Barro e graça

Segundo a jornalista Pilar Urbano, “Os santos são gente que, desapegada da sua honra, converteu o sentido da honra no sentido do humor”. Em um capítulo da sua biografia sobre São Josemaria dá numerosos exemplos de como o fundador do Opus Dei procurava viver a virtude cristã da humildade.

A pergunta desconcertada e emocionante, a pergunta ousada e desvalida, a pergunta-chave de todos os enigmas, a pergunta da insônia e da solidão, a primeira e a última pergunta do filósofo, do cientista, do artista, foi e será sempre a mesma: o que é o homem?

O pensamento torna-se oceânico, em busca de uma resposta certeira. Contudo, essa interrogação foi respondida há milhares de anos na primeira página da Bíblia. Mas foi respondida com tal simplicidade, com tal candura, que as gerações humanas passam e passam sobre esse relato do Gênesis sem se recuperarem da surpresa.

Por esse relato, ficamos a saber que o homem é ao mesmo tempo telúrico e espiritual, fábrica terrosa e criatura divina, feitura de barro e feitura de Deus. Ou, de maneira ainda mais diáfana: terra úmida animada, “almada”, à semelhança e imagem de Deus.

Nessa equação dual amassa-se a insondável tensão do homem: barro, convidado ao endeusamento.

É o jogo apaixonante e misterioso do barro e da graça. E que outra coisa é o homem senão “barro agraciado”?

Quando se sabe com certeza que a origem e o porvir, o berço e o túmulo consistem indefectivelmente em pó, terra e cinza, pode-se sucumbir à tristeza e mergulhar no barranco da melancolia. Em sentido contrário, quando se adivinha às apalpadelas que há um Éden de deleites, onde é fácil “ser como deuses”, pode-se enlouquecer na vertigem da vaidade e da arrogância. Entre esses dois “desnorteamentos”, o traçado do caminho sensato seria atrever-se a “ser como Deus”, mas... perseguindo a parecença, tentando o contágio, trabalhando a imitação, procurando a semelhança. A semelhança, não a igualdade. E não é supérfluo recordar que, onde quer que se afirme uma semelhança, se assinala ao mesmo tempo uma dessemelhança. Por isso é preciso juntar ao realismo humilde de saber-se pó e cinza, terra et cinis, esse outro realismo, mais audaz, de identificar-se como imagem de Deus, imago Dei. É o jogo apaixonante e misterioso do barro e da graça. E que outra coisa é o homem senão “barro agraciado”?

Sabe o sábio que não há caos nem azar: uma ordem e umas leis físicas regem o cosmos, e “Deus não joga dados com o Universo”[1]. Mas o santo sabe mais: sabe que o homem não é “uma paixão inútil”[2]; que no seu interior palpita um anelo de infinito orientado para um horizonte de eternidade. Deus também não brinca fazendo bonecos de terracota. O homem, cada diferente homem, é “barro agraciado”; mas “agraciado”... a partir da liberdade.

Quem estende o arco da sua vida entre essas coordenadas da graça e da liberdade não desfalece nem se abate quando apalpa a fragilidade da sua massa de barro, e não se empertiga nem se envaidece quando percebe o mérito das suas conquistas ou a excelência da sua missão. Por ser agraciado, agradece. E por ser humilde, feito de humus, tem-se na conta de pouco, ou de nada, foge da caricatura magnificante e mede-se a si próprio com o metro elástico do bom senso de humor.

Talvez seja por isso que não há santidade taciturna. Como não há santidade orgulhosa.

Os santos são gente afável, alegre, simples, dessolenizada e sem inclinação para as tragédias; mais propensa ao sorriso que ao ricto amargo, mais amiga da conversa coloquial que do sermão emproado. Os santos são gente que, desapegada da sua honra, converteu o sentido da honra no sentido do humor.

Têm tantas coisas em comum a humildade – humus, terra, barro, chão – e o bom humor!

Têm tantas coisas em comum a humildade – humus, terra, barro, chão – e o bom humor!

