A filiação divina: fonte de vida espiritual

Disponibilizamos o artigo “A consciência da filiação divina, fonte de vida espiritual”, escrito por Javier Sesé, professor de Teologia, e que foi publicado em “Scripta Theologica” 31 (1999/2)

A filiação divina: fonte de vida espiritual (PDF para imprimir)

1. Partindo da experiência dos santos

“Deus se comunica com a alma, nesta união interior, com um amor tão verdadeiro que não há afeição de mãe que acaricie com tanta ternura o filho (...). Está ocupado aqui em mimar e acariciar a alma, tal como faz a mãe em servir e mimar o filhinho, criando-o aos seus próprios peitos; (...) a alma conhece a verdade das palavras de Isaías, que diz: ‘Podereis mamar, carregados ao colo, sobre os joelhos sereis acariciados’ (Is 66,12)”. Estas palavras são de São João da Cruz, no seu Cântico Espiritual.

“Diante de uma linguagem como esta, só nos resta calar e chorar de agradecimento e amor”, acrescenta Santa Teresa do Menino Jesus, lembrando a mesma passagem de Isaías, completada, entre outras referências das Escrituras, com esta do mesmo profeta: “Acaso uma mulher esquece o seu neném, ou o amor ao filho de suas entranhas? Mesmo que alguma se esqueça, eu de ti jamais me esquecerei!” (Is 49,15).

Por isso, Santa Teresa de Jesus diz de Deus: “que forçosamente há de ser melhor que todos os pais do mundo, porque n'Ele não pode haver senão a perfeição de todo o bem...”; e são Josemaria Escrivá afirma, de forma paralela, que Deus é um Pai que nos ama “mais a cada um de nós do que todas as mães do mundo podem querer a seus filhos”. E acrescenta, comovido, em outro momento: “As palavras não conseguem acompanhar o coração, que se emociona perante a bondade de Deus. Diz-nos: Tu és meu filho. Não um estranho, não um servo benevolamente tratado, não um amigo, que já seria muito. Filho! Concede-nos livre trânsito para vivermos com Ele a piedade de filhos e também — atrevo-me a afirmar — a desvergonha de filhos de um Pai que é incapaz de lhes negar seja o que for”.

Esses textos, citados como ponto de partida da nossa reflexão, pretendem ser paradigmáticos da mesma, tanto de seu conteúdo como de seu método. Com efeito, propomo-nos a apresentar uma reflexão teológica sobre a consciência da filiação como fonte da vida espiritual, mas inspirada na experiência e ensinamentos dos santos.

Minha intenção não é analisar textos concretos de determinados mestres de espiritualidade, nem ser pedante com uma ampla erudição de referências, ainda que citarei um bom número de exemplos como apoio das minhas reflexões; mas expor o que a leitura, o estudo e, acima de tudo, uma “contemplação” teológica da doutrina e a experiência interior de diversos santos me levam a concluir como síntese comum a todos eles.

Sendo assim, quero apresentar algumas ideias que tenham, por um lado, um caráter e uma aplicação o mais universal possível e, por outro, estejam apoiadas em autoridades teológicas contrastadas. Efetivamente, a filiação divina, como condição comum e básica do ser cristão, pode e deve ajudar-nos a todos no caminho da nossa vida espiritual; e a experiências e os ensinamentos daqueles que já percorreram com sucesso esse caminho é a melhor garantia, tanto da veracidade do que afirmaremos, como de sua utilidade prática.

Se toda a teologia, a meu ver, deve conduzir harmonicamente ao conhecimento da verdade divina e à consolidação da santidade pessoal, muito mais a parte desta ciência que estuda expressamente a santidade cristã, que costumamos chamar de teologia espiritual; e se os santos proporcionam luzes decisivas para toda boa reflexão teológica, na teologia espiritual elas são imprescindíveis.

Além disso, acho que assim minha contribuição pode ser realmente complementária das que escutamos até agora no simpósio; não tanto por dizer coisas diferentes, porque continuaremos a contemplar a figura de nosso Pai Deus, mas por iluminar essas ideias a partir de outra perspectiva: uma perspectiva que espero que seja viva e vivificante para todos, como, com certeza, foi para os que inspiraram estas linhas.

Como última consideração introdutória, não podemos esquecer que estamos diante do principal mistério da nossa fé (o próprio Deus), contemplado com base em algumas experiências espirituais que, por sua vez, escondem outro mistério de fé: o da vida divina no interior da alma cristã. Existe, portanto, muito mais coisas nessas realidades — infinitamente mais — do que se pode dizer aqui, e na própria experiência desses santos tem muito mais riquezas do que a teologia pôde extrair até agora. Por isso, cada afirmação que se faz aqui abre novos e amplos panoramas de reflexão. Mas este é precisamente um dos grandes atrativos da ciência teológica, e da teologia espiritual em particular.

2. Amor Paterno de Deus e intimidade trinitária

A contemplação reflexiva de textos e experiências como os citados no princípio me levaram, nestes últimos meses, a um primeiro convencimento que considero fundamental, e que proponho como “ideia chave” de tudo o que virá em seguida: o que faz os santos reagirem não é tanto a consciência de ele mesmo (ou ela mesma) ser filho (ou filha) de Deus, e sim a compreensão cada vez mais profunda e viva do que significa “Deus é meu Pai”; ou seja, a descoberta do infinito amor divino derramado nele (ou nela): a constatação viva e prática de “quanto Deus me ama”.

O santo contempla admirado a grandeza infinita de Deus, e descobre surpreso que esse esplendor se inclina em direção a ele, doa-se, faz-se seu, sem outro motivo que a pura liberdade de seu Amor divino.

O santo é, sem dúvida, consciente do que causa o Amor divino no seu próprio ser e na sua própria vida, e agradece profundamente esse fato. Mas mais que ficar prestando atenção em si mesmo, presta atenção em Deus: contempla admirado sua grandeza infinita, e descobre surpreso que esse esplendor todo não fica estático diante de seus olhos, mas se inclina em direção a ele, doa-se, faz-se seu, sem outro motivo que a pura liberdade de seu Amor divino.

Esses sentimentos estão presentes, em particular, nos textos citados ao princípio, mas recolhemos outras palavras significativas, neste caso de Santa Teresa dos Andes, que nos ajudam a dar alguns passos a mais: “nosso Senhor me disse que queria que vivesse com Ele em comunhão perpétua, porque me amava muito. (...) Depois me disse que a Santíssima Trindade estava em minha alma; que a adorasse. (...) Minha alma estava aniquilada. Via sua Grandeza infinita e como baixava-se para unir-se a mim, um nada miserável, Ele, a Imensidão com a pequenez; a Sabedoria com a ignorância; o Eterno com a criatura limitada; porém, sobretudo, a Beleza com a fealdade; a Santidade com o pecado. Então, no íntimo de minha alma, de maneira rápida, me fez compreender o amor que o fazia sair de si mesmo para buscar-me; (...) Vi que (...) quer se unir com uma criatura tão miserável; quer identificá-la com seu próprio ser tirando-a de suas misérias para divinizá-la de tal maneira que chegue a possuir suas perfeições infinitas”.

