Carta do Prelado por ocasião do Ano da misericórdia (em português)

"Agradeçamos ao Santo Padre, com obras e com oração, a convocação deste jubileu especial, verdadeiro tempo de graça para a Igreja e para o mundo".

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Queridíssimos: que Jesus me guarde as minhas filhas e os meus filhos!

1. Bendito seja Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias, Deus de toda a consolação, (2 Cor 1, 3), que, impulsionado pelo grande amor com que nos amou, quando estávamos mortos em consequência de nossos pecados, deu-nos a vida juntamente com Cristo (...) com ele nos ressuscitou e nos fez assentar nos céus, com Cristo Jesus (Ef 2, 4-6).

Palavras de são Paulo que ajudam a pôr o foco, desde o início, no que me proponho transmitir-vos com estas linhas. Move-me a escrever o desejo de que nos preparemos da melhor forma possível, para viver o Ano da misericórdia, convocado pelo Papa Francisco, por ocasião do quinquagésimo aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II. Começará, como sabem, no próximo dia 8 de dezembro, e concluir-se-á na solenidade de Cristo Rei, dia 20 de dezembro de 2016.

Quando o Santo Padre comunicou o seu propósito de convocar este ano santo extraordinário, sentimos a alegria cristã de ver que coincide com a última parte do ano mariano pela família que estamos percorrendo na Prelazia. Percebemos isso como mais um sinal da proteção de Nossa Senhora, que invocamos na ladainha como Regína famíliæ e Mater misericórdiæ.

Com a intercessão da nossa Mãe, recorremos à bondade do Senhor, refúgio seguro e sempre disposto a ouvir as nossas petições e remediar as nossas necessidades pessoais. Da misericórdia divina podemos conseguir um aumento da caridade, da compreensão, da fraternidade, do interesse pelas almas, pois – como membros da Igreja – queremos contribuir para «tornar mais humana a família dos homens e a sua história»[1]. Caminhemos dia após dia com uma esperança sólida: o Céu não deixa de nos oferecer meios para nos enchermos de paz, com a certeza de que a Santíssima Trindade sempre olha para a criação. Como o Papa Francisco recorda, subamos das obras criadas à contemplação da mão paterna e amorosa de Deus[2].

Agradeçamos ao Santo Padre, com obras e com oração, a convocação deste jubileu especial, verdadeiro tempo de graça para a Igreja e para o mundo. Enche-nos de júbilo acolher a chamada do Pai comum para ter mais proximidade com Nosso Senhor, na piedade e na celebração dos sacramentos – principalmente na Penitência e na Eucaristia – e também nas manifestações concretas de caridade fraterna com o próximo. Se formos dóceis ao Espírito Santo, configurar-nos-emos mais com Cristo, e seremos mais parecidos com o Pai Celestial, cujo rosto misericordioso foi-nos revelado em Cristo.

2. Deus, cui próprium est miseréri semper et párcere: súscipe deprecatiónem nostram[3], Deus, de quem é próprio perdoar e usar sempre de misericórdia: acolhei as nossas súplicas, repetimos todos os dias. A misericórdia! É sempre necessário aprofundar – como a Igreja convida a fazer – neste consolador atributo divino que resume todos os outros. Fazemo-lo com confiança filial. Ao convocar este jubileu extraordinário, o Santo Padre escreve que a misericórdia «é a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade (...), é o ato último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro (...) é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida. Misericórdia: é o caminho que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado»[4].

Passaram-se trinta e cinco anos desde que são João Paulo II publicou a encíclica Dives in misericordia. Considerava nela a conveniência de meditar frequentemente nesta expressão maravilhosa do Amor divino. Escrevia: «sugerem-no múltiplas experiências da Igreja e do homem contemporâneo; e exigem-no também as aspirações de tantos corações humanos, os seus sofrimentos e esperanças, as suas angústias e expectativas»[5].

As palavras de são João Paulo II, além de conservar plena atualidade, tornam-se cada dia mais prementes: sempre precisamos da clemência divina, mas no nosso tempo é possível afirmar que esta necessidade assume mais urgência. Quando o Papa Francisco abrir a porta santa nas diversas basílicas papais, e cada Bispo na sua circunscrição, «confiaremos a vida da Igreja, a humanidade inteira e o universo imenso à Realeza de Cristo, para que derrame a sua misericórdia, como o orvalho da manhã, para a construção de uma história fecunda»[6]. São Josemaria, como consequência da sua experiência pessoal, exortou-nos explicitamente, desde o início da Obra, a procurar este imenso amor de Deus, que não abandona os seus filhos, as mulheres e os homens. Nosso Fundador sugeriu-nos inúmeras maneiras de bater às portas do Coração de Jesus.

3. São Josemaria ensinou-nos a impregnar os caminhos da terra com a misericórdia que Jesus Cristo trouxe à terra, e concretizava: a nossa entrega, ao serviço das almas, é uma manifestação dessa misericórdia do Senhor, não só para conosco, mas também para com toda a humanidade[7]. Vamos para frente, acompanhados pelo nosso Padre, para colaborar com o Senhor para que essa corrente de amor misericordioso – que se derrama continuamente do coração chagado de Jesus em toda a humanidade – seja superabundante em todos os cristãos e em todos os homens de boa vontade.

Com estes sentimentos e aspirações, convido-vos, filhas e filhos meus, a começar com uma devoção séria e com alegria o Ano da Misericórdia. Vamos nos inspirar nos ensinamentos da Sagrada Escritura, cujas páginas são um hino maravilhoso à clemencia divina; e vamos nos deter de modo especial no exemplo de Cristo, na sua vida e nos seus ensinamentos, procurando seguir – nesta intimidade de conduta com o Redentor – os passos de São Josemaria, que dirigia constantemente o seu olhar para a figura do Bom Pastor, que entrega todo o seu ser pelas suas ovelhas (cfr. Jo 10, 1-18), e sugeriu, a nós e a muitos outros homens e mulheres, olhar cada vez mais para o Senhor do Céu e da Terra.

A misericórdia de Deus com a humanidade

4. O Antigo Testamento já proclama, em muitas das suas páginas, a insondável piedade de Deus com as suas criaturas. O Senhor é clemente e misericordioso, lento para a ira e rico de graça. O Senhor é bom para com todos, compassivo com todas as suas criaturas (Sl 144 [145] 8-9). E os profetas não cansam de advertir: Voltai para o Senhor vosso Deus, pois ele é bom e cheio de misericórdia. É manso na ira, cheio de carinho e retira a ameaça (Jl 2, 13).

Na Última Ceia, Nosso Senhor rezou – segundo a tradição judaica – o Grande Hallel ou grande canto de louvor: um salmo que enumera as maravilhas realizadas por Deus na criação e na história: e, no final de cada versículo, repetem-se como um estribilho as seguintes palavras: porque a sua misericórdia é eterna (Sal 135 [136]).

