Que se realize o que Deus quer!

No dia 28 de setembro de 1920, São Josemaria chegou ao Seminário de Saragoça. Esses anos em que permaneceu na cidade do Ebro representaram a preparação do instrumento do qual Deus se valeria para abrir um novo caminho de santidade dentro da Igreja universal.

Seminário de São Carlos. Foto: PMRMaeyaert - Own work, CC BY-SA 3.0.

Qualquer vida resiste a ser reduzida a meros dados biográficos, por mais relevantes que pareçam. No caso da vida dos santos, porém, sentimo-nos incitados a conhecer pelo menos os momentos que marcaram sua vida, inclusive os que parecem menores, pois são os santos que marcam o verdadeiro e profundo acontecer da História. É o caso, por exemplo, do acontecimento cujo centenário agora recordamos: a entrada de são Josemaria Escrivá no Seminário de Saragoça, no dia 28 de setembro de 1920.

em Saragoça acrescentou à sua oração habitual “Domina, ut sit” [Senhora, que seja] dirigido com fé à Nossa Senhora do Pilar

Com efeito, por mais que esta data pareça, vista de fora, irrelevante aos olhos de um biógrafo sem sentido histórico, aquele dia constituiu uma data importante, pois não apenas teve lugar o ingresso de um seminarista jovem (tinha 18 anos) no Seminário de Saragoça e que depois subiria aos altares, como, naquele dia sobretudo, o futuro santo começou sua etapa na capital aragonesa, onde viveria os cinco anos seguintes antes de mudar para Madri. A capital da Espanha seria definitivamente sua “Damasco”, pois foi lá que Deus lhe fez ver a missão que lhe estava pedindo desde que era adolescente: fundar o Opus Dei.

Se foi em Logronho que Josemaria teve vislumbres de que Deus lhe pedia algo ao ver pegadas na neve de um carmelita descalço, a etapa de Saragoça, por sua vez, representou a preparação do instrumento do qual Deus se valeria para abrir um novo caminho de santidade dentro da Igreja universal. E se em Logronho começou a repetir aquele “Domine, ut videam” [Senhor, que eu veja], como o cego de Jericó, em Saragoça acrescentou à sua oração habitual “Domina, ut sit” [Senhora, que seja] dirigido com fé à Nossa Senhora do Pilar. Deste modo, Logronho e Saragoça trouxeram a luz para ver e a força para querer das quais Josemaria necessitava para ser o Fundador do Opus Dei.

Os fundamentos de um grande edifício

O jovem Josemaria sentia a princípio certa inclinação para a Arquitetura. O senhor José, seu pai, aconselhou-o prudentemente a fazer estudos de Direito. Foi por essa época que Deus cruzou o seu caminho pedindo-lhe algo que ele estava ainda por descobrir. Aqueles vislumbres sobrenaturais acabaram por decidi-lo a entrar no Seminário de Logronho, cidade onde morava então, depois da mudança de Barbastro, sobretudo com o objetivo de estar mais disponível para o que Deus pudesse pedir-lhe. Mas, o que fazer em relação ao conselho do seu pai de estudar Direito?

Diante da mudança imprevista de planos, Josemaria reconsiderou então a possibilidade de mudar para alguma outra cidade onde pudesse estudar Direito ao mesmo tempo em que se preparava no Seminário para ser sacerdote. Seguiria assim o conselho de seu pai e poderia seguir o impulso de Deus. Foi por isso que decidiu ir para Saragoça, cidade próxima e de fácil comunicação com Logronho, que dispunha de prestigiosa Faculdade de Direito. Como o tempo viria a demonstrar, a escolha de fazer Direito além dos estudos no Seminário foi muito acertada para a missão que o esperava.

Nesse contexto e com essa finalidade, naquele 28 de setembro entrou como aluno interno no seminário de São Francisco de Paula, instalado dentro do Real Seminário Sacerdotal de São Carlos ( ocupava o terceiro e o quarto andares do edifício; ele ficou no terceiro, destinado aos alunos de Teologia). O presidente era na época dom Miguel de los Santos Díaz y Gómara, bispo auxiliar desde julho de 1920. Durante a sua estadia no seminário de São Francisco, o reitor era José López Sierra. Começa ao mesmo tempo a estudar na Universidade Pontifícia São Valério e São Bráulio, para começar o segundo ano de Teologia. Residirá no Seminário por quase cinco anos, até o verão de 1925; irá regularmente à Universidade até junho de 1924, data em que termina os seus estudos eclesiásticos em Saragoça.