Apoiados no que acabamos de ler, enfatizemos outras duas ideias fundamentais que considero inseparáveis da primeira que já vimos: é o Deus Todo Poderoso, Imenso, Eterno, Infinito, Imutável etc., o que é nosso Pai e nos ama assim, com toda a comovedora ternura materna que recordamos no começo; e é, ao mesmo tempo, o Deus Trino o que se entrega a nós, não só porque nos revela os segredos de sua intimidade trinitária, mas porque introduz a alma nessa mesma intimidade.

Não me refiro, com isso, à dedução de que o que foi dito tem que ser assim porque Deus é assim. Refiro-me a que a consciência viva que os santos têm desse Amor paternal divino que se derrama na alma, e que lhes comove até as entranhas, inclui inseparavelmente três aspectos, cuja combinação provoca precisamente a intensidade e a profundidade de sua reação interior: o amor de Deus por mim é tão próximo e íntimo como o que existe entre uma mãe e seu filho recém-nascido (primeiro aspecto); não porque se digne a me dar umas migalhas de seu infinito amor, mas porque Ele se entrega de verdade, como é, em sua grandeza e infinidade (segundo aspecto); e o fato de que Deus se entrega a mim como se entrega a seu Filho é a prova imbatível de que isso é assim (terceiro aspecto): é meu Pai como é Pai de Jesus; minha filiação é participação na própria Filiação de seu Filho; e seu amor por mim é como o Amor com que ama seu Filho: entrega-me seu próprio Amor paterno-filial, que é o Espírito Santo.

Somente no seio da própria Trindade pode haver intimidade verdadeira com Deus

Em outras palavras: a experiência e ensinamentos dos santos — eco do que se manifesta nas Escrituras — mostra-nos, por um lado, que somente no seio da própria Trindade (porque Ela toma a iniciativa de se abrir e doar-se) pode haver intimidade verdadeira com Deus, verdadeiro intercâmbio de amor, verdadeiro trato paterno-filial. Por outro lado — ou melhor, como consequência —, mostra-nos que somente assim Deus é realmente meu e tudo o que é seu é meu, sem deixar de ser Deus.

O santo compreende profundamente, e ensina, por meio dessa manifestação de assombro e ousadia, de amor e humildade, maravilhosamente combinados, que se Deus me amasse “fora de si mesmo”, ou seja, não trinitariamente, não seria realmente Pai: seria, no máximo, analógica ou limitadamente pai; inclusive capaz de nos encher de mimos e manifestações de afetos, para ganhar nosso coração; mas sem entrar de verdade n’Ele, pois assim, a alma intuiria que, no fundo, trata-se de um amor indireto, inclusive interessado, que não é um verdadeiro amor de pai.

No entanto, a Encarnação de Jesus Cristo, sua morte por nós, a doação do seu Espírito, a vida trinitária na alma, tudo isso está nos dizendo que Deus é Pai de verdade, que Ele me ama pessoalmente (tripessoalmente, poderíamos dizer); mais do que dádivas e dons concretos por mais maravilhosos que sejam... Porque são! A alma que compreende e sente isso a fundo transcende; porque sabe que, antes de tudo, tem sempre Deus para si, com todos os tesouros de sua própria vida divino-trinitária.

Insistamos nesta importante doutrina reproduzindo uma síntese teológica muito certeira, que saiu da “caneta” de Santa Edith Stein: “A alma que Deus habita pela graça não é mero cenário impessoal da vida divina, acha-se nela integrada. A vida divina é trinitária: é o amor transbordante, pelo qual o Pai gera o Filho, comunicando-lhe sua natureza; o Filho, ao recebê-la, entrega-a ao Pai pelo amor; é o amor que forma o vínculo de unidade entre o Pai e o Filho e que os faz simultaneamente exalar como Espírito... O Espírito Santo é infundido na alma pela graça e é por Ele que ela vive a vida da graça. Nele, a alma ama o Pai com o amor do Filho e ama o Filho com o amor do Pai”.

3. Singularidade da Relação Pai-Filho

Esmiucemos um pouco mais essas ideias básicas. A alma santa é particularmente consciente não só do quanto Deus ama, de como ama, mas da singularidade do seu Amor: do quanto me ama e como me ama; de que não somente é Pai, mas meu Pai; não apenas é Amor, é meu Amor.

Por isso se atreve a se dirigir a Deus com as mesmas palavras de Jesus: “Meu Pai”, “Abbá”: Papai! Muito consciente de que pode dizer isso e o diz movido pelo Espírito do Pai e do Filho, que habita em sua alma, como nos recorda São Paulo (cfr. Rm 8,14-17 e Gal 4, 4-7). Mas o diz! E assim o “Pai Nosso” alcança o seu verdadeiro significado: meu Pai, teu Pai, seu Pai..., de todos e de cada um, em Jesus Cristo.

Sendo Ele o Criador do universo, não se importa de que não o tratemos com títulos altissonantes. Quer que lhe chamemos Pai, que saboreemos essa palavra, deixando a alma inundar-se de alegria

São Josemaria Escrivá propõe o seguinte: “e temos que dizer-lhe com São Paulo: Abba, Pater! Pai, meu Pai!, porque, sendo Ele o Criador do universo, não se importa de que não o tratemos com títulos altissonantes, nem reclama a devida confissão do seu poder. Quer que lhe chamemos Pai, que saboreemos essa palavra, deixando a alma inundar-se de alegria” (É Cristo que Passa, 64).

Deus é, desta forma, meu Pai (intimíssimo, muito próximo), mas não deixa de ser meu Deus; e isto tem consequências importantes: todo o poder, glória e majestade, bondade, verdade e beleza divinos são para o homem! Para mim, em concreto! Meus por direito de filho. Não merecidos, nem conquistados, mas também não simplesmente dados por um Senhor todo poderoso que se digna a abaixar-se de sua altura majestosa, mas recebidos como efeito irrefutável do fato de eu ser realmente seu filho, com todas as consequências... E isso é, sem dúvida, muito maior e mais emocionante, mesmo que os resultados práticos pareçam os mesmos.

Digo “pareçam”, porque, de fato, os resultados não são os mesmos: muitas das audácias — por exemplo, apostólicas — que contemplamos na vida dos santos penso que só se explicam porque “usam” o poder de Deus — se é que se pode dizer assim — como próprio de um filho, de um herdeiro com plenos direitos. Melhor ainda, como um poder que brota do próprio Deus atuando no íntimo da alma; e não simplesmente como um dom recebido de fora para ser usado, por mais livre que tenha sido a dádiva e por mais liberdade que o doador tenha concedido para usá-la. Além disso, só com essa perspectiva se pode manter o equilíbrio — assim como os santos o mantêm — entre audácia e humildade.