«Em virtude da misericórdia, todos os acontecimentos do Antigo Testamento aparecem cheios dum valor salvífico profundo»[8]; e igualmente essa qualidade manifesta-se com plenitude no Novo Testamento, pela encarnação redentora do Filho de Deus. O próprio Jesus, ao oferecer a sua vida no sacrifício cruento da Cruz, ao instituir a Eucaristia e os outros sacramentos, colocou este supremo ato de Amor como conteúdo fundamental da misericórdia divina.

Revisemos com frequência as passagens do Evangelho que manifestam a compaixão e a compreensão de Jesus com a humanidade; desde o seu nascimento em Belém até o seu holocausto no Calvário. Detenhamo-nos muitas vezes em tantas manifestações da sua piedade compassiva: quando curava os doentes e libertava os possessos, quando alimentava as multidões famintas, quando distribuía à mancheias o pão da doutrina, quando ia ao encontro dos pecadores arrependidos e os perdoava, quando escolhia os discípulos, quando os repreendia com um olhar ou umas palavras, quando chamava os Apóstolos para manda-los por todo o mundo, quando nos deu a sua Mãe como Mãe nossa, quando nos enviou o Espírito Santo prometido, etc. Em qualquer uma das suas obras e das suas palavras, o Senhor exprime claramente o rosto clemente de Deus Pai.

A mesma coisa acontece ao longo da história da Igreja, depois da Ascensão de Jesus Cristo ao Céu. No meio das luzes e sombras que aparecem no caminho dos cristãos, nunca faltaram as intervenções da indulgência divina: por meio do Espírito Santo que habita na Igreja, e com a presença real de Cristo na Eucaristia, além da intercessão sempre atual da Virgem Santíssima, são-nos reveladas as torrentes de misericórdia que se derramam continuamente sobre o mundo. Não deixemos de agradecê-lo ao nosso Pai Celestial. Abramos de par em par as portas do nosso coração e procuremos que outras pessoas também se deixem empapar pela graça divina.

História das misericórdias de Deus

5. Na sua encíclica Dives in misericórdia, são João Paulo II colocava a misericórdia no centro da vida da Igreja, na história da humanidade. «Na realização escatológica, a misericórdia revelar-se-á como amor, enquanto que no tempo presente, na história humana, que é conjuntamente história de pecado e de morte, o amor deve revelar-se sobretudo como misericórdia e ser realizado também como tal. O programa messiânico de Cristo – programa tão impregnado de misericórdia – torna-se o programa do seu Povo, da Igreja. Ao centro deste programa está sempre a Cruz, porque nela a revelação do amor misericordioso atinge o ponto culminante»[9].

De fato, não podemos separar a Cruz da Ressurreição, ambas revelam o Amor divino: em todo o mistério pascal manifesta-se a misericórdia de Deus. O bem-aventurado Paulo VI afirmou que «toda a história da salvação é guiada pela misericórdia divina, que vem ao encontro da miséria humana»[10].

Cristo tomou sobre si os nossos pecados, e «se ofereceu uma só vez para tomar sobre si os pecados da multidão» (Heb 9, 28). Nossa Senhora aceitou com plena liberdade a entrega de quem, tendo compartilhado a nossa condição humana em tudo menos no pecado (cfr. Heb 4, 15), podia manifestar uma verdadeira compaixão. Com o Magnificat, Santa Maria profetizou: sua misericórdia se estende de geração em geração (Lc 1, 50).

6. Filhas e filhos meus: somos – e estamos contentes por isso – dessas gerações que cantam as misericórdias de Deus! Na sua vida pessoal e na do Opus Dei, o nosso Padre descobria constantemente o amor de predileção do Senhor. Muitas vezes repetiu que toda a história da Obra é uma história das misericórdias de Deus. Nem nesta carta – enfatizava nos anos 60– nem em muitos documentos que vos escrevesse, poderia esgotar o relato dessas providências da bondade de Deus, que precederam e acompanharam sempre os passos da Obra[11]. Neste contexto, não hesitava em afirmar que a história do Opus Dei terá de ser escrita de joelhos[12]. Assim salientava, com uma frase expressiva, que a iniciativa da fundação e gestação da Obra foi sempre do Senhor: a ele, cabia-lhe só ser o instrumento fiel dessa vontade divina.

Realmente, a existência de São Josemaria e a do Opus Dei entrelaçam-se intimamente, sem que seja possível distinguir ou separar uma da outra desde 1928. Na Obra, foi o Senhor que fez tudo – exclamava em uma meditação –; humanamente falando, o que havia? Só bom humor, muito amor a Jesus Cristo e à sua Igreja, e empenho em perseverar perante o impossível. O Senhor me conduziu como eu, em criança, mexia com os meus soldadinhos de chumbo: levava-os onde queria, às vezes quebrava-lhes a cabeça... Assim atuou o Senhor comigo: conduziu-me pelos caminhos que Ele quis, permitiu que me dessem uns bons golpes, porque me convinha[13].

Cada uma destas circunstâncias serviam ao nosso Fundador para fortalecer a sua fidelidade e o seu abandono nas mãos do Senhor. Como o Papa Francisco anotou: «A pessoa sabe com certeza que a sua vida dará frutos, mas sem pretender conhecer como, onde ou quando; está segura de que não se perde nenhuma das suas obras feitas com amor, não se perde nenhuma das suas preocupações sinceras com os outros, não se perde nenhum ato de amor a Deus, não se perde nenhuma das suas generosas fadigas, não se perde nenhuma dolorosa paciência»[14]. Por isso, o nosso Padre nunca perdeu a paz: meus filhos, com a contrição está o Amor: nenhum destes trabalhos, nenhuma pena fez-me perder o gáudium cum pace, porque Deus me ensinou a amar, e nullo enim modo sunt onerósi labóres amántium (Santo Agostinho, De bono viduitátis, 21, 26); para quem ama, o trabalho nunca é uma carga pesada. Por isso, o que importa é aprender a amar, porque in eo quod amátur, aut non laborátur, aut et labor amátur(ibid.): onde há amor, tudo é felicidade. E esta foi a grande misericórdia de Deus: conduziu-me como a uma criança, ensinando-me a amar. Quando mal era um adolescente, o Senhor lançou no meu coração uma semente inflamada de amor, e hoje esta semente é, filhas e filhos meus, uma árvore frondosa, de tronco esbelto, que restaura com a sua sombra uma legião de almas[15].