Do ponto de vista externo, Josemaria sentiu muito essa mudança no itinerário de sua vida. Era a primeira vez que se afastava do lar já que, embora tivesse sido seminarista em Logronho, lá era aluno externo. Porém, foi pelo trabalho que a graça de Deus realizou nele, e pelas circunstâncias desses anos, que mais se notou, sobretudo a mudança interna naquele jovem que devia e queria preparar-se para servir fielmente a Deus no que lhe pedisse.

Bem se poderia dizer que foi em Saragoça que Josemaria Escrivá descobriu e assumiu algo que depois ensinaria sempre: a unidade de vida

Bem se poderia dizer que foi em Saragoça que Josemaria Escrivá descobriu e assumiu algo que depois ensinaria sempre: a unidade de vida, entendida como uma profunda e radical unidade que se deve dar em cada pessoa entre a vida interior de trato com Deus de quem deseja ser contemplativo e as manifestações externas e humanas de quem foi chamado a viver no meio do mundo.

Expert em humanidade

Os pais de São Josemaria cuidaram sempre com esmero da formação humana de seu filho. Durante a etapa em Saragoça aquele jovem continuou crescendo muito nessa faceta humana: virtudes como a ordem, a limpeza, o cuidado material das coisas (especialmente o esmero de tudo o que se referisse ao culto) ... e outras mais profundas como a compreensão e a paciência, ou a simpatia e a alegria. Eram virtudes que já possuía por natureza e que cultivava, mas naqueles anos se fortaleceram e se tornaram dominantes em sua maneira de ser e pensar. Naqueles anos também se formou intelectualmente com a leitura abundante de obras de literatura clássica que tanto o ajudaram a ter modelos humanos que serviam de referência; e evidentemente aproveitou ao máximo a formação teológica e jurídica que recebeu.

Em síntese, o aspecto humano da formação, tão necessário para poder estar verdadeiramente disponível diante da vontade de Deus, forjou-se sem dúvida em Saragoça em todas as suas manifestações. Pois bem, se fosse necessário destacar algumas virtudes poderíamos salientar o seu amor à obediência (lealdade humana e fidelidade sobrenatural) e sua enorme capacidade de relacionar-se e de viver a amizade, com as variadas formas que esta virtude pode adquirir.

Josemaria adquiriu então a capacidade que sempre teve de dedicar-se inteiramente a cada pessoa que conhecia

Com relação à obediência, foram anos em que aprendeu o valor definitivo que chega a ter essa virtude vivida até o extremo para poder ser fiéis à vontade de Deus. Enquanto vivia com humildade e impressionado com a expectativa de algo sublime (“e eu meio cego, sempre esperando o porquê”), submetia-se ao fluxo cotidiano da vida tal e como os acontecimentos iam tomando forma, sem poder nem querer controlá-los.

Descobriu que os projetos humanos vão se divinizando até coincidir com o querer divino quando nos mostramos verdadeiramente disponíveis à moção de Deus. É significativo e expressivo, nesse sentido um simples e pequeno gesto em seu primeiro dia de Seminário. Antes de cruzar o umbral da porta do edifício do São Carlos, entregou ao porteiro que os recebeu assombrado, os cachimbos e o tabaco, todos os utensílios do fumante. Era como um sinal de ruptura com pequenas inclinações, expressão visível da seriedade com que se dispunha a empreender este novo tempo de viagem que mostrava a disponibilidade e liberdade com que enfrentava o seu caminho. A partir daquele dia, Deus se encarregaria de dar-lhe naqueles anos muitas oportunidades de crescer nessas boas disposições.

No que se diz respeito à sua enorme capacidade de relacionar-se e travar amizades, não só tratava com grande afeto e atenção os outros seminaristas (e ao mesmo tempo com a fortaleza própria da caridade, que era necessária, sobretudo desde que, pouco tempo depois de ingressar, foi nomeado inspetor do Seminário), mas também soube fazer amizades que manteve durante toda a sua vida tanto com os colegas como com professores de grande porte intelectual, muito mais velhos que ele.

Mais ainda, longe de conformar-se com relacionamentos momentâneos que lhe vinham ao encontro durante aqueles anos, Josemaria adquiriu então a capacidade que sempre teve de dedicar-se inteiramente a cada pessoa que conhecia, algo tão próprio da alma sacerdotal que crescia em seu coração. Em suma, apesar da sua enorme juventude, aprendeu na época a ser “mestre e guia de santos”.

Piedade de aragonês

Junto da formação humana e da disposição de obedecer sem limites ao que o Senhor pedisse, Saragoça proporcionou a aquele jovem o tempo, o lugar e os meios para poder crescer e aprofundar nessa “piedade de aragonês” que lhe haviam inculcado na família.

Atualmente, esta pequena estátua de Nossa Senhora se encontra na sede central do Opus Dei em Roma.

