Ciência e fé em tempos de coronavírus

Por que Jesus não desceu da Cruz com um milagre? Por que Deus permite essa pandemia? O padre Giuseppe Tanzella-Nitti reflete sobre a relação entre a ciência e a fé nesses dias intensos e repletos de perguntas existenciais.

São semanas singulares, inéditas, as que estamos vivendo. Para quase todos nós é uma experiência que só poderia ser comparada, pelo seu alcance global e pelas medidas tomadas, aos tempos da última guerra mundial, como ouvimos contar dos nossos avós, ou no meu caso, dos meus pais. Todo o mundo está envolvido. Mas também todo o homem, a pessoa inteira. Pesquisa científica, emoções, sentimentos, relacionamentos, convicções pessoais.

Em uma palavra, fazemos perguntas científicas, mas também perguntas existenciais, que interpelam a fé dos que creem que a História e o mundo sejam conduzidos por um Deus Criador. Parece-me que hoje, em tempos de coronavírus, a ciência e a fé se relacionam de modo muito específico. Percebo-o pelas perguntas que muitos me fizeram nos últimos dias. Mas existem também algumas oportunidades, que surgem nestas circunstâncias e que não teriam surgido em outros momentos.

Todo o mundo está envolvido. Mas também todo o homem, a pessoa inteira

Cada um de nós já recebeu e recebe continuamente, através das redes sociais, comentários, conselhos, recomendações, encorajamentos. Já existem várias análises, algumas proféticas por terem sido feitas no passado, como aquela de Bill Gates; outras que projetam como será o nosso futuro, a nível econômico, psicológico, social. E há também as estatísticas cotidianas, que não são projeções, mas fatos reais de pessoas que estão trabalhando, lutando, e em muitos casos, infelizmente, também morrendo. Seguindo os temas que normalmente discutimos neste site*, queria compartilhar com vocês duas perguntas, que me fizeram nestes dias. Por que Deus permite tudo isso? (alguém, de modo mais direto, me perguntou por que Deus criou o coronavírus?). E, também, para que serve rezar? Nos estúdios de televisão de uma emissora nacional, um matemático impertinente qualificou a oração como superstição, e definiu como medieval (sic!) um país como o nosso [Itália] onde as pessoas param para rezar, declarando que a solução do problema está na ciência. E aqui vemos reafirmada uma oposição dialética entre as duas coisas.

O coronavírus, como as epidemias do passado, os terremotos e os tsunamis, leva ao questionamento sobre o sentido do mal físico, aquele que não é causado pela crueldade dos malvados, mas pelos processos da natureza, da qual fazemos parte. Não havendo um inimigo a ser desarmado, é Deus que vai parar no banco dos réus. As respostas que a tradição cristã e as pessoas que têm fé deram ao longo da História são várias, levando em conta também a época e a cultura a que se dirigiam. No passado se falava de punição divina, mas o próprio Jesus evita essa resposta (cf. Lc 13,1-5).

O coronavírus, como as epidemias do passado, os terremotos e os tsunamis, leva ao questionamento sobre o sentido do mal físico

Outros repropõem as reflexões de Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino: Deus não é a causa do mal, mas o permite para dele tirar um bem maior. Solução mais razoável, mas que deixa mais de um insatisfeito quando se pensa no preço a pagar por esse bem. Outros ainda observam que o escândalo do mal pode ser percebido somente por quem tem desejos de bem, quem espera por um mundo onde triunfem justiça e paz e, portanto, afirmaria implicitamente a esperança na existência de um Deus que reestabeleça tudo isso. Para o materialista e o ateu, ao contrário, não deveria haver expectativa alguma, nenhum tribunal para Deus; não haveria nenhum mal a ser curado, existiriam somente uma série de infortúnios.

Agostinho e Tomás não erram quando afirmam que, escondido atrás do mal, pode haver um bem maior; mas a solução não pode se basear em critérios quantitativos e proporcionais. Ao invés disso, deve ser compreendida pensando em uma Providência que, sendo a única que tem uma visão completa sobre o mundo, por ser a visão do Criador de todas as coisas, é a única que pode realmente conhecer o que é bem e o que é mal, o que é um obstáculo à realização do bem, ou o que conduz cada coisa a um fim de salvação.

escondido atrás do mal, pode haver um bem maior; mas a solução não pode se basear em critérios quantitativos e proporcionais

Não se trata de aceitar uma quantidade de mal para poder conquistar uma quantidade maior de bem, mas aceitar passar por aquilo que nós, com nosso olhar limitado de criaturas, chamamos mal, mas que aos olhos do Criador é reconhecido como bem, porque nos faz progredir no caminho da salvação, que só Ele conhece.