7. São Josemaria sempre se comportou assim. A devoção a este seguro refúgio divino que estamos contemplando era antiga: aprendeu-a dos seus pais na casa familiar; robusteceu-se durante a sua preparação para o sacerdócio no Seminário de Logronho e no de São Carlos, em Saragoça, onde havia uma representação do Coração de Jesus inflamado de amor e coroado de espinhos, que o comovia profundamente. Depois, durante a guerra civil espanhola, fez-se presente de um modo novo, como descrevia durante um tempo de oração, na véspera da solenidade do Sagrado Coração:

Quero ver-me agora, meu Deus, junto à ferida do teu peito. E pensar em todos os meus filhos, em todos os que agora são membros vivos deste Corpo vivo da tua Obra. Nomeando-os, considerarei as suas qualidades, as suas virtudes, os seus defeitos, e a seguir suplicar-Te-ei, empurrando-os para Ti, um a um: “Para dentro!” Metê-los-ei dentro do teu Coração. Assim quero fazer com cada um e com todos os que virão depois, durante séculos, até ao fim do mundo, para fazer parte desta família sobrenatural. Todos, todos unidos no Coração de Cristo, todos feitos uma só coisa por amor a Ele e todos desprendidos das coisas da terra pela força deste amor acompanhado de mortificação. Queremos ser como os primeiros cristãos; vamos reviver o seu espírito no mundo. Comecemos, pois, por tornar real dentro da Obra aquela afirmação: congregávit nos in unum Christi amor[16].

Na Santa Missa, depois da Consagração, São Josemaria recitava em silêncio, interiormente, a oração ao Amor misericordioso que tinha aprendido na sua juventude. No Coração amabilíssimo de Jesus, alimentava-se a fonte da sua paternidade no Opus Dei, e se estendia às suas filhas e filhos de todos os tempos; e no Santo Sacrifício enchia-se dos desejos que Cristo tinha de redimir toda a humanidade. Estas considerações nos ajudarão também a estar seguros e otimistas nos momentos duros que podem surgir na história do mundo ou na nossa existência pessoal. Deus é o mesmo de sempre: onipotente, sapientíssimo, misericordioso, e, em todo o momento, sabe tirar, do mal, o bem; das derrotas, grandes vitórias para os que confiam nEle.

8. Nos anos 70, quando uma grave crise de fé e de disciplina causava estragos nas almas, São Josemaria recebeu luzes novas do Céu, que confirmaram a sua confiança inquebrantável no constante auxílio divino. Em 23 de agosto de 1971, depois de ter celebrado a Santa Missa, o Senhor gravou a fogo no seu coração umas palavras que procedem, com uma leve variante, da epístola aos Hebreus: adeámus cum fidúcia ad thronum grátiæ, ut misericórdiam consequámur (Heb 4, 16). Comunicou-o imediatamente aos que estávamos com ele naqueles momentos. Poucas semanas depois voltou a referir-se a elas na intimidade de uma tertúlia familiar com os seus filhos de Roma:

Vou dizer-vos algo que Deus nosso Senhor quer que saibais. Os filhos de Deus no Opus Dei adeámus cum fidúcia– devemos ir com muita fé – ad thronum glóriæ, ao trono da glória, a Virgem Santíssima, Mãe de Deus e Mãe nossa, a quem tantas vezes invocamos como Sedes Sapiéntiæ, ut misericórdiam consequámur, para alcançarmos misericórdia (...).

Vamos, pois, através do Coração Dulcíssimo de Maria, ao Coração Sacratíssimo e Misericordioso de Jesus, para Lhe pedir que, pela sua misericórdia, manifeste o seu poder na Igreja e nos encha de fortaleza para continuar avançando no nosso caminho, atraindo muitas almas para Ele[17].

Essa segurança impelia-o a procurar sem descanso na Palavra de Deus os textos mais adequados sobre essa complacência e proteção do Senhor, para meditar sobre eles na sua oração pessoal. Assim, um ano depois, voltou a referir-se a uma descoberta que injetou muito otimismo e confiança na sua alma, ajudando-o a superar a grande pena que, por seu amor à Igreja, lhe causava uma extrema dor.

Ultimamente – dizia – estou meditando muito alguns textos da Sagrada Escritura que falam da misericórdia divina. Sei muito bem que os especialistas em Sagrada Escritura dão vários sentidos a esta palavra, e consideram misericórdia não só o que esta palavra significa na linguagem vulgar: compaixão, piedade, mas também uma espécie de lealdade de Deus para com as suas criaturas.

Reparai como isso é bonito! Deus nosso Senhor, tem tanta compaixão pelos homens – porque a sua misericórdia também significa compaixão –, que a sua lealdade o leva a ser misericordioso com cada um de nós, a olhar para nós com amor de pai e de mãe[18].

Ia aprofundando sempre mais nas palavras da Escritura Santa, que já meditava na sua juventude: Deus pôs a sua complacência nos filhos dos homens (cf. Pr 8,31), e por isso caminhou com segurança, dando início ao Opus Dei. Quando não tinha nenhum meio, essa “complacência” de Deus animava a sua segurança em que a Obra iria para frente.

Justiça e misericórdia

9. Entre as parábolas com que o Mestre explicava aos discípulos as características do reino dos céus, são Lucas – chamado o escrivão da mansidão de Cristo por um dos grandes poetas cristãos[19]– recolhe três ensinamentos explicitamente dedicados a ressaltar essa procura divina dos homens: a da ovelha perdida, a da dracma perdida e a do filho pródigo. Nas três, «Jesus revela a natureza de Deus como a de um Pai que nunca se dá por vencido enquanto não tiver dissolvido o pecado e superado a recusa com a compaixão e a misericórdia»[20].

Esse Coração amabilíssimo manifesta-se especialmente na parábola do pai que espera pacientemente, dia após dia, o regresso do filho mal agradecido, para perdoá-lo quando chegar. São João Paulo II comentou-o na encíclica Dives in misericórdia, salientando que este ensinamento aplica-se a todos e cada um dos seres humanos. «Indiretamente a parábola estende-se a todas as rupturas da aliança de amor: a toda a perda da graça, a todo o pecado (...). A herança que o jovem tinha recebido do pai era constituída por certa quantidade de bens materiais. Mas, mais importante do que esses bens era a sua dignidade de filho na casa paterna (...), a consciência da condição de filho malbaratada»[21].

Nosso Padre também comentou esta parábola: a misericórdia que Deus manifesta deve impelir-nos a voltar sempre. Meus filhos, é melhor não ir embora, não abandoná-lo; mas se alguma vez por fraqueza humana O deixais, regressai correndo. Ele nos recebe sempre, como o pai do filho pródigo, com mais intensidade de amor[22].

Apesar de que no texto original – anota são João Paulo II – não se utiliza a palavra "justiça" nem "misericórdia", «contudo, a relação da justiça com o amor que se manifesta como misericórdia aparece profundamente vincada no conteúdo desta parábola evangélica. Torna-se claro que o amor se transforma em misericórdia quando é preciso ir além da norma exata da justiça: norma precisa mas, por vezes, demasiado rigorosa»[23].