Afunilando um pouco mais, podemos dizer que a verdadeira consciência da filiação divina é a consciência não só de que é meu Pai e meu Deus, mas meu Pai-Deus, que entrega a mim, como próprios, o seu Filho e, com Ele, o seu Espírito; ou seja, existe um entendimento muito profundo da Unidade na Trindade e da Trindade na Unidade; e nela, o entendimento do equilíbrio entre transcendência e proximidade de Deus, entre sua grandeza e seu surpreendente aniquilamento para ser meu, nosso.

É o que expressa, entre outros testemunhos possíveis, um dos mais conhecidos parágrafos dasMoradas de Santa Teresa de Jesus: “entende (a alma que está na sétima morada) com certeza absoluta que as três Pessoas são uma substância, um poder, um saber, um só Deus. (...) Aqui as três Pessoas se lhe comunicam e falam. Fazem-na compreender aquelas palavras do Senhor no Evangelho, dizendo que viria ele, com o Pai e o Espírito Santo, para morar na alma que o ama e guarda seus mandamentos (cfr. Jo 14,23). Valha-me Deus! Como são verdadeiras essas palavras! E como é diferente ouvi-las e crer, entendendo-lhe a verdade por via sobrenatural! Cada dia esta alma se admira mais”.

E é o que explica também São João da Cruz em seu livro Chama Viva de Amor, já no prólogo: “Não é para se admirar que Deus faça tão altas e peregrinas mercês às almas que Lhe apraz regalar. Na verdade, se considerarmos que é Deus, e que as concede como Deus, com infinito amor e bondade, não nos há de parecer fora de razão. Suas próprias palavras nos afirmam que se alguém O amar, o Pai, o Filho e o Espírito Santo virão fazer nele sua morada (Jo 16,23). E isto se realiza quando Deus leva quem O ama a viver e morar no Pai e no Filho e no Espírito Santo, com vida divina”.

Voltaremos depois aos aspectos trinitários desta realidade. Agora continuemos aprofundando nas características da intimidade paterno-filial que os santos descobrem nesse Amor divino.

A confiança e o abandono que nascem da realidade da filiação divina geralmente são muito enfatizados, mas seguindo a linha do princípio da nossa reflexão, quero insistir em que o santo aprecia sobretudo como Deus lhe quer e lhe trata, de tal forma que já não há mais remédio, por assim dizer, que confiar e abandonar. Ou seja, essa atitude não é tanto fruto de um esforço ascético pessoal — ainda que também existe esse esforço — mas, acima de tudo, é fruto de um deixar-se levar por Deus: por algum motivo se fala precisamente de abandono! Ainda que se trate sempre de um abandono ativo, livre e consciente por parte do filho.

São Francisco de Sales, por exemplo, expressa assim: “Se não vos tornardes como crianças, não entrareis no reino dos céus (Mt 18,3). Enquanto a criança é pequena, conserva-se com grande simplicidade; conhece apenas a sua mãe; tem só um amor, a sua mãe; uma única aspiração, o regaço da sua mãe; não deseja outra coisa senão recostar-se em tão amável descanso. A alma perfeitamente simples só tem um amor, Deus; e nesse único amor, uma só aspiração, repousar no peito do Pai celestial, e estabelecer aí o seu descanso, como filho amoroso, deixando completamente todos os cuidados para Ele, não olhando para outra coisa senão em manter-se nesta santa confiança.”

Por outro lado, é essa “combinação” divindade-paternidade-amor, presente na doação trinitária à alma que comporta a realidade da filiação divina, a que realmente provoca nos santos uma profunda resposta de amor filial, um entusiasmo, uma autêntica “loucura” de amor. Assim se expressavam, por exemplo, em sua oração, Santa Teresa do Menino Jesus e São Josemaria Escrivá: “deixa-me no extremo da minha gratidão, deixa-me te dizer que teu amor vai até a loucura... Como queres que diante dessa loucura, meu coração deixe de se jogar em teus braços? Como pode minha confiança ter limites?” “Saber que me amas tanto, meu Deus, e... não enlouqueci?!”

“Saber que me amas tanto, meu Deus, e... não enlouqueci?!”

4. O Amor paterno de Deus manifestado em Jesus Cristo e no Espírito Santo

Voltemos à perspectiva trinitária já mencionada. Não podemos nos esquecer de duas realidades que também se fazem particularmente vivas nas almas que possuem uma profunda vida interior, e que lhes movem a corresponder ainda mais.

A primeira, que o Filho é a Imagem do Pai e, ao se encarnar, aproxima essa imagem de nós, também no sentido de que podemos contemplar o Amor “encarnado” de Deus Pai: em Jesus, vemos, sentimos e experimentamos esse Amor divino “humanizado”; e isto é decisivo tanto para aproximar-se intelectualmente dessa realidade, como para que exista uma verdadeira resposta filial da nossa parte, que necessariamente tem que ser humana. Ou seja, no Coração de Jesus, nas suas ações divino-humanas, em suas manifestações de carinho, a alma cristã se torna mais consciente e sente mais vivamente o que significa o Amor paterno-maternal de Deus, como se “traduz” humanamente (corporal e espiritualmente) esse Amor; além de descobrir os caminhos do verdadeiro amor filial, aprendidos de quem é o Filho por natureza.

Por outro lado, não fomos apenas feitos filhos no Filho, mas a Encarnação de Jesus Cristo é garantia da verdade da nossa própria filiação divina, como explica minuciosamente São João de Ávila: “Mercê inefável é a que Deus adote por filhos os filhos dos homens, vermezinhos da terra. Mas para que não duvidássemos deste dom, São João nos coloca outro maior, dizendo: “e a Palavra se fez carne” (Jo 1,14). Como quem diz: não deixem de crer que os homens nascem de Deus por adoção espiritual, mas há algo ainda maior e mais maravilhoso, que é o Filho de Deus ser feito homem, e filho de uma mulher”.

Visto de outra perspectiva, a intimidade com Jesus não é só intimidade com o Verbo encarnado, mas também necessariamente com o Pai de quem procede e que o enviou a nós (a mim, descobre cada um, na perspectiva íntima e singular que estamos ressaltando). Assim, crescem ao mesmo tempo a intimidade com o Pai e a intimidade com o Filho; e cresce, simultaneamente, a “distinção” no trato com eles, precisamente na medida em que cresce a consciência viva de que sou filho do Pai no Filho, de que sou mais Cristo...