1942. Josemaria Escrivá está no ponto de mira de demasiadas acusações, falatórios, injúrias e calúnias. Disparam de todos os lados. Começou, abrasante e cruel, o que ele chamará “a contradição dos bons”. Numa noite, na residência da rua Diego de León, desvelado e inquieto por todos esses ataques malévolos, vai ao pequeno oratório. Ali, sozinho, de joelhos diante do sacrário, chora como um homem acossado que não se pode defender. Soluça, sem se preocupar de enxugar as lágrimas que lhe queimam as faces. Ao cabo de algum tempo, com um vigor de inusitada valentia, encara Jesus Cristo:

– Senhor, se Tu não precisas da minha honra, eu para que a quero?

Passados anos, confessará: “E custava-me, custava-me porque sou muito soberbo, e caíam-me umas lagrimonas... Desde então, tudo me importa um pepino!”[3]

Nessa noite, desamarrado da sua própria estima – “se Tu não precisas da minha honra, eu para que a quero?” –, transpôs o umbral da genuína liberdade: não tem nada a temer, porque não tem nada a perder. Desdramatiza. Faz a reverência humilde da honra ao humor: “Tudo me importa um pepino!” E enrijando-se no único respeito que vale a pena, o respeito pelo divino, vai deixando para trás, muito para trás, os respeitos humanos. Em primeiro lugar, o respeito por si próprio.

Como um estribilho natural, repete com frequência uma espécie de ladainha da baixeza: “Não valho nada, não tenho nada, não posso nada, não sei nada, não sou nada..., nada!”[4] Quando os seus filhos se aproximam para felicitá-lo pelo aniversário, responde-lhes com a imagem do burrico, o jumento operoso de pelame rude, que lhe é tão familiar: “Sessenta anos, Josemaria: sessenta zurros!”[5] E também: “Passei o traço por baixo de todos estes anos e saiu-me... uma gargalhada!”[6]

O pincel humilde

Tem-se na conta do pincel com que o artista pinta o seu quadro, do envelope em que alguém envia uma carta com uma mensagem, do lodo de que o taumaturgo se serve para devolver a vista a um cego... E nada mais.

Em 1964, depois de uns dias em Pamplona, durante os quais levou a cabo uma pregação multitudinária de esplêndida eficácia, comenta como o encheram de vergonha as manifestações de afeto que recebia: “Levavam-me de cá para lá como um São Roque!” E acrescenta: “Depois vim a saber que houve muitas conversões, confissões de gente largada... E eu me lembrava do lodo com que o Senhor abriu os olhos ao cego do Evangelho...”[7]

E à jornalista rodesiana Lynden Parry Upton, que insiste em agradecer-lhe a sua conversão ao catolicismo e a sua vocação para o Opus Dei, responde sem pensar duas vezes:

– Todos temos tanto que agradecer ao Senhor! A mim não. Deus escreve uma carta e a mete dentro de um envelope. Tira-se a carta do envelope... e joga-se o envelope no lixo[8].

Repetirá em mil ocasiões que ele na Obra é apenas “um instrumento desproporcionado”, a quem Deus quis escolher “para que se veja que a Obra é dEle”.

Com o Papa São Paulo VI

Ao regressar um dia do Vaticano, depois da que seria a sua última entrevista com Paulo VI, Escrivá chega a casa muito sério, com a expressão pesarosa. Álvaro del Portillo nota que aconteceu alguma coisa. Pergunta-lhe, mas respeita o silêncio do Padre. Só ao cabo de algum tempo o ouvirá contar o que aconteceu: em plena conversa, Paulo VI detivera-se de repente e exclamara:

– O senhor é um santo!

A resposta de Escrivá fora um protesto espontâneo, sincero, enérgico:

– Aqui, na terra, só há um santo: o Santo Padre. Os outros somos todos pecadores.

Esse comentário do Papa era o que o acabrunhava e lhe enchia a alma de tristeza.

