A Via-Sacra não é uma devoção triste

“A Via Sacra não é um exercício triste - comenta D. Álvaro del Portillo no prefácio. Mons. Escrivá ensinou muitas vezes que a alegria cristã tem as suas raízes em forma de cruz. Se a Paixão de Cristo é caminho de dor, é também a rota da esperança e da vitória certa” (D. Álvaro del Portillo, Prólogo do livro Via Sacra, de S. Josemaria)

Tinha devoção pela Via-Sacra. Pareceu-nos muito lógico que certa vez, próximo da festa da Epifania, pedisse como presente de Natal uma Via-Sacra portátil, para tê-la à mão e poder contemplar essas cenas da Paixão que ele tanto amava.

Rezei muitas vezes as estações com ele – também estava junto mons. Álvaro del Portillo –, e pude observar a piedade com que se ajoelhava depois de se enunciar cada uma. Costumava considerar essas cenas a caminho do Calvário todas as sextas-feiras, especialmente durante a Quaresma.

Incitava-nos a ter na cabeça, como se tem um bom filme, esses momentos em que se realizou a salvação da humanidade, de tal modo que em qualquer situação pudéssemos introduzir-nos na cena como um protagonista mais, para arrepender-nos das nossas faltas, para acompanhar Jesus, para sentir a obrigação de ser co-redentores.

Em 14 de setembro de 1969, enquanto nos mostrava – cheio de sumo respeito – um relicário da Santa Cruz, falou-nos demoradamente da Paixão e Morte de Nosso Senhor. Reproduzo a seguir alguns parágrafos das palavras que nos dirigiu naquela ocasião: Nós amamostemos de amar – com sinceridade a Cruz, porque onde está a Cruz está Cristo, com o seu Amor, com a sua presença que tudo preenche... Por isso, filhos, de acordo com o espírito da Obra, jamais podemos fugir da Cruz, desta Cruz Santa na qual se encontra a paz, a alegria, a serenidade, a fortaleza... Neste relicário que conservamos aqui, venera-se um pedaço do Lignum Crucis que se guarda em São Toríbio de Liébana. Foi um presente que me fez o Bispo de León há muitíssimos anos. Incomoda-me que se fale da Cruz como sinônimo de contrariedade, de mortificação. A Cruz é algo positivo, desde que Cristo quis entregar-nos a verdadeira vida por meio da Cruz... Depois de nos darem a bênção, beijaremos a Cruz, mas dizendo sinceramente que a amamos, porque já não vemos na Cruz o que nos custa ou nos pode custar, mas a alegria de podermos dar-nos, despojando-nos de tudo para encontrar todo o amor de Deus... Debaixo deste relicário, fiz gravar: Iudaeis quidem scandalum, gentibus autem stultitiam!*, porque, para os que são incapazes de entendê-la, a Cruz é escandalosa e incompreensível.

Em 1970, animava-nos: Só se nos unirmos continuamente à Paixão de Jesus Cristo, é que saberemos ser instrumentos úteis na terra, ainda que estejamos cheios de misérias. É impossível esgotar as muitas e numerosíssimas considerações que fez a este propósito; penso que, de alguma maneira, a sua união com o Sacrifício da Cruz se resume nas palavras que lhe ouvi na Semana Santa desse mesmo ano: A Paixão do Senhor: daí nos chega toda a força. Quando penso na Paixão de Cristo, acode-me imediatamente à cabeça o que fiz nestes quarenta e dois anos da minha vida no Opus Dei, e naqueles outros em que Ele me preparava antes de começá-lo. E vejo que sou nada, e menos que nada: só tenho sido um estorvo. Por isso, cada dia sinto a necessidade de me fazer criança, muito criança nas mãos de Deus. Assim me consolo com o que escrevi tantas vezes: que faz uma criança? Entrega ao seu pai um soldadinho sem cabeça, um velho carretel, uma bolinha de gude. Pois eu a mesma coisa: quero dar por inteiro e de verdade o pouco que tenho. Desta maneira, a minha pouquidão, fundida com a Paixão de Cristo, tem toda a eficácia redentora e salvadora: nada se perde!


* “Para os judeus, escândalo; para os gentios, loucura”: 1 Cor 1, 23.


Trecho do livro: Javier Echevarría Rodríguez e Salvador Bernal Fernández, Recordações sobreMons. Escrivá, Quadrante, São Paulo, 2001