A alma realiza na vida sobrenatural uma descoberta semelhante às de uma criaturinha que vai abrindo os olhos à existência. E entretém-se amorosamente com o Pai e com o Filho e com o Espírito Santo

Um conhecido texto de São Josemaria Escrivá sintetiza essa realidade, fazendo um paralelismo com o texto de Santa Teresa de Jesus citado acima, e também nos conduz à segunda ideia já anunciada: “Se amamos Cristo assim, se com divino atrevimento nos refugiamos na abertura que a lança lhe deixou no Lado, cumpre-se a promessa do Mestre: Se alguém me ama, guardará a minha doutrina, e meu Pai o amará, e viremos a ele, e nele faremos morada. O coração necessita então de distinguir e adorar cada uma das Pessoas divinas. De certa maneira, o que a alma realiza na vida sobrenatural é uma descoberta semelhante às de uma criaturinha que vai abrindo os olhos à existência. E entretém-se amorosamente com o Pai e com o Filho e com o Espírito Santo; e submete-se facilmente à atividade do Paráclito vivificador.” (Amigos de Deus, 306)

Por sua vez — e esta é a segunda ideia, inseparável da anterior, como indiviso é o mistério trinitário —, o Espírito Santo é o Amor paterno-filial do Pai e do Filho, por quem sou feito filho de Deus em Jesus Cristo. O Paráclito não somente me faz filho, ensina-me a ser filho, e me move a viver como filho, mas também, como causa de tudo isso, faz-me antes de tudo participar do próprio Amor paterno-filial-divino em Cristo; e nessa participação, mostra-me de maneira viva e experimental como é o Amor paterno de Deus em Jesus, porque Ele mesmo — o Espírito do Pai e do Filho — é esse Amor.

Por isso, a intimidade com o Espírito Santo que a alma procura e consegue é também, necessariamente, intimidade com o Pai e o Filho, enquanto são e se amam como Pai e Filho, e enquanto os três são Deus; e a intimidade do cristão com o Espírito Santo como Pessoa divina distinta cresce quanto mais é consciente do que significa ser filho do Pai no Filho pelo Espírito Santo.

Vejamos, agora, uma oração de Santa Catarina de Sena: “Ó Divindade eterna, ó eterna Trindade, que pela união da natureza divina tanto fizeste valer o sangue de teu Filho unigênito! Tu, Trindade eterna, és como um mar profundo, onde quanto mais procuro mais encontro; e quanto mais encontro, mais cresce a sede de te procurar. Tu sacias a alma, mas de um modo insaciável; porque, saciando-se no teu abismo, a alma permanece sempre sedenta e faminta de ti, ó Trindade eterna, cobiçando e desejando ver-te à luz de tua luz. Provei e vi em tua luz com a luz da inteligência, o teu insondável abismo, ó Trindade eterna, e a beleza de tua criatura. Por isso, vendo-me em ti, vi que sou imagem tua por aquela inteligência que me é dada como participação do teu poder, ó Pai eterno, e também da tua sabedoria, que é apropriada ao teu Filho unigênito. E o Espírito Santo, que procede de ti e de teu Filho, deu-me a vontade que me torna capaz de amar-te. Pois tu, ó Trindade eterna, és criador e eu criatura; e conheci — porque me fizeste compreender quando de novo me criaste no sangue de teu Filho — conheci que estás enamorado pela beleza de tua criatura. Ó, abismo, ó, Trindade eterna, ó, Divindade, ó, mar profundo! Que mais poderias dar-me do que a ti mesmo?”

5. A bondade de nosso Pai Deus

Em tudo o que dissemos até agora, pudemos comprovar como a consciência da filiação divina conduz não só a uma resposta generosa de amor a Deus, mas também vai dando luzes importantíssimas à alma sobre o próprio Deus; luzes que sem dúvida provocam um maior crescimento interior, mas que também ajudam o teólogo no estudo científico sobre os mistérios divinos. Desejo prosseguir minha reflexão por este caminho, aprofundando nesse binômio intimidade-grandeza, como nos apresenta a paternidade divina.

Consciência da paternidade de Deus significa, como já vimos, consciência de um amor pessoal do Pai, em Cristo, pelo Espírito Santo, por cada um de seus filhos e filhas particularmente. Isso quer dizer, dentre outras coisas (e os santos expressam e sentem vivamente isso), um amor divino vivo, atual e operante, contínuo e intenso, e, ao mesmo tempo, concreto, cheio de detalhes muito pessoais de amor de Deus por cada filho: a infinita capacidade divina de amar se adapta à condição e às necessidades de cada um. E quanto maior é a correspondência da alma santa a esse amor, mais Deus se esmera em surpreender com finuras e delicadezas de amor, como o melhor dos pais e a melhor das mães.

Tudo isso proporciona ao santo uma compreensão particular da Bondade de Deus, que, longe de ser uma simples afirmação teórica, manifesta-se dia a dia em sua própria vida, até enternecê-la profundamente. E assim esbarramos com uma das questões mais delicadas que a consciência humana enfrenta quando descobre a figura paternal de Deus: o problema do mal. Não é o momento de entrar nessa questão tão complexa e, muitas vezes, desconcertante, e inclusive traumática para o ser humano; mas sim de pelo menos assinalar a perspectiva que a experiência dos santos abre para iluminar uma reflexão sobre o mal.

Poderíamos dizer que os santos abordam a questão por meio do interior do próprio Deus. Ou seja, não tentam combinar a experiência do mal no mundo com a certeza de fé da infinita bondade divina, procurando esse equilíbrio complexo no qual a reflexão filosófico-teológica embarca tantas vezes sem chegar a um porto. Eles enxergam tudo a partir da intimidade que alcançaram com a Trindade, na que a bondade divina é, antes de mais nada, o próprio amor paterno-filial do que foram chamados a participar; e o mundo e o homem são vistos assim, pela ótica de Deus Criador e Redentor. E isto até o ponto de que, mais que tentar explicar o mal, dá a impressão de que isso desapareceu como problema para eles, porque no próprio Deus esse problema não existe.

É o que expressam, por exemplo, estas palavras de São Thomas More à sua filha mais velha, quando estava encarcerado na Torre de Londres: “minha filha queridíssima, nunca se perturbe a sua alma por qualquer coisa que possa suceder comigo neste mundo. Nada pode acontecer senão aquilo que Deus quer. E eu estou muito seguro de que, seja o que for, por muito mau que pareça, será verdadeiramente o melhor”.

Não vês que assim o quer teu Pai-Deus..., e Ele é bom..., e Ele te ama — a ti só! — mais do que todas as mães do mundo juntas podem amar os seus filhos?

São Josemaria Escrivá também aplica essa ideia a situações mais comuns, menos dramáticas, mas que uma alma cristã pode sofrer e desconcertar-se: “Penas? Contrariedades por causa daquele episódio ou daquele outro?... Não vês que assim o quer teu Pai-Deus..., e Ele é bom..., e Ele te ama — a ti só! — mais do que todas as mães do mundo juntas podem amar os seus filhos?” (Forja, 929).

