As riquezas da fé

Artigo de São Josemaria, publicado no jornal ABC, de Madri, em 02 de novembro de 1969. Nele, o Fundador do Opus Dei fala do amor à liberdade como um dos tesouros da fé cristã.

'Confiar no Senhor quer dizer ter fé apesar dos pesares, indo além das aparências'.

Neste canto às riquezas da fé que é a Epístola aos Gálatas, São Paulo nos diz que o cristão deve viver com a liberdade que Cristo nos conquistou [1]. Esse foi o anúncio de Jesus aos primeiros cristãos, e isso continuará sendo ao longo dos séculos: o anúncio da libertação da miséria e da angústia. A história não está submetida a forças cegas nem é resultado do acaso, mas é a manifestação das misericórdias de Deus Pai. Os pensamentos de Deus estão acima dos nossos pensamentos, diz a Escritura [2]; por isso, confiar no Senhor quer dizer ter fé apesar dos pesares, indo além das aparências. A caridade de Deus — que nos ama eternamente — está por trás de cada acontecimento, ainda que às vezes de uma maneira oculta para nós.

Quando o cristão vive da fé — com uma fé que não é mera palavra, mas realidade de oração pessoal —, a certeza do amor divino se manifesta na alegria, na liberdade interior. Esses nós que às vezes atenazam o coração, esses pesos que esmagam a alma, quebram-se e se dissolvem. Se Deus é por nós, quem será contra nós? [3]. E o sorriso vem logo aos lábios. Um filho de Deus, um cristão que vive vida de fé pode sofrer e chorar: pode ter motivos para experimentar a dor; mas, para estar triste, não.

A liberdade cristã nasce do interior, do coração, da fé. Porém não é algo meramente individual, pois tem manifestações exteriores. Dentre elas, uma das mais características na vida dos primeiros cristãos foi a fraternidade. A fé — a magnitude do dom do amor a Deus — fez com que diminuíssem até desaparecer todas as diferenças, todas as barreiras: já não há judeu, nem grego; nem escravo, nem livre; nem homem, nem mulher: pois todos vós sois um em Cristo [4]. Esse saber-se e amar-se, de fato, como irmãos, por cima das diferenças de raça, de condição social, de cultura, de ideologia, é essencial ao cristianismo.

Não é minha missão falar de política. Tampouco é essa a missão do Opus Dei, uma vez que a sua única finalidade é espiritual. O Opus Dei não entrou nem nunca entrará na política de grupos e de partidos, nem está vinculado a qualquer pessoa ou ideologia. Esse modo de atuar não é uma tática apostólica, nem uma conduta meramente elogiável. Para o Opus Dei é uma necessidade intrínseca proceder assim, pois é algo que exige a sua própria natureza e, além do mais, possui uma autenticação evidente: o amor à liberdade, a confiança na condição própria do cristão no meio do mundo, atuando com completa independência e com responsabilidade pessoal.

Não há dogmas nas coisas temporais. Não está de acordo com a dignidade dos homens o intento de fixar verdades absolutas em questões sobre as quais, necessariamente, cada um tem de contemplar as coisas do seu ponto de vista, segundo os seus interesses particulares, as suas preferências culturais e a sua própria experiência peculiar. Pretender impor dogmas no âmbito temporal conduz, inevitavelmente, a forçar as consciências das pessoas, a não respeitar o próximo.

'Cada homem deve cultivar a experiência de sua autonomia pessoal, com tudo o que isso supõe de acaso, de tentativa e, em algumas ocasiões, de incerteza'.

Não quero dizer com isso que a postura do cristão, perante os assuntos temporais, deva ser indiferente ou apática. De modo algum. No entanto, penso que um cristão tem de tornar compatível a paixão humana pelo progresso cívico e social com a consciência da limitação das suas próprias opiniões, respeitando, por conseguinte, as opiniões dos demais e amando o legítimo pluralismo. Quem não saiba viver assim, não chegou ao fundo da mensagem cristã. Não é fácil chegar, e, de certo modo, não se chega nunca, porque a tendência para o egoísmo e a soberba jamais morre em nós. Por isso, todos estamos obrigados a fazer um exame constante, confrontando as nossas ações com Cristo, para nos reconhecermos pecadores e recomeçar de novo. Não é fácil chegar, mas temos de esforçar-nos.