São Josemaria descobriu essa união prática da justiça com o amor no comportamento das mães[24]. A justiça de Deus tinha para ele entranhas de misericórdia[25]. Não podemos nos dirigir ao Senhor nos apoiando em direitos, mas devemos pedir que tenha misericórdia de nós, como se reza em um dos salmos: Miserére mei, Deus, secúndum magnam misericórdiam tuam(Sal50, 2). Senhor, tem compaixão de mim segundo a tua grande misericórdia. Não nos dirigimos a Ele exigindo por motivos de justiça.[26]

10. Não faltam pessoas que opõem a justiça à misericórdia. O Papa, ao convocar o jubileu, nos alerta sobre este erro: «Não são dois aspectos em contraste entre si, mas duas dimensões de uma única realidade que se desenvolve gradualmente até atingir o seu clímax na plenitude do amor (...).

» Diante da visão de uma justiça como mera observância da lei, que julga dividindo as pessoas em justos e pecadores, Jesus procura mostrar o grande dom da misericórdia que busca os pecadores para lhes oferecer o perdão e a salvação. Compreende-se que Jesus, por causa desta sua visão tão libertadora e fonte de renovação, tenha sido rejeitado pelos fariseus e os doutores da lei»[27].

Recorrer à misericórdia divina

11. Como fruto de uma graça especial de Deus – já o recordei antes –, o nosso Fundador aprofundou nas luzes maravilhosas da clemencia divina descritos na sagrada Escritura. Comentando, por exemplo, o milagre da ressurreição do filho da viúva de Naim, considerava como Nosso Senhor amou-nos por razões santas, que talvez a nós não nos moveriam. São Lucas diz: misericórdia motus super eam(Lc7, 13), movido de compaixão, por misericórdia para com aquela mulher, quando havia outros motivos humanamente razoáveis: era pobre, viúva, e só tinha aquele filho[28].

Uma multidão numerosa compunha o desfile daquele enterro, e outros acompanhavam Jesus; mas só Ele entra na pena, na dor daquela mãe, e vai ao seu encontro. Não é admirável que o Mestre se deixe comover pelos impulsos misericordiosos do seu coração, sem esperar que nós lhe manifestemos as nossas necessidades? Esse comportamento divino e humano do Redentor deve ser um forte incentivo para apelarmos para ele em todo o momento. Vós e eu – destacava o nosso Padre – também devemos recorrer à misericórdia do Senhor. Diante de Deus não temos nenhum direito. Pelo menos eu, pessoalmente, vejo com a maior clareza que não posso dizer: Senhor, exijo-te isto; apesar de que sou e me sinto filho de Deus. Vou a Ele com gemidos de contrição, pedindo misericórdia[29], apelando para a sua piedade.

Nos seus últimos anos na terra, ao sentir o impulso de recorrer com mais confiança e assiduidade ao perdão de Deus, São Josemaria completou a jaculatória com a qual tinha se dirigido em 1952 ao Sagrado Coração de Jesus, para lhe consagrar a Obra, as suas atividades apostólicas e as necessidades da Igreja e da humanidade: Cor Iesu Sacratíssimum et Miséricors, dona nobis pacem! Desde então, o nosso Padre recorreu mais à proteção do Céu em favor do mundo, da Igreja, das almas, de dia e de noite, no meio de suas tarefas cotidianas.

Aqui aparece o fruto principal que imploramos a Deus no ano dedicado á sua misericórdia: que a sociedade volte a andar pelos caminhos dos mandamentos, que as almas se deixem inflamar pelo fogo do amor de Deus, que em todos os cantos da Igreja haja um ressurgir da doutrina clara e da piedade autêntica. Eu faço plenamente minhas as palavras do Papa: «Quanto desejo que os anos futuros sejam permeados de misericórdia para ir [cada um de nós] ao encontro de todas as pessoas levando-lhes a bondade e a ternura de Deus! A todos, crentes e afastados, possa chegar o bálsamo da misericórdia como sinal do Reino de Deus já presente no meio de nós»[30].

Ser misericordiosos como o Pai celestial

12. A Igreja nutre um desejo constante de oferecer o amor de Deus às criaturas, sem excluir nenhuma. No entanto, como observa o Papa Francisco, «talvez, demasiado tempo, nos tenhamos esquecido de apontar e viver o caminho da misericórdia. Por um lado, a tentação de pretender sempre e só a justiça fez esquecer que esta é apenas o primeiro passo, necessário e indispensável, mas a Igreja precisa de ir mais além a fim de alcançar uma meta mais alta e significativa»[31].

Não basta pedir perdão a Deus pelos nossos pecados e pelos de todos os homens. A esta petição, insubstituível, devemos unir a prática concreta de misericórdia com os outros. Porque se alguém disser: Amo a Deus, mas odeia seu irmão, é mentiroso. Porque aquele que não ama seu irmão, a quem vê, é incapaz de amar a Deus, a quem não vê. Temos de Deus este mandamento: o que amar a Deus, ame também a seu irmão (1 Jo 4, 20-21).

As obras de misericórdia, repetidamente ensinadas e praticadas na Igreja, são um meio adequado para manifestar as boas intenções com fatos concretos. «São as ações caridosas pelas quais vamos em ajuda do nosso próximo, nas suas necessidades corporais e espirituais»[32], explica o Catecismo da Igreja Católica. E exercê-las com assiduidade é uma das recomendações do Papa para este ano. « A pregação de Jesus apresenta-nos estas obras de misericórdia, para que possamos perceber se vivemos ou não como seus discípulos»[33].

Jesus descreveu-o claramente no Evangelho, estabelecendo um critério indubitável: o que quereis que os homens vos façam, fazei-o também a eles. Se amais os que vos amam, que recompensa mereceis? Também os pecadores amam aqueles que os amam. E se fazeis bem aos que vos fazem bem, que recompensa mereceis? Pois o mesmo fazem também os pecadores. Se emprestais àqueles de quem esperais receber, que recompensa mereceis? Também os pecadores emprestam aos pecadores, para receberem outro tanto.

Pelo contrário, amai os vossos inimigos, fazei bem e emprestai, sem daí esperar nada. E grande será a vossa recompensa e sereis filhos do Altíssimo, porque Ele é bom para com os ingratos e maus. Sede misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso (Lc 6, 31-36).