Efetivamente, nessa experiência de intimidade com Deus, é inquestionável que o que chamamos de mal físico nunca é um verdadeiro mal; e, quanto ao único mal verdadeiro, o pecado, sempre aparece enfocado à luz da Misericórdia divina e do bem que Deus tira dele continuamente.

6. Deus Pai Misericordioso

A Misericórdia paterna de Deus, vista do íntimo de seu Amor e Bondade, tem uma força especial na consciência da filiação divina. Não posso me deter agora em todas as suas implicações, mas sim destacar, na mesma linha que vem esquematizando nossa reflexão, o que me parece que é mais decisivo na experiência dos santos: não é tanto que meu Pai me perdoa, mas que meu Pai me ama e por isso me perdoa: que realmente seu coração se derrama em mim, como filho, independente de minhas obras serem boas ou más.

Poderia me atrever a dizer que o santo não pensa no pecado como tal, mas como um contraste que ajuda a calibrar até que ponto Deus o ama pessoalmente, sem condicionar seu amor à resposta fiel ou infiel de seu filho. A parábola do filho pródigo, sobre a qual se está falando e escrevendo tanto ultimamente (com toda razão), é sem dúvida emblemática nesse sentido. O filho mais novo quer apenas o perdão de seu pai, mas encontra o amor: amor paterno que inclui, claro, o perdão, mas vai muito mais além. O filho não recupera seu Pai, e sim percebe que nunca o perdeu; que ele pode ser um filho ruim, mas o Pai nunca pode deixar de ser um bom Pai, porque o ama de verdade, por ser quem é, no mais profundo de seu ser.

Entende-se assim que os santos fiquem tão comovidos a ponto de refletir, por exemplo, estas palavras de Santa Teresa de Jesus: “E quem, Senhor da minha alma, não se há de espantar de misericórdia tão grande e mercê tamanha pagando traição tão feia e abominável que não sei como não me parte o coração quando escrevo isso! É que sou muito ruim”; ou estas outras de São Josemaria Escrivá, referindo-se à reação do pai da parábola: “Estas são as palavras do livro sagrado: cobriu-o de beijos, comia-o a beijos. Pode-se falar com mais calor humano? Pode-se descrever de maneira mais gráfica o amor paternal de Deus pelos homens?”

A Misericórdia geralmente aparece efetivamente na experiência e ensinamentos dos santos como a grande prova de amor paternal divino, e também do Coração de seu Filho encarnado, que é sua Imagem fiel: a manifestação mais comovente, mais consoladora, mais terna... Por isso, é um aspecto chave para compreender melhor tudo o que foi dito até agora e o que será dito a seguir; e no caso particular dos santos, grande parte da compreensão do Amor divino e de sua resposta generosa à graça nasce de suas experiências pessoais sobre a Misericórdia viva e operante de Deus.

Demos um passo a mais. Como acabamos de comprovar na referência à parábola do filho pródigo, a Misericórdia divina reforça o convencimento de que todos cabemos no Amor paternal de Deus: ninguém perde o carinho paterno por mais pecador que seja. Pelo contrário: tudo nos leva a pensar em uma “predileção” divina pelo pecador. Tanto é verdade, que santos como Santo Agostinho e Santa Teresa do Menino Jesus falam da existência de uma Misericórdia “preveniente” de Deus; eles intuem que, mesmo para o cristão que não tenha consciência de pecados graves num momento concreto, não pode deixar de ser verdade que Deus o ama muito porque lhe perdoa muito (cfr. Lc 7,40-47).

Citemos as reflexões da santa de Lisieux: “não ignoro que a mim Jesus perdoou mais do que a Santa Madalena, pois me perdoou por antecipação, porquanto me impediu que caísse. Oh! Pudera explicar o que sinto! … Dou aqui um exemplo que traduzirá um pouco meu modo de pensar. — Suponho que o filho de um entendido doutor depare no caminho com uma pedra, que o faz cair e fraturar um membro. De pronto lhe acorre o pai, ergue-o com amor, pensa-lhe as lesões, aplicando todos os recursos de sua arte. E o filho, completamente curado, logo lhe testemunha sua gratidão. Não resta dúvida, o filho tem todo o motivo de querer bem ao Pai!

Farei, contudo, outra suposição ainda. Sabendo que, no caminho do filho, se encontra uma pedra, o pai apressa-se em tomar a dianteira, e remove-a, sem que ninguém o veja. O filho, por certo, objeto de seu previdente carinho, não TENDO CONHECIMENTO da desgraça, da qual o pai o livrara, não lhe mostrará gratidão, e ter-lhe-á menos amor do que se fora curado por ele… Entanto, se souber o perigo, do qual acaba de escapar, não o amará ainda mais?

Ora, tal filha sou eu, objeto do amor previdente de um Pai, que enviou seu Verbo para resgatar não os justos, mas os pecadores. Quer que eu o ame, porque me perdoou, não digo muito, mas TUDO. Não esperava que eu muito o amasse, como Santa Madalena, mas quis que SOUBESSE como me amou com um amor de inefável previdência, a fim de que agora o ame até a loucura!”.

7. A Misericórdia do Pai e do Filho

Por outro lado, a compreensão do quão grande é o Amor misericordioso de Deus Pai por cada um de seus filhos alcança seu cume na contemplação do mistério da Cruz, observado não só do ponto de vista da entrega comovente de Jesus por meus pecados, mas também considerando a generosidade do Pai que entrega seu Filho e recebe a entrega d’Ele.

Santo Agostinho, parafraseando São Paulo e São João, diz assim: “Como nos amaste, ó Pai bondoso, que não poupaste o teu único Filho, mas o entregaste por nós, pecadores! Como nos amaste a nós, a favor dos quais ele, não considerando rapina ser igual a ti, se fez obediente até à morte de cruz, sendo ele o único livre entre os mortos, e tendo o poder de entregar a sua vida, e o poder de a tomar novamente, por nós, diante de ti, vencedor e vítima, e vencedor porque vítima, por nós, diante de ti, sacerdote e sacrifício, e sacerdote porque sacrifício, fazendo de nós, diante de ti, de servos, filhos, nascendo de ti e servindo-nos”.

Toda essa riqueza de provas de Amor e Misericórdia divina nos proporciona novos impulsos às manifestações de trato filial, ousado e atrevido, da alma que deseja ser arrebatada e comovida por Deus. Voltemos a “ouvir” Santa Catarina de Sena, em sua oração a Deus Pai: “Ó misericórdia, Pai, que procede da tua divindade e que, pelo teu poder, governa o mundo inteiro. Tua misericórdia nos criou, tua misericórdia nos recriou pelo sangue de teu Filho, tua misericórdia nos conserva. Foi ela que levou Jesus a usar seus braços na cruz para a batalha da vida contra a morte, da morte contra a vida; (...) Ó misericórdia, afoga-se o meu coração ao pensar em ti! Para qualquer lado que me volte, só encontro misericórdia. Ó Pai eterno, perdoa minha insensatez, mas que o amor à tua Misericórdia me alcance o perdão diante da tua bondade”.