Não esqueçamos que a Sagrada Escritura não oferece respostas metafísicas ao problema do mal, só existenciais. A Jó, esmagado por males, Deus Criador pede para olhar a natureza ao seu redor, o céu estrelado e todas as criaturas, para se convencer de que existe uma Providência e que, se Deus cuida das menores criaturas, cuidará também de Jó, criado à Sua imagem. Pede-lhe que O reconheça como criador e que, portanto, confie n’Ele. E é existencial, não filosófica nem matemática, a resposta que chega através da Cruz de Jesus de Nazaré. Deus não evita o mal, não o anula, não o destrói, mas passa por ele, carrega-o sobre os ombros. Diz ao homem que está levando a cruz com ele, diz-lhe que não o deixará sozinho, não importa o que aconteça. Pede-lhe que confie. Como Ele confia no Pai, mesmo no aparente abandono.

Teria sido fácil descer da cruz e acrescentar um novo milagre aos anteriores, mas o ser humano teria ficado sozinho, com a sua dor e com a morte. Permanecendo na Cruz, Jesus não explica nada, mas acompanha, sofre junto, arranca do homem um ato de confiança. Só passando pelo mal, pode-se transformá-lo em bem. O mal não é um preço a pagar. Pelo contrário, aquilo a que chamamos mal pode, aos olhos de Deus, ser um caminho que leva ao bem; o homem, unindo-se a Cristo, pode transformar o mal em bem.

Teria sido fácil descer da cruz e acrescentar um novo milagre aos anteriores, mas o ser humano teria ficado sozinho

A oração é parte de tudo isso, porque é a manifestação de nos sabermos criaturas diante de um Criador de quem recebemos a vida, o ar que respiramos, a terra na qual habitamos. E reconhecemos que Ele pode ver o todo que nós, na nossa condição limitada, não conseguimos. Para saber o que é a superstição seria preciso saber primeiro o que é uma religião, porque a superstição representa um desvio e uma corrupção da religião. A oração, se sincera, não é nunca supersticiosa; é a confissão do vínculo de criaturas que nos une a Deus, um vínculo que nos constitui e que muitos, erroneamente, gostariam de romper, considerando que assim seriam mais livres, quando na verdade a criatura sem o Criador deixaria de existir.

A ciência nos oferecerá sem dúvida importantes instrumentos para sairmos da crise em que nos encontramos. Os avanços que, mais cedo ou mais tarde, nos permitirão sair dessa situação serão da pesquisa na medicina e biologia. Mas não bastam as vacinas. É o altruísmo dos profissionais da saúde, o sacrifício de quem assiste os doentes, cuida da logística, de quem que sabe servir ao próximo à custa da própria vida, o que, na Itália e no mundo inteiro, combaterá a pandemia.

É o altruísmo de quem sabe servir ao próximo à custa da própria vida que combaterá a pandemia

Duvido que essas atitudes sejam possíveis em uma sociedade que não saiba mais rezar. Pelo contrário, nascem da solidariedade e do amor de quem reconhece no outro um irmão; e isso já é oração. Duvido que, sem uma tradição cristã que nos ensinou a cuidar do ser humano, dando origem aos hospitais, tenham esses sido construídos na China ou em Calcutá, no século IV ou no XXI, uma sociedade consiga sair de uma pandemia. Duvido que sem a esperança de estar fazendo, diante da própria consciência ou diante de Deus, um bem que nos transcende, possa se manter por muito tempo, nos hospitais, a motivação daqueles que trabalham ali.

Talvez eu esteja sendo retórico, mas é um risco que decido correr. Copio também os versos da professora americana Kitty O’Meara, que viralizaram em poucas horas, escritos há alguns dias a respeito da pandemia que estamos vivendo. Contêm um desejo que estendo a todos. E tenho certeza de que interpretam o sentimento de muitos de nós. Falam-nos daquelas oportunidades escondidas e de como elas podem nos ajudar a transformar o mal em bem, curando a todos.

E as pessoas ficaram em casa
e leram livros e ouviram
e descansaram e fizeram exercícios
e fizeram arte e brincaram
e aprenderam novos modos de ser
e pararam
e ouviram mais profundamente
Houve quem meditou
quem rezou
quem dançou
quem encontrou a própria sombra
e as pessoas começaram a pensar de modo diferente
e as pessoas ficaram curadas
E na ausência de quem vivia
de formas ignorantes
perigosas
sem sentido e sem coração,
a terra também começou a ser curada
e quando o perigo acabou
e as pessoas se reencontraram
choraram pelos mortos
e fizeram novas escolhas
e sonharam novas visões
e criaram novos modos de vida
e curaram completamente a terra
assim como tinham sido curados.


* O artigo original foi publicado no dia 21 de março de 2020 em disf.org [Documentazione interdisciplinare di scienza e fede].