Os Custodes

Terá que sustentar “um braço-de-ferro” com a Santa Sé para não ser privado da “correção fraterna”, que é um meio de formação fundamental a que todos no Opus Dei têm direito. No Vaticano, observam-lhe que, segundo um costume arraigado, “um superior não pode ser corrigido pelos seus subordinados”. Mas Escrivá insiste em não ser privado dessa ajuda que tanto estima. Por fim, aprova-se a figura dos custodes ou admonitores, que vivem junto dele e o advertem ou corrigem com as observações que consideram oportunas. Durante muitos anos, terão esse encargo Álvaro del Portillo e Javier Echevarría.

Agradece a fortaleza de ânimo de que precisam aqueles que lhe fazem essas advertências pessoais, para que emende ou melhore algum ponto concreto da sua conduta. Assim o diz um dia a um grupo de mulheres da Obra:

“Também me fazem advertências a mim, e recebo-as de cabeça baixa. Se alguma vez penso que não têm razão, retifico... e vejo que quem está enganado sou eu[9]”.

Durante a construção dos edifícios de Villa Tevere, vai um dia conversando com várias das suas filhas enquanto lhes mostra os avanços das obras. Acompanha-os Álvaro del Portillo. A certa altura, o Padre detém-se e, apoiado no peitoril de um andaime, faz-lhes esta confidência:

– O pe. Álvaro fez-me hoje uma correção. E custou-me aceitá-la. Tanto, que fui um momento ao oratório e, uma vez ali: “Senhor, Álvaro tem razão e não eu”. Mas a seguir: “Não, Senhor, desta vez, sou eu que tenho razão... Álvaro não me deixa passar nem uma..., e isso não parece carinho, mas crueldade”. E depois: “Obrigado, Senhor, por pores perto de mim o meu filho Álvaro, que me quer tanto que não deixa passar nem uma!”

Volta-se para Del Portillo que, um pouco atrás, o escutou em silêncio. Sorri-lhe e diz-lhe:

– Deus te abençoe, Álvaro, meu filho![10]

“Não sou um rio que não possa voltar para trás... Seria coisa de néscios ou de cabeçudos não mudar de parecer, quando se recebem novos dados”

Encarnita Ortega lembra-se de tê-lo ouvido comentar que lhe custava, sem dúvida, ser corrigido, “sobretudo quando têm razão naquilo que me dizem”; mas que, “ao sentir essa resistência interior, se estou sozinho, digo em voz alta: Sempre têm razão! Sempre têm razão...!”[11]

Retifica com agilidade: “Não sou um rio que não possa voltar para trás... Seria coisa de néscios ou de cabeçudos não mudar de parecer, quando se recebem novos dados”[12].

E não só com agilidade. Dir-se-ia que o alegra dar o braço a torcer ou reconhecer que neste ou naquele assunto estava enganado. Como quem o experimentou bem, afirma: “Asseguro-vos que retificar tira o azedume da alma”[13].

Não se importa de ficar mal diante dos outros, ou de correr o risco de rebaixar a estatura da sua autoridade, por pedir perdão quando repara que não agiu bem ou se deixou levar por um impulso primário do seu forte temperamento.

A meio da manhã de um dia de 1946, em Madrid, entra na administração da residência da rua Diego de León. Saltam à vista vários detalhes de desastrada desordem: um armário com as portas entreabertas; outro com o interior revolvido; as compras do mercado ainda em cestas e pacotes, sem terem sido colocadas na despensa; na pia, um monte de pratos e xícaras usados... Não parece uma casa do Opus Dei. Escrivá desgosta-se. Chama a diretora. Mas, pelos vistos, não está. Aparece Flor Cano, outra mulher da Obra, e é ela quem recebe a “enxurrada” de protestos do Padre:

– Isto não pode ser! Isto não pode ser...! Onde está a vossa presença de Deus no trabalho?... Tendes que viver tudo com mais sentido de responsabilidade!