De fato, a consideração da Misericórdia do Pai e de Jesus se entrelaçam com certa frequência na oração dos santos, às vezes parecem se confundir, e é uma das ocasiões em que costumam tratar Jesus como Pai. Um exemplo disso é uma oração de Santo Afonso Maria De Ligório: “meu Jesus, Vós a quem ofendi, vos fazeis meu intercessor. Não quero pois fazer-vos ainda a injúria de desconfiar da vossa misericórdia. Arrependo-me de toda a minha alma de vos haver ofendido, ó, Bem supremo! Recebei-me em vossa graça, conjuro-vos pelo sangue que derramastes por mim. Não, meu Redentor e meu Pai, não sou digno de ser chamado vosso filho depois de haver tantas vezes renunciado ao vosso amor; mas vós com os vossos méritos me tornais digno dele. Agradeço-vos, meu Pai, agradeço-vos e amo-vos”.

Reencontramos assim, de uma nova perspectiva, a estreita relação entre o Amor paterno de Deus e a doação redentora de seu Filho, que no fundo é um reflexo do que o Filho recebe do Pai no seio da Trindade: toda a sua realidade divina e, por tanto, todo seu Amor infinito, o mesmo com que o Pai, o Filho e o Espírito Santo nos amam e nos perdoam.

8. A Proximidade de Deus

Percorrendo um itinerário contemplativo-reflexivo parecido com o que acabamos de cursar ao falar da Bondade e da Misericórdia, a intimidade divina, resultante da filiação divina vivida até as últimas consequências, também nos dá luzes sobre outros atributos divinos. E ao aprofundar nesses atributos, a vida espiritual volta a crescer, desejando corresponder mais a esse Amor divino inesgotável.

A imensidão de Deus e sua onipresença, por exemplo, surgem com uma presença ativa, viva e efetiva de Deus em cada um de seus filhos; como uma realidade concreta, amorosa e íntima para a alma; uma presença de um Pai interessado nas coisas de seu filho, sejam elas pequenas ou grandes, transcendentes ou não. A alma sente de verdade que seu Pai Deus só tem olhos para ela; e sua vida em Cristo juntamente com a presença ativa do Espírito Santo não deixam de lhe recordar e de lhe inspirar a agir em consequência.

Analogamente, experimenta-se a Eternidade divina como a plenitude desta presença e doação amorosa de Deus a cada um em cada instante, derramando no interior da alma toda a riqueza de seu ser divino: uma participação no eterno entregar-se do Pai ao Filho e ao Espírito Santo. Não é uma eternidade à margem do tempo, mas uma eternidade que entra no tempo e lhe proporciona valor de eternidade; e nisso tudo, a Encarnação do Verbo tem de novo um papel decisivo, pois a alma descobre o quanto Deus se interessa de verdade por tudo o que é humano e temporal.

Necessário é que nos embebamos, que nos saturemos de que Pai e muito Pai nosso é o Senhor que está junto de nós e nos céus

Toda essa realidade está por trás daquele ponto de Caminho, do qual no início deste texto já reproduzimos algumas palavras: “É preciso convencer-se de que Deus está junto de nós continuamente. — Vivemos como se o Senhor estivesse lá longe, onde brilham as estrelas, e não consideramos que também está sempre ao nosso lado.
E está como um Pai amoroso — quer mais a cada um de nós do que todas as mães do mundo podem querer a seus filhos —, ajudando-nos, inspirando-nos, abençoando... e perdoando. (...) Necessário é que nos embebamos, que nos saturemos de que Pai e muito Pai nosso é o Senhor que está junto de nós e nos céus”.

Ou essas outras considerações e recomendações de Santa Teresa de Jesus: “sem dúvida podeis crer que, onde está Sua Majestade, está toda a glória. Vede que Santo Agostinho falou que O procurou em muitos lugares e só veio a encontra-Lo dentro de si mesmo. Pensais que importa pouco uma alma dissipada entender essa verdade e ver que não precisa, para falar com seu Pai eterno ou para regalar-se com Ele, ir ao céu nem falar em altos brados? Por mais baixo que fale, Ele está tão perto que a ouvirá; do mesmo modo, ela não precisa de asas para ir procura-Lo, basta pôr-se em solidão e olhar para dentro de si, não estranhando a presença de tão bom hóspede. A alma deve, com grande humildade, falar-lhe como a um pai, pedir-Lhe como a um pai, contar seus sofrimentos e pedir alívio para eles, compreendendo que não é digna de ser sua filha”.

Por outra perspectiva, a eternidade de Deus, como ausência de princípio e de fim, entusiasma o santo, já que supõe infinidade também do amor de Deus por cada um. São Francisco de Sales diz assim: “Considera o amor eterno que Deus tem tido por nós. Antes da encarnação e da morte de Jesus Cristo a Majestade divina te amava infinitamente e te predestinava para o Seu amor. Mas quando é que Ele começou a te amar? Começou a fazê-lo quando começou a ser Deus. E quando começou a ser Deus?

Nunca, porque sempre o foi sem começo nem fim; e Seu amor por ti, que nunca teve começo, preparou-te desde toda a eternidade as graças e favores que tens recebido.”

Nessa estreita relação com o que dissemos anteriormente, a imutabilidade deixa de ser um atributo fundamentalmente negativo, que parece afastar Deus de nós. Revela-se, pelo contrário, uma vida cheia de intensa atividade, rica e perfeita, que se derrama em cada alma com verdadeiro amor paterno. Chega ao ponto de a alma sentir, nessa intimidade filial, que Deus se “comove” com ela, ao ritmo de suas experiências pessoais, assim como um bom pai reage com amor paterno diante dos sentimentos, necessidades e inquietudes de seu filho.

Obviamente, Deus não se comove no sentido de sofrer uma mudança, e sim no sentido de que vive sua relação conosco com toda a intensidade do seu amor infinito, assim como vivas e intensas são as relações no interior da Trindade. Ou seja, Deus ama de verdade e “vive” seu amor por cada filho e cada filha; e, portanto, participa realmente de todas as suas “instabilidades”, apesar de não as sofrer no sentido de imperfeição que essa expressão possa significar.

Mas o santo chega mais longe ainda, porque, por meio da Humanidade de Jesus, compreende que Deus quis se aproximar também dos aspectos passivos dessas experiências de seus filhos: quis “humanizar” seu amor, sem deixar de ser divino. E isto impressiona o santo duplamente: sem dúvida Deus se faz mais próximo, mas não deixa de ser Deus. Porque — insistimos mais uma vez — o grandioso e emocionante é, principalmente, que é meu Pai e meu Deus inseparavelmente; e que Jesus é o Homem-Deus que me abre os segredos da intimidade divina, sem rebaixar nem um “pingo” toda a sua grandeza ao nos entregá-la.