As obras de misericórdia corporais

13. A doutrina católica sintetizou assim as obras de misericórdia corporais: «Dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, dar moradia aos desabrigados, vestir os maltrapilhos, visitar os doentes e prisioneiros, sepultar os mortos. Dentre estes gestos de misericórdia, a esmola dada aos pobres é um dos principais testemunhos da caridade fraterna. É também uma prática de justiça que agrada a Deus»[34]. Todas elas, em última análise, colocam em prática o mandátum novum (Jo 13, 34), o mandamento novo da caridade que Jesus Cristo nos entregou. Seguindo estas recomendações do Salvador, a Igreja sempre manifestou um amor de predileção pelos pobres, os doentes, os desamparados, as pessoas que não tem lar... E teve presentes aquelas palavras do Senhor no Juízo final: em verdade eu vos declaro: todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes (Mt 25, 40). E com a parábola do bom samaritano, Jesus evidenciou que a nossa caridade deve estender-se a toda pessoa humana.

14. No Opus Dei, parte viva da Igreja, insiste-se em não abandonar nunca as obras de misericórdia corporais. O nosso Fundador já as realizava nos primeiros anos da Obra, com visitas aos doentes nos hospitais em Madri, com a sua dedicação generosa aos pobres miseráveis e aos que, envergonhados, escondiam as suas privações sob o véu de uma vida aparentemente normal. E ensinou as pessoas que se aproximavam do seu apostolado a se comportarem do mesmo modo. Confiou essas atividades a Nossa Senhora, e assim nasceram no Opus Dei as visitas aos pobres da Virgem, que continuam a ser feitas em todos os lugares onde há fiéis da Prelazia. No sábado, dia de Santa Maria, os jovens são convidados a oferecer esmolas que se destinam a ajudar a quem está em necessidade. Ao ajudar os pobres, honra-se a Nossa Senhora e exercita-se a caridade[35]. São um meio de formação, porque incentiva a generosidade dos jovens e, assim, cresce neles o amor.

Aprendendo sempre da forma como Deus cuida das criaturas, São Josemaria sentia muita dor ao ver o espetáculo dosbens da terra, repartidos entre poucos; os bens da cultura, encerrados em cenáculos. E, lá fora, fome de pão e de sabedoria; vidas humanas – que são santas, porque vêm de Deus – tratadas como simples coisas, como números de uma estatística. Compreendo e partilho dessa impaciência, levantando os olhos para Cristo, que continua a convidar-nos a pôr em prática o mandamento novo do amor (...).

Temos que reconhecer Cristo que nos sai ao encontro nos nossos irmãos, os homens. Nenhuma vida humana é uma vida isolada, mas entrelaça-se com as outras vidas. Nenhuma pessoa é um verso solto: fazemos todos parte de um mesmo poema divino, que Deus escreve com o concurso da nossa liberdade[36].

Quantos jovens – rapazes e moças – e também pessoas adultas, ao descobrir e contemplar as misérias mais peremptórias do próximo, descobriram, nesses irmãos ou irmãs, a Cristo pobre, e melhoraram as suas disposições de serviço aos outros! O Senhor, infinitamente mais generoso, derramou graças especiais nas suas almas: só Ele conhece as conversões profundas que muitos experimentaram, decisões de dedicação total ao serviço de Deus e da Igreja, nascidas no calor dessas visitas aos necessitados, aos idosos, aos doentes, aos presos...

15. Com o desenvolvimento da Obra de Deus, através da espontaneidade apostólica dos fiéis e Cooperadores do Opus Dei, as atividades de serviço material ao próximo foram adquirindo novas formas, de acordo com as situações da época e as circunstâncias dos diferentes lugares. Assim nasceram escolas de formação profissional de pessoas de ambientes muito diferentes, no campo e nas periferias das grandes cidades; clínicas médicas e hospitais em bairros populares, destinados a pessoas sem recursos; multiplicaram-se atividades assistenciais– como as ONGs para ajudar os países menos desenvolvidos, ou bancos de alimentos em países considerados avançados, para citar apenas alguns exemplos –, que em tempos de crise econômica, como o atual, permitem que muitos homens e mulheres possam satisfazer as suas necessidades materiais e às das suas famílias.

Agradeço a Deus pela extensão das iniciativas solidárias promovidas pelos fiéis e Cooperadores da Prelazia. Mas não podemos nos conformar com isso: com a graça de Deus, contando com a ajuda de muitas pessoas de bom coração, cristãos e não cristãos, aspiramos a ampliar mais ainda o raio de ação destes projetos.

16. Deixai-me insistir, mais uma vez, em que nos esmeremos no atendimento dos doentes: nas suas casas, nos hospitais, e em qualquer lugar onde alguém sofrer no corpo ou no espírito; e, naturalmente, nos Centros da Obra e nos lares dos Adscritos e Supernumerários. Em cada paciente está presente para nós, de uma maneira especial, Jesus Cristo.

Além de facilitar a assistência médica possível, devemos ter um grande cuidado na sua assistência espiritual: a recepção dos sacramentos da Reconciliação e da Eucaristia por parte dos sacerdotes; o exemplo e os conselhos dos leigos para que – na medida em que for conveniente – os doentes mantenham um espírito de oração, que é contemplação e ação de graças, louvor e súplica: por exemplo, o terço e outras expressões de piedade cristã, que enchem de alegria, até mesmo na dor. Elas e eles agradecem descobrir que, ao oferecerem a Deus a doença, os sofrimentos e as limitações, completam na sua carne o que falta às tribulações de Cristo, por seu corpo que é a Igreja (Cl 1, 24), como são Paulo escreveu, indicando o valor salvífico do sofrimento[37].

Se chegar para eles um momento de especial gravidade, ponhamos especial esmero ao prepará-los para receber a Unção dos enfermos com o máximo fruto possível: a Igreja ensina que este sacramento da misericórdia possui a virtude de perdoar os pecados e, se convier para a alma, também ajuda o corpo a melhorar e inclusive a atingir a cura[38]. A tradição plurissecular da Igreja demonstra que este sacramento confere uma grande paz e serenidade aos que o recebem com boa disposição, sem esperar os últimos momentos da sua vida. Que boa catequese se pode fazer com as famílias, que muitas vezes – por ignorância ou por um falso medo de inquietar aos doentes – não procuram o sacerdote ou pedem a sua ajuda só quando as pessoas queridas já entraram em estado de inconsciência!

17. Com o passar do tempo, algumas obras de misericórdia corporais sofreram mudanças na sua formulação ou aplicação. Agora, geralmente, formulamos a atenção aos peregrinos como “dar moradia aos desabrigados” No presente momento, inclui a ajuda aos imigrantes que deixam o seu país em busca de trabalho, melhores condições de vida, etc. Nenhum discípulo de Mestre pode deixar de ocupar-se com estes homens ou mulheres; às vezes, famílias inteiras. Penso de maneira especial nos cristãos perseguidos por razões religiosas, e cujo exílio deve reavivar o nosso sentido da Comunhão dos santos.