Sem o perceber, Escrivá foi levantando e endurecendo o tom de voz. De repente, estaca, guarda silêncio por um instante. A seguir, com outra entonação completamente diferente, diz:

– Senhor..., perdoa-me! E tu, minha filha, perdoa-me também.

– Padre, por favor, se o senhor tem toda a razão do mundo!

– Sim, tenho, porque o que te estou dizendo é verdade... Mas não devo dizê-lo neste tom. De modo que, minha filha, perdoa-me[14].

Isto é o pão dos meus filhos

Em 1970, no aeroporto madrileno de Barajas. Escrivá faz escala procedente de Roma e a caminho do México. Na ala de voos internacionais há uma multidão de repórteres, à caça de uns instantâneos furtivos do Fundador do Opus Dei. Eduardo Cáliz, fotógrafo do jornal Nuevo Diario, não consegue “apanhá-lo” com a objetiva da sua câmera. Por fim, como é um homem alto e corpulento, consegue abrir caminho entre os que rodeiam mons. Escrivá e espeta-lhe com o maior descaramento e sem-cerimônia:

– Deixe-me tirar-lhe umas fotos...!

Escrivá caminha com passo ligeiro. Ao ouvi-lo, responde espontaneamente:

– Escute..., eu não sou a Concha Piquer[15]! Eu sou um pobre homem...!

Contrariado com a evasiva, o repórter replica com certo desdém:

– A mim, no fundo, dá-me na mesma...

Escrivá continua o seu caminho, sem intenção de deter-se. O fotógrafo insiste:

– ...mas tenho que fazer o meu trabalho. Isto é o pão dos meus filhos.

Nesse momento, Escrivá pára de chofre. Volta-se para o fotógrafo. Crava nele um olhar intenso e sorri-lhe, como se tivesse encontrado um velho amigo:

– Se você tem que fazer o seu trabalho para ganhar o pão dos seus filhos, aqui fico eu, posando..., até que me diga basta![16]

Eu não sou senão um estorvo

Não se sente imprescindível. Crê com firmeza que a Obra é um empenho de Deus, Obra de Deus, que irá para a frente mesmo sem ele. E às vezes diz de si mesmo que é “um estorvo”.

“Numa Obra de Deus, eu não sou senão um estorvo. Mariano”.
“Pois imagine eu. Álvaro”.

Num velho papel, sem data e amarelecido pela passagem do tempo, escrito de seu punho e letra e assinado com o “nome de guerra”, Mariano – um dos seus nomes de batismo –, que começou a utilizar durante a guerra civil espanhola, pode-se ler esta confissão categórica:

“Numa Obra de Deus, eu não sou senão um estorvo. Mariano”.

Num post-scriptum, lê-se:

“Pois imagine eu. Álvaro”[17].

“Se me matarem, tu continuarás com a Obra?”

Porque se sabe unicamente receptor e transmissor de uma mensagem “velha e nova como o Evangelho” – a universalidade da chamada à santidade, para todos os homens e mulheres, em todas as circunstâncias, em qualquer tempo e lugar –, entende muito cedo que cada um dos membros da Obra pode e deve “fazer o Opus Dei no mundo sendo tu mesmo Opus Dei”. Por isso, e porque nunca se considerou necessário, já em 1931, quando tinha apenas vinte e nove anos e a Obra era ainda uma criaturinha, estava disposto a “passar o bastão” a outros. Nesse ano, enquanto recrudescia na Espanha uma violenta perseguição religiosa que degenerava em assassinatos de sacerdotes e em profanações, saques e incêndios de igrejas e conventos, Escrivá perguntou a um filho seu, um rapaz de dezessete anos, quase recém-chegado ao Opus Dei:

– Se me matarem, tu continuarás com a Obra?

Alguns anos depois, em 1936, muito pouco antes de rebentar a guerra civil espanhola, estando na residência da rua Ferraz em Madrid, chama à sala de jantar alguns jovens que são do Opus Dei. Fá-los passar separadamente, um por um, e, uma vez ali, pergunta-lhes:

– Se eu, por qualquer circunstância, morresse agora, tu continuarias com a Obra?