Vejamos de outro ângulo: a consciência da paternidade de Deus significa descobrir que Deus tem verdadeiros “sentimentos paternais”, que contêm perfeição de amor; ações divinas que alma apaixonada sente realmente como “novas”, “diferentes” em cada momento de seu trato íntimo com Deus, na medida em que se sabe amado como um filho concreto, diferente de outros filhos, que passa por situações diversas em cada momento, que não são indiferentes para um amor verdadeiramente paternal e maternal.

Só com essa perspectiva se pode vislumbrar a profundidade teológica que existe por trás das considerações íntimas dos santos, como a que reproduzirei pela boca de Santa Teresa do Menino Jesus, e vencer a tentação de classificar superficialmente como, por exemplo, “ingenuidades piedosas de uma menininha”:

“Imagino o Céu de tal maneira que, às vezes, me pergunto como fará o bom Deus, quando eu morrer, para me surpreender”. (Santa Teresinha)

“Imagino o Céu de tal maneira que, às vezes, me pergunto como fará o bom Deus, quando eu morrer, para me surpreender. (...) Enfim, já penso que, se não ficar suficientemente surpreendida, fingirei estar, para agradar ao bom Deus. Não haverá perigo de eu o deixar ver minha decepção; saberei bem como proceder para que ele não a perceba. Aliás, sempre me disporei a ser feliz. Para consegui-lo, tenho meus pequenos truques, que você conhece e que são infalíveis... Depois, nada mais além de ver feliz o bom Deus; isso bastará plenamente para ser plenamente feliz.”

Realmente se pode pretender enganar Deus assim? Pelo menos, me atrevo a assegurar, analisando o texto da santa, que o Senhor pode ter inventado alguma forma de fazer com que Santa Teresinha tenha pensado que conseguiu enganá-Lo; porque diante de uma alma tão delicada, um coração paterno como o de Deus não tem outro remédio a não ser render-se.

Finalmente, sem pretender esgotar a lista de atributos divinos, observemos também como a onipotência de Deus toma outra perspectiva quando se tem esta intimidade filial com Ele: não é um poder que me domina e subjuga, mas que está a “meu serviço”, um poder do qual inclusive participo, porque sou filho e herdeiro, com tudo o que isso implica. Sua providência não é a própria de um vigia controlador, muito menos um titereiro que manipula os fios da minha vida como se eu fosse uma marionete; e sim a providência que reflete os cuidados de um Pai amoroso, intensa e continuamente preocupado com o bem de seus filhos; incluída, logicamente, sua liberdade, concedida na criação e reconquistada para nós por Jesus na Cruz.

9. Transcendência de Deus e intimidade filial

A transcendência divina, para uma alma plenamente consciente do que significa ser filho de Deus, não é distância e desinteresse, e sim proximidade e intimidade: consciência de que toda essa grandeza de Deus que, em si mesma, parece inalcançável e impossível de se abarcar, coloca-se ao alcance do filho, não porque este consegue alcançá-la, mas porque Ele a dá, como verdadeiro Pai amoroso.

Este é o convencimento que está nessas frases extraídas de uma carta de Santa Teresa dos Andes a uma amiga sua: “Crê-me. Sinceramente te digo: antes não acreditava que era possível apaixonar-se por um Deus, a quem não se via, a quem não se podia tocar. Mas hoje afirmo com o coração na mão que Deus repara inteiramente esse sacrifício. De tal maneira sente a pessoa esse amor, essas carícias de Nosso Senhor, que lhe parece tê-lo a seu lado. Tão intimamente o sinto unido a mim, que não posso desejar mais, salvo a visão beatífica no céu. Sinto-me plena d’Ele, neste instante o abraço contra o meu coração, pedindo-lhe que me mostre as finezas de seu amor. Não existe separação entre nós. Aonde eu vou ele está comigo, dentro do meu coração. É sua casa onde eu habito, é meu céu aqui na terra”.

Essa última expressão (“céu na terra”), referida à alma, foi adotada pela santa chilena, mas provém dos escritos da Beata Elisabeth da Trindade, que a utiliza com muita frequência, e a explica assim: “‘Pai nosso que estais nos céus’ (Mt 6,9). É nesse pequeno céu, criado por ele no centro de nossa alma, que devemos procurá-lo e, sobretudo, permanecer. (...) Adoremo-lo em espírito em espírito e em verdade (cfr. Jo 4,23), isto é, por Cristo e com Cristo, pois só ele é o verdadeiro adorador, em espírito e em verdade. Então seremos filhos de Deus, conhecendo, por experiência própria, a verdade destas palavras de Isaías: ‘Seus filhinhos serão carregados ao colo e acariciados no regaço’ (Is 66,12). De fato, toda a ocupação de Deus parece ser a de cumular a alma de carícias e de sinais de afeição, como uma mãe que cria seu filho e o amamenta com seu leite. Oh! Estejamos atentos à voz misteriosa de nosso Pai: ‘meu filho’, diz ele, ‘dá-me teu coração’ (Pr 23,26)”.

No entanto, a mesma ideia de “céu na terra” pode ser vista de outra maneira enriquecedora, como a que propõe São Josemaria Escrivá numa homilia que pronunciou neste campus universitário em 1967: “Eu lhes asseguro, meus filhos, que quando um cristão desempenha com amor a mais intranscendente das ações diárias, está desempenhando algo donde transborda a transcendência de Deus. Por isso, tenho repetido, com insistente martelar, que a vocação cristã consiste em transformar em poesia heroica a prosa de cada dia. Na linha do horizonte, meus filhos, parecem unir-se o céu e a terra. Mas não: onde de verdade se juntam é no coração, quando se vive santamente a vida diária”.

A intimidade da relação paterno-filial com Deus se projeta assim em toda realidade que rodeia a vida do cristão: no mundo visto pela Bondade de seu Criador, que é nosso Pai e que no-lo deu por herança. Explica-se assim o título que o fundador desta universidade deu à homilia citada: “Amar o mundo apaixonadamente”, tão apaixonadamente como amamos nosso Pai Deus.

Parece-me importante, neste momento já avançado da nossa reflexão, falar sobre outra realidade profundamente sentida pelos santos (presente também nos textos citados), mas nem sempre bem entendida em algumas especulativas sobre o nosso tema. Transcendência divina significa verdadeira intimidade, sim, mas com “outro”; e o mais maravilhoso para o santo é que, sendo Deus quem é, Ele se une a mim; e que, unido a mim, continue sendo quem é. É um amor e uma união de dois: o Pai não é o Filho e o Filho não é o Pai; e, além disso, eu sou o filho porque Ele quis livremente me constituir como tal.