O Papa Francisco lançou um apelo urgente às autoridades, e a todos os homens de boa vontade, para que procurem remédios específicos para esta necessidade. Na exortação apostólica Evangélii gáudium já nos pedia: «é indispensável prestar atenção e debruçar-nos sobre as novas formas de pobreza e fragilidade, nas quais somos chamados a reconhecer Cristo sofredor: os sem abrigo, os toxicodependentes, os refugiados, os povos indígenas, os idosos cada vez mais sós e abandonados, etc. Os migrantes representam um desafio especial para mim, por ser Pastor duma Igreja sem fronteiras que se sente mãe de todos»[39]. Ultimamente, como preparação imediata para o Ano da Misericórdia, tem intensificado este apelo urgente[40].

Façamos eco a estas exortações do Santo Padre, e animemos parentes, amigos e conhecidos a tê-las muito presentes, de acordo com as circunstâncias e possibilidades de cada um. Além de rezar, que vejam como podem intervir pessoalmente: desde acordar a consciência da opinião publica diante desta emergência, até facilitar um alojamento, um lugar de trabalho, uma ajuda econômica, etc. Agindo sempre com responsabilidade pessoal, um bom modo de secundar esta intenção consiste também em sentir-se parte das iniciativas das dioceses e das paroquias, as que o Romano Pontífice encarregou de modo especial esta tarefa. Sei que muitos de vós, assim como Cooperadores e amigos, já intervêm em ações concretas para servir os migrantes. Agradeço-vos em nome do Senhor, porque o bem que fazemos a estes irmãos e irmãs nossos, fazemo-lo ao próprio Jesus Cristo.

As obras de misericórdia espirituais

18. São Josemaria confiava-nos: atrevo-me a dizer que, quando as circunstâncias sociais parecem ter erradicado de um ambiente a miséria, a pobreza ou a dor, precisamente então torna-se mais urgente esta agudeza da caridade cristã, que sabe adivinhar onde há necessidade de consolo, no meio do aparente bem-estar geral[41].

Pensemos que os gestos de amor ao próximo não se limitam a uma contribuição material, por mais necessária que seja. O Romano Pontífice lamenta que «a pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual»[42]. A Igreja, ao longo da sua história, se caracterizou pela promoção das obras de misericórdia espirituais, sempre tão reais e atuais: «Aconselhar os indecisos, ensinar os ignorantes, admoestar os pecadores, consolar os aflitos, perdoar as ofensas, suportar com paciência as pessoas molestas, rezar a Deus pelos vivos e defuntos»[43].

Como esta caridade espiritual é delicada! E como é imprescindível nestes momentos, quando tantos e tantas sofrem a solidão, a incompreensão, as perseguições, as difamações e calúnias; ou sofrem no meio das dúvidas, sem saber o caminho que leva ao Céu! Porque a generalização dos remédios sociais contra as pragas do sofrimento ou da indigência – que tornam possível alcançar hoje resultados humanitários que em outros tempos nem se sonhavam – , não poderá suplantar nunca, porque estes remédios sociais estão em outro nível, a ternura eficaz – humana e sobrenatural – deste contato imediato, pessoal, com o próximo: com aquele pobre de um bairro vizinho, com aquele outro doente que vive a sua dor num hospital imenso, ou com aquela outra pessoa – rica talvez – que necessita de algum tempo de afetuosa conversa, de uma amizade cristã para a sua solidão, de um amparo espiritual que ponha remédio às suas dúvidas e aos seus ceticismos[44].

Recordemos o acontecimento da mendiga a que São Josemaria só pôde oferecer a sua dedicação espiritual e o seu sacerdotal afeto humano. Como maneira de corresponder, a mulher decidiu oferecer a sua vida pela Obra. Quando a reencontrou mais tarde num hospital e soube do oferecimento dirigido ao Senhor por aquela mendiga, São Josemaria a considerou como a primeira vocação dentre as suas futuras filhas.

19. Detenho-me apenas em algumas das várias ações de solidariedade ou fraternidade cristã: ensinar ao que não sabe, dar conselho a quem o necessita, perdoar as ofensas. São manifestações de uma caridade dedicada que devemos ter com todos, e especialmente com os que estão mais perto de nós: os membros da nossa família, os amigos e colegas de trabalho, os conhecidos...

Ensine aqueles que não conhecem as verdades da nossa fé é uma manifestação de misericórdia fundamental. O nosso Fundador o resumia em poucas palavras: dar doutrina é a nossa grande missão. Enfatizou muitas vezes que o grande inimigo de Deus e das almas é a ignorância religiosa, e afirmou que o trabalho do Opus Dei é uma grande catequese, é colocar ao alcance de todos a mensagem de salvação da Igreja e ensinar a praticá-la. Convence-te: o teu apostolado consiste em difundir bondade, luz, entusiasmo, generosidade, espírito de sacrifício, constância no trabalho, profundidade no estudo, amplitude na entrega, atualização, obediência absoluta e alegre à Igreja, caridade perfeita...[45]. Esse plano exige esforços generosos para oferecer às pessoas com que nos relacionamos a formação doutrinal, espiritual e apostólica. Como nos alegramos ao ver que a verdade do Evangelho ilumina as diversas áreas do nosso trabalho: profissional, social, cultural!

Procuremos, neste Ano da misericórdia, aumentar o empenho para que muitas almas se aproximem do calor da Igreja, Esposa de Cristo e Mãe nossa. Isso será possível se, com a ajuda de Deus, cada uma e cada um se esforça pessoalmente para aproximar mais amigos, colegas e conhecidos dos meios de formação.

20. São variadíssimas as formas de dar bom conselho a quem dele necessita. A primeira é o testemunho da nossa conduta. A passagem de Cristo pela nossa terra foi assim, como São Josemaria nos repetia com insistência. O nosso Padre gostava muito de considerar esse exemplo com as palavras que começam os Atos dos Apóstolos: Jesus começou a fazer e a ensinar (At 1, 1). Depois do testemunho da própria conduta, surge o momento de expor a palavra oportuna, cheia de caridade e de carinho que, sem ferir, é pronunciada no ouvido dos nossos amigos ou conhecidos: o apostolado de amizade e confidência, em que o nosso Padre insistiu tanto.

Como é fecunda a coerência entre o que se faz e o que se afirma! Às vezes adotará a forma de correção fraterna, como ensina o Evangelho (cf. Mt 18,15-17.): uma obra de misericórdia nobre, corajosa e fecunda, nascida de caridade, do interesse pelo amigo ou pela amiga.

