A bússola no bosque

Seppo Rotinen é finlandês e foi estudar Medicina em Viena nos anos 60. Lá conheceu a mensagem de São Josemaria. Não era católico e ao ler Caminho, descobriu que a religião não consistia num conjunto de ritos, mas num sentido da existência, uma paixão da alma e um estilo de vida.

Foto de Dimitri Conejo Sanz

O amor é a meta última e a mais alta à que o homem pode aspirar (Viktor Frankl).

Eu nasci em Ilomantsi, na Carélia do Norte. É uma zona de bosques e lagos, perto da fronteira com a Rússia. Meus antepassados viveram lá durante gerações, dedicando-se à agricultura e à pecuária, quase isolados do resto do mundo. Eu era o sétimo de nove irmãos, e nossos vizinhos mais próximos, os Sivonen, viviam a um quilômetro e meio.

Isso não significa que a nossa vida fosse chata, porque em uma granja como a nossa – na qual, além da casa e da sauna, tínhamos um estábulo para oito vacas e um cavalo, junto com muitos outros animais –, não havia tempo para o tédio; pelo menos para uma criança como eu.

Minha infância foi parecida com a dos meus pais e avós – granjeiros modestos de tradição luterana, com famílias grandes –, e toda a minha vida também poderia também ter sido, a não ser por duas pessoas: o Sr. Vissariónovich e a Sra. Helmi.

O Sr. Vissariónovich organizou no 26 de novembro de 1939 uma espécie de teatro em Mainila, uma aldeia do istmo da Carélia, a poucos quilômetros ao Norte de Petrogrado, que se chamava Leningrado. A atuação consistia em explodir algumas bombas e atribuir esse ataque aos finlandeses.

Graças ao Sr. Vissariónovich, mais conhecido como Stalin, minha família deixou de morar em um lugar desconhecido do planeta e passou a ser, de repente, o foco da atenção internacional. Devemos a este senhor que Ilomantsi entrasse para a história europeia e que a família Rotinen tivesse que rapidamente abandonar por completo a granja ante a chegada do Exército Vermelho, para refugiar-se em Siilinjärvi, no centro de Finlândia.

Era Davi contra Golias. Nós, finlandeses, esperávamos uma ajuda da Suécia, Inglaterra e Estados Unidos, que nunca chegou, e tivemos – é um modo de dizer, claro, pois eu ainda não tinha nascido – que nos virar sozinhos frente aos cinco exércitos soviéticos, que avançavam sobre os 1.200 quilômetros da nossa fronteira, com mais de 450.000 soldados.

Recebeu o nome de Talvisota (“Guerra de Inverno”) e durou de novembro de 1939 a março de 1940. Esse ataque à “cintura” da Finlândia, nas palavras de Churchill, foi desastroso para os invasores, pois os soldados finlandeses – diferentemente daqueles – estavam equipados com esquis e vestimentas adequadas. Além disso, os finlandeses mostraram ser lutadores agressivos e bem treinados; e quando as colunas russas penetraram cinquenta quilômetros em direção ao interior, caíram sobre elas, e no fim de dezembro o plano russo de atravessar a cintura fracassou.

Um ano depois, em julho de 1941, continuou o conflito, com o que chamamos de “Guerra de Continuação”. Ilomantsi se converteu no cenário de uma feroz batalha que durou até 13 de agosto. Foi o último grande ataque das tropas inimigas.

A guerra terminou em 19 de setembro de 1944 e eu nasci poucos meses depois, quando minha família estava de volta a Ilomantsi e a vida na granja havia voltado à normalidade das risadas e brigas de crianças, próprias de uma família grande. Mas a sombra da guerra continuava presente. Durante os longos invernos da minha infância, com frequência ouvi dizer do sisu que tínhamos demonstrado nos combates. O sisu é um termo que significa, mais ou menos, coragem, rijeza, audácia, valentia, perseverança, capacidade de resistência e fortaleza.

As ideias da senhora Helmi

Eu teria permanecido durante toda minha vida em nossa granja, mergulhando nos lagos durante o verão e fazendo salto de vara no inverno, para impressionar as meninas, como meus irmãos mais velhos, a não ser pela Sra. Helmi, minha mãe, que tinha colocado na cabeça – assim como o Sr. Rotinen, meu pai – uma ideia peregrina: apesar da nossa situação econômica, francamente modesta, queria que, se pudéssemos, entrássemos na universidade. E como eu tinha sido bom aluno, decidiram me enviar a Joensuu, capital da Carélia do Norte, para continuar os estudos. Da minha escola, fui o único a fazer isso.