– Sim, Padre.

– Juras-me?

– Sim, Padre. Com todo o carinho, juro-lhe.

Quarenta anos mais tarde, Álvaro del Portillo, que foi um daqueles jovens em quem Escrivá já se apoiava para “passar o bastão” – a tarefa de “fazer o Opus Dei” –, lembrar-se-á desse episódio com toda a nitidez[18].

“Amo-te”

Em 1972, os seus filhos de Portugal oferecem-lhe uma velha terrina de cerâmica popular, muito usada e recomposta na base com muitos grampos. Escrivá comove-se. Lembra-se de que, já em 1928, tinha sobre a sua mesa de trabalho um prato tosco, de cerâmica de Talavera, com grampos bem visíveis, que avivava a sua presença de Deus, a consciência da sua miséria e a sua dor de amor. Referindo-se a essa terrina portuguesa, deixa que aflorem as reflexões que essa peça de louça, velha e desbeiçada, lhe sugeriu:

– É uma coisa vulgar, mas encantou-me, porque se via que tinha sido muito usada e se tinha partido – devia ser de uma família numerosa –, e lhe tinham posto grampos para continuarem a usá-la. Além disso, tinham escrito como adorno, e ali tinha ficado depois de a terem tirado do forno: Amo-te, amo-te, amo-te...

“Pareceu-me que aquela sopeira era eu. Fiz oração com aquela velha peça de louça, porque também eu me vejo assim: como a sopeira de barro, partida e com grampos, e gosto de repetir ao Senhor: com os meus grampos, eu te amo tanto! Podemos amar o Senhor também quando ficamos em pedaços, meus filhos”[19].

Barro quebradiço. Assim se vê. Assim se sente. “Sou uma moringa de barro, um vaso que se quebra facilmente, que se enche de grampos, de remendos. Penso: Josemaria, se os outros te conhecessem, afastar-se-iam de ti com nojo, porque estás cheio de cremalheiras por todos os lados!”[20]

Mas, ao mesmo tempo, barro agraciado, miséria convidada ao endeusamento. “Vê-se que Deus vai amadurecendo, como se amadurece o vinho, as almas miseráveis como a minha [...]. Digo-lhe na missa: Senhor, que te deixes ver Tu através da minha miséria!”[21] É, sim, a humilde “canção da miséria”, mas é também a canção esperançada do homem imago Dei, que se atreve – ele, um quase nada! – a deixar transparecer o Deus que traz dentro de si.

Na última Quinta-feira Santa da sua vida, 27 de março de 1975, faz a sua oração pessoal em voz alta. Uma oração espontânea, vibrante, sentida. Uma oração que lhe sobe, íntima e cálida, do coração aos lábios, sem filtros nem alambiques de elaboração intelectual. A certa altura, com os olhos cravados no sacrário aberto, diz:

“Adoro o Pai, o Filho, o Espírito Santo, Deus único. Eu não compreendo esta maravilha da Trindade, mas Tu puseste em minha alma ânsias de crer. Creio!: quero crer como quem mais crê. Espero!: quero esperar como quem mais espera. Amo!: quero amar como quem mais ama.

“Tu és quem és: a Suma Bondade. Eu sou quem sou: o último trapo sujo deste mundo podre. E, contudo, Tu me olhas..., e me procuras..., e me amas”

“Tu és quem és: a Suma Bondade. Eu sou quem sou: o último trapo sujo deste mundo podre. E, contudo, Tu me olhas..., e me procuras..., e me amas [...]. E quando vejo que entendo tão pouco das tuas grandezas, da tua bondade, da tua sabedoria, do teu poder, da tua formosura..., quando vejo que entendo tão pouco, não me entristeço. Alegro-me de que sejas tão grande que não caibas no meu pobre coração, na minha miserável cabeça. Meu Deus! Meu Deus! Se não sei dizer-te outra coisa, isto basta: meu Deus!”[22]

E a sua oração continua a fluir, agora sem palavras. Para Josemaria, a oração é “a humildade do homem que reconhece a sua profunda miséria e a grandeza de Deus a quem se dirige e adora, de maneira que tudo espera d’Ele e nada de si mesmo”[23]. Por outras palavras: orar é... colocar-se cada um no seu lugar.