«Hoje é-se muito sensível – dizia Bento XVI a este propósito– ao tema do cuidado e do amor que visa o bem físico e material dos outros, mas quase não se fala da responsabilidade espiritual pelos irmãos. Na Igreja dos primeiros tempos não era assim, como não o é nas comunidades verdadeiramente maduras na fé, nas quais se tem a peito não só a saúde corporal do irmão, mas também a da sua alma tendo em vista o seu destino derradeiro (...). É importante recuperar esta dimensão do amor cristão»[46]. E acrescentava: «Não devemos ficar calados diante do mal. Penso aqui na atitude daqueles cristãos que preferem, por respeito humano ou mera comodidade, adequar-se à mentalidade comum em vez de alertar os próprios irmãos contra modos de pensar e agir que contradizem a verdade e não seguem o caminho do bem»[47].

Vamos mostrar-nos gratos a São Josemaria, que reprisou a eficácia dessa prática evangélica, como uma forma excelente, boa e habitual, de ajudar ao próximo; que nasce da caridade e deve ser exercida com verdadeira humildade e prudência sobrenatural.

Porque «a advertência cristã nunca há-de ser animada por espírito de condenação ou censura; é sempre movida pelo amor e a misericórdia e brota duma verdadeira solicitude pelo bem do irmão. Diz o apóstolo Paulo: “se alguém for surpreendido numa falta, vós, que sois animados pelo Espírito, admoestai-o em espírito de mansidão. E tem cuidado de ti mesmo, para que não caias também em tentação! ” (Gl 6, 1).

»Neste nosso mundo impregnado de individualismo, é necessário redescobrir a importância da correção fraterna, para caminharmos juntos rumo a santidade»[48].

21. Perdoar as ofensas define outra forma maravilhosa de exercitar a caridade. Perdoai, e sereis perdoados; dai, e dar-se-vos-á. Colocar-vos-ão no regaço medida boa, cheia, recalcada e transbordante, porque, com a mesma medida com que medirdes, sereis medidos vós também. (Lc 6, 37-38). Meditemos na parábola do homem que não quis perdoar ao seu companheiro uma dívida pequena, depois de que o seu senhor lhe tinha perdoado uma soma enorme. E qual foi a resposta do senhor? Servo mau, eu te perdoei toda a dívida porque me suplicaste. Não devias também tu compadecer-te de teu companheiro de serviço, como eu tive piedade de ti? E o senhor, encolerizado, entregou-o aos algozes, até que pagasse toda a sua dívida. Assim vos tratará meu Pai celeste, se cada um de vós não perdoar a seu irmão, de todo seu coração (Mt 18, 32-35).

Perdoar os agravos significa um sinal claro de que somos e nos consideramos filhos de Deus. Longe da nossa conduta, portanto, a lembrança das ofensas que nos tenham feito, das humilhações que tenhamos padecido – por muito injustas, descorteses e rudes que tenham sido –, porque é impróprio de um filho de Deus ter preparado um registro para apresentar uma lista de agravos. Não podemos esquecer o exemplo de Cristo[49]. São Lucas, ao relatar a Paixão do Senhor, escreve que chegados que foram ao lugar chamado Calvário, ali o crucificaram, como também os ladrões, um à direita e outro à esquerda. E Jesus dizia: Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem (Lc 23, 33-34).

Obviamente, talvez não seja fácil comportar-se dessa maneira; mas a graça de Deus torna o caminho viável, como mostra o comportamento de muitos cristãos que, desde os primeiros momentos da história da Igreja, e agora também, foram capazes não só de ser indulgentes, mas de amar sinceramente os seus perseguidores. Nesta linha, São Josemaria tomou a decisão reta e permanente de perdoar sempre e em todos os momentos, que confirmou com o exemplo e a palavra.

Não odiar o inimigo, não retribuir o mal com o mal, renunciar à vingança, perdoar sem rancor, eram coisas que então – e ainda hoje, não nos enganemos – se consideravam como uma conduta insólita, demasiado heroica, fora dos padrões normais. Até aqui chega a mesquinhez das criaturas. Jesus Cristo, que veio salvar todos os homens e deseja associar os cristãos à sua obra redentora, quis ensinar aos seus discípulos – a ti e a mim – uma caridade grande, sincera, mais nobre e valiosa: devemos amar-nos mutuamente como Ele ama a cada um de nós. Só desta maneira, imitando – dentro da nossa rudeza pessoal – os modos divinos, conseguiremos abrir o nosso coração a todos os homens, amar de um modo mais alto, inteiramente novo[50].

Seremos julgados de acordo com as nossas obras de misericórdia: «se demos de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede; se acolhemos o estrangeiro e vestimos quem está nu; se reservamos tempo para visitar quem está doente e preso (cf. Mt 25, 31-45). De igual modo ser-nos-á perguntado se ajudamos a tirar da dúvida, que faz cair no medo e muitas vezes é fonte de solidão; se fomos capazes de vencer a ignorância em que vivem milhões de pessoas, sobretudo as crianças desprovidas da ajuda necessária para se resgatarem da pobreza; se nos detivemos junto de quem está sozinho e aflito; se perdoamos a quem nos ofende e rejeitamos todas as formas de ressentimento e ódio, que levam à violência; se tivemos paciência, a exemplo de Deus que é tão paciente conosco; enfim se, na oração, confiamos ao Senhor os nossos irmãos e irmãs. Em cada um destes « mais pequeninos », está presente o próprio Cristo. A sua carne torna-se de novo visível como corpo martirizado, chagado, flagelado, desnutrido, em fuga ... a fim de ser reconhecido, tocado e assistido cuidadosamente por nós. Não esqueçamos as palavras de São João da Cruz: “Ao entardecer desta vida, examinar-nos-ão no amor”»[51].

Apostolado da Confissão

22. Outra obra de misericórdia espiritual, especialmente importante, consiste em ajudar as pessoas a recuperar a amizade com Deus perdida pelo pecado. Como insistiram São Josemaria, e também o Bem-aventurado Álvaro, no apostolado da confissão! Também eu tenho falado muitas vezes sobre esse ponto, porque não há possibilidade de alguém progredir no conhecimento e no amor de Jesus Cristo sem cuidar da limpeza da sua alma, sem o recurso frequente ao sacramento da Penitência.

O Papa fala muito deste sacramento. Na bula de convocação do jubileu, anota: «ponhamos novamente no centro o sacramento da Reconciliação, porque permite tocar sensivelmente a grandeza da misericórdia. Será, para cada penitente, fonte de verdadeira paz interior»[52].

Meditemos também o conselho que o Fundador do Opus Dei – era algo que lhe pedia a alma– dava aos seus filos sacerdotes, aplicável a todos os presbíteros: a paixão dominantedos sacerdotes do Opus Dei (...) é dar doutrina, dirigir almas: pregar e confessar. Nisto tendes que gastar-vos, sem medo de ficar esgotados, sem preocupar-vos pelas contradições: qui séminant in lácrimis, in exsultatióne metent(Sl125, 5); os que semeiam com lágrimas, colhem com alegria. A missão dos leigos, dos meus filhos e das minhas filhas, é encher de trabalho – e por isso, de alegria – os seus irmãos sacerdotes, aproximando muitas pessoas do seu ministério[53].