É lógico que os meus protestos não serviram para nada, e em poucos dias eu já estava preparado para a expedição, embutido como uma salsicha dentro de várias camisetas, camisas e malhas, com meu abrigo polar e as orelhas bem protegidas por um gorro de lã com orelheira. Levava uma tigela de leite e uma cesta com pão preto e manteiga caseira para aliviar os ataques de fome entre as aulas, porque a alimentação que davam nas escolas do pós-guerra não era precisamente abundante.

Em Joensuu passei bem, embora sentisse falta da vida ao ar livre. Felizmente, ao terminar o ensino médio (que era gratuito: se não, não poderia ter estudado), fiz o serviço militar numa academia de oficiais situada a uns cento e cinquenta quilômetros ao sul. Ali vivi um ano em plena natureza, guiando-me por minha bússola. Nós os finlandeses recorremos, durante séculos, lagos gelados e bosques espessos em busca de caça, sabendo que durante horas, e às vezes durante dias, não encontraremos ninguém no caminho. Somos conscientes de que a bússola é a nossa salvação; e que perdê-la pode significar, às vezes, perder a própria vida.

Destinaram-me a um corpo do Exército cujo nome poderia traduzir-se como “guerrilheiros da fronteira”, onde aproveitei e me diverti muitíssimo. Um dia um general austríaco veio visitar-nos e nosso capitão disse que estávamos treinados para chegar a qualquer ponto só com a bússola.

- Eu não acredito – disse o general, pensando que estava apenas se gabando.

Os finlandeses somos serenos. O capitão não se perturbou; desdobrou um mapa sobre a mesa e lhe propôs:

- Meu general: indique-me, por favor, aonde deseja que cada um vá.

O austríaco escolheu vários pontos ao acaso, distantes entre si. Horas depois, foram de carro para reconhecer os diversos lugares e encontraram cada soldado em seu posto.

Ao terminar o serviço militar encontrei um problema: só havia três faculdades de medicina, que eram insuficientes para acolher os que queríamos ser médicos. As autoridades, ostentando o pragmatismo finlandês, concluíram que era mais simples conseguirmos bolsas para estudar no estrangeiro do que construir uma faculdade nova. Fizeram listas, me apresentei e ganhei uma bolsa para estudar na Áustria.

Um finlandês em Viena

Tinha vinte anos e, ao chegar a Viena, acreditava estar vivendo um sonho: a Ringstrasse, a Ópera, o Prater, o Stadpark com a estátua de Johann Strauss... Era outro planeta. Tomei uma resolução firme: além de tirar boas notas (a possibilidade de ser reprovado não entrava em meus planos, porque não tinha dinheiro nem para voltar a minha casa nas festas de Natal, ainda menos para pagar uma matrícula e uma reprovação significaria o final da minha faculdade); decidi absorver bem a cultura vienense, que gira ao redor da música. “Agora ou nunca”, pensei.

Assombrou-me o ritmo de vida vienense, excessivo para um rapaz que devia estudar tanto como eu. O nível acadêmico era muito alto (menos da metade terminou a faculdade) e todos os exames eram orais. A isso se unia, em meu caso, a dificuldade do idioma. Até que um bom dia, meu amigo Timo me falou de Birkbrunn Studentenhaus, a residência de estudantes na qual morava. “Por que você não vem? – me disse. Há ambiente de trabalho e se estuda bem”. Comentou que era dirigida por católicos, dos quais eu não sabia nada, exceto a lista de tópicos negativos que me tinham ensinado na escola.

entendi a mensagem de São Josemaria ao vê-la encarnada nas vidas das pessoas do Opus Dei.

O clima de estudo e alegria daquela residência me agradou, e, passado pouco tempo, mudei-me para lá. Conviviam estudantes e profissionais de grandes interesses culturais, como Ernst Burkhart, um jovem advogado que me falou da mensagem de Josemaria Escrivá – que então residia em Roma – e da santificação do trabalho.

Li Caminho, que me deixou uma marca profunda, e descobri que a religião não consistia num conjunto de ritos, mas num sentido da existência, uma paixão da alma e um estilo de vida. E pela primeira vez ouvi as palavras Opus Dei.

Em Birkbrunn residia em sacerdote catalão, Juan Bautista Torelló, que havia estudado Medicina e Psiquiatria na Espanha antes de ordenar-se. Era autor de vários livros que me interessaram, e graças a ele, entrei em contato com o seu amigo judeu, Viktor Frankl, o prestigioso fundador da terceira escola de psicoterapia vienense.

Essas duas personalidades – Escrivá e Frankl – marcaram-me profundamente em dois aspectos diversos e complementares: o espiritual e o profissional. Aprendi muito da visão antropológica de Frankl, sempre respeitoso com o cristianismo. Dizia-nos que não lhe assombrava que uma religião que trabalha há dois mil anos com as melhores cabeças do Ocidente tivesse “gerado um conceito de homem que em muitos casos continua sendo insuperável”.