Só pelo seu modo de assinar as poesias que na época gostava de escrever com ingenuidade e que rubricava com a expressão “O clérigo coração”, ou a alcunha de “O sonhador” ou “Rosa mística” com que alguns o qualificavam – com boa ou má intenção – mostram que aquele seminarista se destacava pela piedade.

O seu modo afetuoso de tratar a Deus já manifestava algo de que ia necessitar antes de qualquer outra qualidade: um enorme coração de carne trabalhado na forja do Coração de Cristo. Quanto o teria ajudado aquela imagem do Coração de Jesus envolvido em chamas que se pode ver no retábulo de uma capela lateral da Igreja de São Carlos e que muitos anos depois ele quis reproduzir no Oratório contíguo ao escritório e ao quarto no qual viveu tantos anos em Roma! Piedade firme, por mais que passassem os anos. Piedade de aragonês.

Santa Maria concedeu-lhe a fortaleza de pai e a ternura de mãe que depois seriam para ele imprescindíveis em sua missão apostólica

Evidentemente, o seu amor à Nossa Senhora também cresceu muito nessa época até transbordar, graças, entre outras coisas, às suas visitas diárias à Basílica do Pilar. Santa Maria concedeu-lhe a fortaleza de pai e a ternura de mãe que depois seriam para ele imprescindíveis em sua missão apostólica e selo indelével da sua alma de sacerdote. A ternura, como máxima expressão da virtude da fortaleza autêntica. A mesma ternura e fortaleza que Nossa Senhora do Pilar distribui abundantemente e sempre a aqueles que se aproximam dela com carinho de filhos pequenos. Piedade de aragonês.

A piedade eucarística estará também, na época, in crescendo, com a companhia de muitas horas que ele fazia durante aqueles anos a Jesus sacramentado (noites inteiras de oração). Ou aquelas procissões do Corpus Christi que percorriam o Coso, com a participação de centenas de homens maduros, com uma fé tão grande como os círios que carregavam, enquanto acompanhavam recolhidos a Jesus sacramentado! Ou seu temor e tremor ao dar as primeiras bênçãos com o Santíssimo Sacramento ou ao dar, simplesmente, a Sagrada Comunhão, aos paroquianos. Piedade rija e infantil. Piedade de aragonês.

Base da pequena imagem da Virgem do Pilar, onde são Josemaria escreveu a jaculatória Domina, Ut sit! - Senhora, que seja!-, com a ponta de um prego.

E evidentemente, a Cruz, forjadora da mais autêntica piedade. “Assim trata Deus aos que ama”, recordava anos depois, repetindo o ensinamento que aprendeu de um professor de Direito, que lhe contava a história de um homem que usava pedras muito especiais para o seu moinho de canela e que, na falta delas e sem poder consegui-las de forma alguma (não eram fáceis de adquirir, pois vinham da Alemanha) recebeu de outro o simples conselho de procurar no rio pedras parecidas àquelas de que necessitava e fazê-las girar e girar ajustadas à pedra do moinho, até que tomassem a forma conveniente. Assim, polindo umas pedras contra as outras, elas ficavam tão lisas como as da Alemanha... E concluía aquele professor olhando intensamente o jovem seminarista para que calasse em sua alma inexperiente: “assim trata Deus os que ama...Entendes, Escrivá?” Pois bem, assim como uma pedra rodada e polida pelas águas e pela graça, do Ebro e de Deus, durante cinco anos, Josemaria foi adquirindo a adequada forma de Cruz de que ia necessitar para ser a pedra do edifício de que o arquiteto divino ia precisar para fazer sua Obra, até o ponto de fazê-lo exclamar dirigindo-se ao Senhor, abrindo a alma, exatamente antes de partir para o seu primeiro destino, Perdiguera: “Como me tratas, como me tratas!” Costumava recordar, com dor, sua primeira Missa no Pilar oferecida pela alma do pai recentemente falecido, todo um cenário de dor, tendo gravada a imagem da sua mãe vestida de luto. Com o tempo compreenderia que tudo aquilo fazia parte importante dos planos de Deus que seus pais lhe ensinaram a viver. Seus pais, com a sua piedade de aragoneses.

Estes são, muito por cima, alguns dos motivos que tornam muito relevante a recordação daquele 28 de setembro de 1920. As biografias e estudos que graças a Deus foram sendo feitos, cada vez mais profundos e concretos, trouxeram à luz muitos mais que mostram até que ponto a etapa de São Josemaria em Saragoça serviu a Deus para modelar aquele instrumento fiel que seria o fundador do Opus Dei.


Pe. Antonio Schlatter Navarro