É uma divinização que não se confunde; a alma santa intui que se tivesse algum tipo de mistura ou confusão, já não seria um amor genuíno, porque já não receberia tanto, merecendo tão pouco: já não seria o tudo que se derrama no nada; e intui também que, se houvesse igualdade de “condições” com Deus, esse amor perderia o encanto.

Pessoalmente, apesar da pobreza de qualquer comparação deste estilo, ajuda-me a entender e explicar esse sentimento íntimo dos santos diante do amor de Deus que supera o abismo aberto por sua condição humana e sua miséria pessoal, a imagem, repetida de diversas formas na literatura, da pobre donzela pela qual um grande príncipe se apaixona, ou do pobre miserável que descobre que seu pai é rei.

Aproveitemos este momento para observar também que, por trás de tudo o que dissemos até aqui, está uma atitude fundamental por parte dos filhos de Deus, atitude essa que é uma virtude básica no caminha da vida interior: a humildade. A filiação me eleva até alturas insuspeitadas de intimidade com Deus e de divinização, sim; mas porque Deus se faz meu, não porque eu deixei de ser criatura, nem pecador, nem miserável. Quanto mais íntima é essa união com a Trindade, mais a alma santa sente o abismo que a separa de Deus e, consequentemente, valoriza mais seu Amor e sua Misericórdia. E assim se inicia outro ciclo de sentir-se amado e responder a esse amor, nesse espiral apaixonante que nos conduz à santidade.

10. Consequência da filiação divina e caminho rumo à santidade

Chegamos ao final da nossa reflexão, mas não posso deixar de falar brevemente sobre outros aspectos que me parecem decisivos na compreensão da vida espiritual à luz da filiação divina. O primeiro, que esteve bastante presente ao longo de toda essa exposição, nasce das conhecidas palavras que encerram a primeira parte do sermão da montanha: “sede, portanto, perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48).

Ao falar da chamada universal à santidade é comum recorrer à esta citação, entre outras referências bíblicas. No entanto, ao desenvolver o que essa chamada supõe à vida cristã, coloca-se o foco na imitação de Cristo (o que é válido, mas, ao meu ver, faz-se de maneira muito unilateral). A referência explícita que o próprio Jesus faz ao Pai nesse momento abre outros horizontes enriquecedores sobre o que significa a santidade cristã que todos procuramos e sobre como consegui-la.

Efetivamente, essas palavras do Senhor nos falam da grandeza e maravilha da meta, sem rebaixá-la nem um pouco e, ao mesmo tempo, aumentam nossa confiança e desejo de alcançá-la: se não fosse meu Pai, sua perfeição seria inatingível; se não fosse Deus, minha confiança fraquejaria e meu desejo não ferveria, pois a meta não seria tão maravilhosa e apetecível; a mais apetecível de todas.

De fato, algo paralelo acontece quando refletimos sobre a imitação de Cristo, que não se pode separar de seu Pai: se não fosse homem como eu, que difícil seria imitá-lo! E se não fosse Deus, que pouco poder teria para me ajudar, e que pouco estimulante seria ser seu discípulo! Outra consideração similar pode ser feita ao meditar no que significa ser templo do Espírito Santo e sermos conduzidos por Ele no nosso caminho de santidade.

Mas, sendo considerações paralelas, não podem reconduzir umas às outras, sem tergiversar a realidade do mistério trinitário e da nossa participação nele: realmente sou filho de Deus — do Pai, no Filho, pelo Espírito Santo — e minha santidade brota daí e tem que crescer nessas mesmas coordenadas trinitárias, até a meta que acabamos de ver, e que continuará sendo divino-trinitária: “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos! Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é.” (1 Jo 3,2).

Assim, na medida em que cresce a consciência dessa relação paterno-filial com Deus, a alma corre: voa em direção à santidade... A beata Elisabeth da Trindade escreve, depois de citar o trecho de São João que acabamos de reproduzir: “Eis a medida de santidade dos filhos de Deus: ser tão santo quanto Deus é santo, participar de sua santidade, e isto vivendo em contato com ele, no fundo do abismo sem fundo, ‘no íntimo’”.

"Deus Pai só deu ao mundo seu Unigênito por Maria"

11. Paternidade de Deus e maternidade de Maria

Nossa última consideração nos levará da paternidade divina à maternidade mariana. Mas daremos a palavra a São Luiz Maria Grignion de Monfort: “Deus Pai só deu ao mundo seu Unigênito por Maria. (...) O mundo era indigno, diz Santo Agostinho, de receber o Filho de Deus diretamente das mãos do Pai, ele o deu a Maria a fim de que o mundo o recebesse por meio dela. Em Maria e por Maria é que o Filho de Deus se fez homem para nossa salvação. Deus Espírito Santo formou Jesus Cristo em Maria, mas só depois de lhe ter pedido consentimento por intermédio de um dos primeiros ministros da corte celestial”.

Utilizando estas considerações como fio condutor, queremos destacar a relação entre a paternidade divina e a maternidade mariana, que, partindo desta singular relação de Santa Maria com a Trindade, verte-se em nós. Assim como insistimos em contemplar a consciência da filiação divina como uma compreensão da paternidade de Deus, queremos observar a conveniência de admirar Maria como modelo de filiação e contemplar sua maternidade espiritual, não somente por sua relação maternal com Cristo, mas também pela sua relação singular com o Pai enquanto Pai de Jesus, e com o Espírito Santo enquanto nexo de união no seio da Trindade.

No amor maternal de Maria, como consequência desta consideração, sentiremos e compreenderemos melhor, de forma viva e muito “humana”, o amor paternal de Deus, do qual ela participa de uma maneira única; e particularmente nas suas manifestações “maternais”: que precisamente serviram de ponto de partida desta exposição e apareceram várias vezes ao longo dela, na boca dos santos. Voltemos a “ouvir” um deles, este grande mestre do amor a Maria que acabamos de citar:

Esta Mãe do amor formoso aliviará vosso coração de todo escrúpulo e de todo temor servil

“Esta Mãe do amor formoso aliviará vosso coração de todo escrúpulo e de todo temor servil; ela o abrirá e alargará para correr pelo caminho dos mandamentos de seu Filho, com a santa liberdade dos filhos de Deus, e para nele introduzir o puro amor, de que ela possui o tesouro; de tal modo que não mais vos conduzireis, como o fizestes até aqui, pelo receio ao Deus de caridade, mas pelo puro amor, unicamente. Passareis a olhá-lo como vosso bondoso Pai, tratando de agradar-lhe incessantemente; com ele conversareis confidentemente, à semelhança de um filho com seu pai. Se, por acaso, o ofenderdes, humilhar-vos-eis em continente diante dele, pedir-lhe-eis perdão humildemente, lhe estendereis simplesmente a mão, e vos levantareis amorosamente, sem perturbação nem inquietação, se sem desfalecimentos continuareis a caminhar para ele.”