23. Os confessores já representam por si mesmos «verdadeiro sinal da misericórdia do Pai», escreve o Papa. «Ser confessor não se improvisa. Tornamo-nos tal quando começamos, nós mesmos, por nos fazer penitentes em busca do perdão. Nunca esqueçamos que ser confessor significa participar da mesma missão de Jesus e ser sinal concreto da continuidade de um amor divino que perdoa e salva (...).

»Nenhum de nós é senhor do sacramento, mas apenas servo fiel do perdão de Deus. Cada confessor deverá acolher os fiéis como o pai na parábola do filho pródigo: um pai que corre ao encontro do filho, apesar de lhe ter dissipado os bens. Os confessores são chamados a estreitar a si aquele filho arrependido que volta a casa e a exprimir a alegria por tê-lo reencontrado. Não nos cansemos de ir também ao encontro do outro filho, que ficou fora incapaz de se alegrar, para lhe explicar que o seu juízo severo é injusto e sem sentido diante da misericórdia do Pai que não tem limites»[54].

Filhas e filhos meus, peçamos ao Senhor que faça de nós instrumentos fiéis da sua misericórdia: os sacerdotes, dedicando muitas horas, todas as que puderem, a perdoar em nome de Deus; e os leigos, com o desejo constante de preparar as almas dos seus amigos e conhecidos – mediante uma caridade sincera e desinteressada – para ajudá-los a obter muito fruto do sacramento da alegria e da paz.

24. Não desejo prolongar-me mais. Recomendo que leiais e mediteis a fundo a bula Misericórdiæ vultus, e tireis as vossas próprias conclusões. Ali também se fala de peregrinar a algum santuário para receber o dom da indulgencia, outorgado pela Igreja, e assim favorecer com abundância, nos próximos meses, a devoção terna e filial á nossa Mãe a Virgem Santíssima. «A doçura do seu olhar nos acompanhe neste Ano Santo, para podermos todos nós redescobrir a alegria da ternura de Deus. Ninguém, como Maria, conheceu a profundidade do mistério de Deus feito homem. Na sua vida, tudo foi plasmado pela presença da misericórdia feita carne. A Mãe do Crucificado Ressuscitado entrou no santuário da misericórdia divina, porque participou intimamente no mistério do seu amor»[55].

Com todo carinho, vos abençoa

Vosso padre

+ Javier

Roma, 4 de novembro de 2015.


[1] Concílio Ecumênico Vaticano II, Const past. Gaudium et spes, n. 40.

[2] Cfr. Papa Francisco, Litt. enc. Laudato Si', 24-V-2015, n. 77.

[3] Preces da Obra, Oração.

[4] Papa Francisco, Bula Misericordiæ vultus, 11-IV-2015, n. 2.

[5] São João Paulo II, Litt. enc. Dives in misericordia, 30-XI-1980, n. 1.

[6] Papa Francisco, Bula Misericordiæ vultus, 11-IV-2015, n. 5.

[7] São Josemaria, Carta24-III-1930, n. 1.

[8] Papa Francisco, Bula Misericordiæ vultus, 11-IV-2015, n. 7.

[9] São João Paulo II, Litt. enc. Dives in misericordia, 30-XI-1980, n. 8.

[10] Bem-aventurado Paulo VI, Discurso na audiência geral, 14-IV-1976.

[11] São Josemaria, Carta25-I-1961, n. 1.

[12] São Josemaria, Anotações de uma meditação, 11-IV-1952.

[13] Ibid.

[14] Papa Francisco, Exhort. ap. Evangelii gaudium, 24-XI-2013, n. 279.

[15] São Josemaria, Carta25-I-1961, n. 3.

[16] São Josemaria, Anotações de uma meditação, 4-VI-1937.

[17] São Josemaria, Anotações de uma reunião familiar, 9-IX-1971.

[18] São Josemaria, Anotações de uma reunião familiar, 14-VI-1972.

[19] Cfr. Dante Alighieri, Monarchia, 1.

[20] Papa Francisco, Bula Misericordiæ vultus, 11-IV-2015, n. 9.

[21] São João Paulo II, Litt. enc. Dives in misericordia, 30-XI-1980, n. 5.

[22] São Josemaria, Anotações de uma reunião familiar, 27-III-1972.

[23] São João Paulo II, Litt. enc. Dives in misericordia, 30-XI-1980, n. 5.

[24] Cfr. San Josemaria, Amigos de Dios, n. 173.

[25] São Josemaria, Caminho, n. 309.

[26] São Josemaria, Anotações de uma reunião familiar, 11-IX-1971.

[27] Papa Francisco, Bula Misericordiæ vultus, 11-IV-2015, n. 20.

[28] São Josemaria, Anotações de uma reunião familiar, 25-IX-1971.

[29] São Josemaria, Anotações de uma reunião familiar, 9-IX-1971.

[30] Papa Francisco, Bula Misericordiæ vultus, 11-IV-2015, n. 5.

[31] Ibid., n. 10.

[32] Catecismo da Igreja Católica, n, 2447.

[33] Papa Francisco, Bula Misericordiæ vultus, 11-IV-2015, n. 15.

[34] Catecismo da Igreja Católica, n. 2447.

[35] San Josemaria, Instrução, 9-I-1935, n. 196.

[36] São Josemaria, É Cristo que passa, n.111.

[37] Cfr. São João Paulo II, Carta ap. Salvifici doloris, 11-II-1984.

[38] Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 1520.

[39] Papa Francisco, Exhort. ap. Evangelii gaudium, 24-XI-2013, n. 210.

[40] Cfr. Papa Francisco, Alocución en el Ángelus, 6-IX-2015.

[41] São Josemaria, Carta24-X-1942, n. 44.

[42] Papa Francisco, Exhort. ap. Evangelii gaudium, 24-XI-2013, n. 200.

[43] Papa Francisco, Bula Misericordiæ vultus, 11-IV-2015, n. 15.

[44] São Josemaria, Carta24-X-1942, n. 44.

[45] São Josemaria, Sulco, n. 927.

[46] Bento XVI, Mensagem para a Quaresma de 2012, 3-XI-2011, n. 1.

[47] Ibid.

[48] Ibid.

[49] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 309.

[50] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 225.

[51] Papa Francisco, Bula Misericordiæ vultus, 11-IV-2015, n. 15. A citação de São João da Cruz é do livro Ditos de luz e amor, 57.

[52] Papa Francisco, Bula Misericordiæ vultus, 11-IV-2015, n. 17.

[53] São Josemaria, Carta8-VIII-1956, n. 35.

[54] Papa Francisco, Bula Misericordiæ vultus, 11-IV-2015, n. 17.

[55] Ibid., n. 24.