lc 10,22; Jo 5,26; 17,24; Sal 2,7.

[8] Amigos de Deus, n. 310.

[9] Amigos de Deus, n. 111.

[10] São João Paulo II, Carta apostólica Novo millennio ineunte (6/01/2001), n. 27.

[11] Amigos de Deus, n. 307

[12] São Josemaria, É Cristo que passa, n. 85.

[13] Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 739.

[14] Cfr. Missal Romano, Credo Niceno-constantinopolitano; Catecismo, n. 202.

[15] São João XXIII, Discurso, 5/06/1960.

[16] São Josemaria, citado em A. Sastre, Tempo de caminhar, Quadrante.

[17] Caminho, n. 267.

[18] F. Ocáriz,“Guadalupe: um caminho para o Céu na vida cotidiana”, "O São Paulo", 22/05/2019.

[19] Francisco,Evangelii gaudium, n. 273.

[20] São Josemaria, anotações de uma reunião familiar, 20/10/1968, citado em A. Sastre, Tempo de caminhar.

[21] São Josemaria, anotações de uma reunião familiar, 5/04/1970, citado em ibiídem.

Carlos Ayxelà