Ao cabo de um certo tempo, caindo na conta de que tem ao seu lado um grupo de filhos seus, refere-se à cabal situação dos homens e mulheres do Opus Dei: à sua dupla cidadania, como cidadãos da cidade de Deus e da cidade dos homens. E traça o itinerário certeiro do barro até à graça:

“Devemos estar no céu e na terra, sempre. Não entre o Céu e a terra, porque somos do mundo. No mundo e no Paraíso ao mesmo tempo! [...]. No céu e na terra, endeusados; mas sabendo que somos do mundo e que somos terra, com a fragilidade própria do que é terra: um vaso de barro que o Senhor quis aproveitar para seu serviço. E quando se quebrou, recorremos aos famosos grampos, como o filho pródigo: pequei contra o céu e contra ti [...]. O Senhor quis depositar em nós um tesouro riquíssimo. Estou exagerando? Disse pouco! [...]. Em nós habita Deus, Senhor nosso, com toda a sua grandeza. Em nossos corações há habitualmente um céu. E não vou continuar...”[24]

Com “uma fé tão gorda que se poderia cortar”, Escrivá sabe que ele não é um capricho do azar, produto fortuito de um Deus que joga dados... No seu interior – terra, terra, terra, mas “almada” à semelhança de Deus –, madruga em cada alvorecer uma fome louca de infinito. Ele não é uma paixão inútil. Ele vai “como uma flecha” – e juraria que o ar se fende – em direção a um horizonte de eternidade.

Extratos do livro “O Homem de Villa Tevere”, de Pilar Urbano.


[1] Albert Einstein.

[2] Jean Paul Sartre.

[3] Artigos do Postulador, n. 1034; cf. testemunho de Javier de Ayala (AGP, RHF T-15712) e de Pedro Casciaro (AGP, RHF T-04197.

[4] Artigos do Postulador, n. 964.

[5] ibid., n. 977.

[6] mons. Álvaro del Portillo, 9-I-1976 (AGP, RHF 21165).

[7] Testemunho de José Antonio Fernández Recuna (AGP, RHF T-06521); cf. Artigos do Postulador, n. 984;

[8] testemunho de Lynden Parry Upton (AGP, RHF T-06521); Artigos do Postulador, n. 981.

[9] Testemunhos de María Luisa Sánchez de Movellán (AGP, RHF T-05134) e Ernesto Juliá Díaz (AGP, RHF T-06541); cf. Artigos do Postulador, n. 1058.

[10] Relato oral de Lourdes Toranzo Fernández à autora.

[11] Testemunho de Encarnación Ortega Pardo (AGP, RHF T-05074).

[12] Testemunho de Marlies Kücking

[13] Cf. Artigos do Postulador, n. 1059.

[14] Testemunho de Florentina Cano Aranda (AGP, RHF T-04913); Artigos do Postulador, n. 1055

[15] Artista dramática e estrela de cinema bastante conhecida nos anos cinquenta (N. do T.).

[16] Cena presenciada pela autora; Madrid-Barajas, 1970.

[17] Cf. testemunho de Begoña Álvarez Iráizoz (AGP, RHF T-04861).

[18] Relato de Mons. Álvaro del Portillo; AGP, RHF 21164, págs. 1467-1468 e 1491-1492.

[19] Cf. testemunho de Alejandro Cantero Fariña (AGP, RHF T-06308) e Artigos do Postulador, n. 1024.

[20] Cf. testemunho de Ernesto Juliá Díaz (AGP, RHF T-06541) e Artigos do Postulador, n. 1026.

[21] Cf. Artigos do Postulador, n. 1027

[22] AGP, RHF 21164, pág. 750.

[23] Cf. Sulco, n. 259

[24] AGP, RHF 21164, pág. 752.