Deus, ao criar-nos, correu o risco e a aventura da nossa liberdade. Quis uma história que fosse uma história verdadeira, feita de autênticas decisões, e não uma ficção nem um jogo. Cada homem deve cultivar a experiência de sua autonomia pessoal, com tudo o que isso supõe de acaso, de tentativa e, em algumas ocasiões, de incerteza. Não esqueçamos que Deus, que nos dá a segurança da fé, não nos revelou o sentido de todos os acontecimentos humanos. Juntamente com as coisas que, para o cristão, são totalmente claras e certas, há outras — muitíssimas — em que só cabe uma opinião: isto é, um certo conhecimento do que pode ser verdadeiro e oportuno, mas que não pode ser afirmado de um modo incontrovertível. Porque não só é possível que eu me engane como, mesmo tendo eu razão, é possível que os demais também a tenham. Um objeto que parece côncavo a alguém, parecerá convexo aos que estiverem situados numa perspectiva diferente.

A consciência da limitação dos juízos humanos leva-nos a reconhecer a liberdade como condição da convivência. Mas isso não é tudo e, inclusive, não é o mais importante: a raiz do respeito à liberdade está no amor. Se outras pessoas pensam de maneira diferente de mim, será isso uma razão para considerá-las inimigas? A única razão pode ser o egoísmo ou a limitação intelectual daqueles que pensam que não há outro valor além da política e dos empreendimentos temporais. Mas um cristão sabe que não é assim, porque cada pessoa tem um preço infinito, e um destino eterno em Deus: Jesus Cristo morreu por cada uma delas.

'Quando o cristão vive da fé — com uma fé que não é mera palavra, mas realidade de oração pessoal —, a certeza do amor divino se manifesta na alegria, na liberdade interior'.

Somos cristãos quando somos capazes de amar não só a Humanidade em abstrato, mas cada pessoa que passa perto de nós. Uma manifestação de maturidade humana é sentir a responsabilidade por essas tarefas das quais vemos depender o bem-estar das gerações futuras, porém isso não nos pode conduzir a descuidar da entrega e do serviço nos assuntos mais corriqueiros: ter um detalhe amável com aqueles que trabalham ao nosso lado, viver uma verdadeira amizade com os nossos companheiros, compadecer-nos de quem padece necessidade, mesmo que a sua miséria nos pareça sem importância em comparação com os grandes ideais que perseguimos.

Falar de liberdade, de amor à liberdade, é propor um ideal difícil: é falar de uma das maiores riquezas da fé. Porque — não nos enganemos — a vida não é um romance cor-de-rosa. A fraternidade cristã não é algo que vem do céu de uma vez por todas, mas uma realidade que deve ser construída em cada dia. E que tem de sê-lo numa vida que conserva toda a sua dureza, com choques de interesses, com tensões e lutas, no contato diário com pessoas que nos parecerão mesquinhas, e com mesquinharias da nossa parte.

Mas se tudo isso nos desanimar, se nos deixarmos vencer pelo nosso egoísmo ou se cairmos na atitude cética de quem encolhe os ombros, será sinal de que temos necessidade de aprofundar na nossa fé, de contemplar mais a Cristo. Porque só nessa escola é que o cristão aprende a conhecer-se e a compreender os demais, a viver de tal maneira que seja Cristo presente nos homens.

[1] Cf. Gal 4, 31 (Vulgata); Gal 5, 1 (Neovulgata).

[2] Cf. Is 55, 8; Rm 11, 33.

[3] Rm 8, 31.

[4] Gal 3, 28.