Compreendi o pensamento de Frankl por meio de suas palavras, algo coerente com o fundador da Logoterapia. Pelo contrário, entendi a mensagem de São Josemaria ao vê-la encarnada nas vidas das pessoas do Opus Dei. Eram pessoas com virtudes e defeitos, como todos, que se esforçavam por seguir a Cristo de um modo que, no começo, eu não entendia completamente.

Uma revolução copernicana

Como tantos cristãos de minha época, pensava que para seguir Cristo bastava ir aos serviços religiosos aos domingos, enquanto minha vida real – minha família, minha profissão, minhas relações sociais, decorria por outra parte.

Todo trabalho humano nobre podia levar à amizade com Jesus Cristo.

Compreendi que o que Escrivá propunha era uma entrega plena no meio do mundo, como os primeiros cristãos, com o desejo de “colocar Cristo no cume das atividades humanas”. Não se tratava de cumprir uma série de obrigações ou de dedicar-se a Deus durante uma hora por semana, mas de viver a existência inteira – nas relações familiares e sociais, de trabalho, de descanso, etc. – diante de Deus e por amor a Deus.

Todo trabalho humano nobre – recordava – podia levar à amizade com Jesus Cristo. Os horizontes e os ideais dos quais falava me davam vertigem, porque supunham uma revolução copernicana em relação ao que havia ouvido até então.

O comportamento humano daquelas pessoas do Opus Dei me parecia muito interessante do ponto de vista psicológico. Cada um tinha suas peculiaridades, suas virtudes e seus defeitos; eram muito diferentes entre si, mas estavam unidos por uma sinfonia interior: a paixão por Cristo. E um dia me propus ser do Opus Dei. Sim, eu também desejava esforçar-me por ser consequente com a minha fé batismal a todo momento, vivendo o cristianismo na vida cotidiana, em minha profissão, em minha família, no meio da rua…

Se for preciso viajar três mil quilômetros...

O meu desejo de fazer parte do Opus Dei encontrava dois obstáculos que, sendo realista, teriam desanimado a qualquer um. Em primeiro lugar, eu nem sequer era católico e, em segundo lugar, por muito que a sua mensagem me atraísse, a meados dos anos sessenta não havia ninguém do Opus Dei na Finlândia, para onde pensava regressar ao terminar a faculdade.

Era o primeiro finlandês do Opus Dei. Estava feliz e agoniado ao mesmo tempo

Continua parecendo-me um milagre a luz que Deus me concedeu naqueles momentos: primeiro, para entrar na comunhão da Igreja católica e, poucos meses depois, para pedir a admissão na Obra. Era o primeiro finlandês do Opus Dei. Estava feliz e agoniado ao mesmo tempo, porque sabia que, na minha terra, estava tudo por fazer e para receber a formação espiritual necessitaria viajar – ou teriam que viajar – vários milhares de quilômetros.

– Não se preocupe – me disseram–; se for preciso viajar três mil quilômetros, viajaremos.

Pensei que era uma simples frase; mas foi o que aconteceu, e ao pé da letra, pouco tempo depois. Terminei a faculdade; casei-me com Carmen e fomos para a Finlândia. E como tinham dito, um sacerdote do Opus Dei, Theo Irrgang, começou a vir regularmente para atender a mim e a outras pessoas, algumas delas do Opus Dei, que dava para contar com os dedos de uma mão. E sobravam dedos. Pregava um recolhimento, confessava, conversava com os amigos católicos e não católicos que íamos conhecendo... A maioria éramos jovens profissionais recém-casados.

A sua primeira viagem foi de 3.288 quilômetros. Eram os primeiros passos do Opus Dei na Finlândia. Aquilo era questão de fé. Eu a tinha, embora de fato não visse nada, como acontece durante as tempestades de neve. Do ponto de vista humano, parecia sem sentido pensar que a Igreja católica deixaria de ser uma minoria quase desconhecida e, em concreto, que o Opus Dei se tornaria realidade na Finlândia. Talvez depois de séculos... “Os frutos tardarão muitos anos para vir – pensava. E eu não os verei”.

Outro dia, vi pela Internet aentrevista a Oskari (um jovem finlandês que agora é sacerdote do Opus Dei) e tive uma grande alegria ao ver como a Obra também vai sendo mais conhecida aqui. Anos atrás, isso seria inimaginável para mim. E agora que sou avô (e em dose tripla: tenho netos trigêmeos), vejo que Deus fez tudo e, ainda por cima, multiplicado por três.

* Testemunho de Seppo Rotinen, publicado no livro “Cálido viento del norte”, de J. M. Cejas.