Sobre o livro 'Caminho' – As raízes da Alegria

No ponto 268 pode ler-se: "Dá-Lhe graças por tudo, porque tudo é bom". Parece-me ser este o texto fundamental sobre a alegria. Deste graças por tudo chega-se a uma alegria grande, como o Evangelho tem gosto em dizer: os anjos anunciam, no Nascimento de Cristo, uma "grande alegria".

Raízes da alegria

Como o mundo não pode viver sem cristianismo – tendo em conta as consequências históricas da realidade do Verbo feito homem –, em muitas épocas, uma parte desse mundo empenhou-se em denegri-lo: à letra, a pintá-lo de tintas escuras, negras. Os homens de espírito dionisíaco, segundo a terminologia de Nietzsche, acusaram o cristianismo de pregar a morte, a renúncia, a tristeza, o abandono do mundo. E, pelo contrário, quando por algum motivo a história entra numa época de desesperança, o otimismo não cai bem: por que esses cristãos são felizes, por que não duvidam, por que a angústia perpétua não os paralisa? Não será por frivolidade, superficialidade esse confiar num final feliz? Chegamos, assim, à conclusão que, como quase era de esperar, o cristão é estigmatizado de triste e de alegre, de sombrio e de descaradamente luminoso, de derrotista e de triunfalista. O canto sagrado surge complexo, polifônico, rico? “Perdeu-se a austeridade primitiva.” Retoma a sobriedade? “São cantos de morte e não de vida”.

Também a alegria do cristão se exprime em paradoxos

Quando deparamos com ataques deste gênero simultâneos e contrários, pode dizer-se que os que acusam não entenderam o “escândalo” e a “loucura” cristãos. Chesterton escrevia em Tremendas Trivialidades: “O verdadeiro resultado de toda a experiência e o verdadeiro fundamento de toda a religião é este: que as quatro ou cinco coisas as mais essenciais que um homem deveria saber são todas aquilo que as pessoas chamam paradoxos”. Também a alegria do cristão se exprime em paradoxos. Paradóxico é que Cristo aconselhe quando se jejuar, estar alegre, perfumar-se, mostrar-se longe de toda e qualquer tristeza. É óbvio que alguém que jejua e está alegre pode ser taxado facilmente de hipócrita. Mas terá sido o acusador que não entendeu o paradoxo.

Convém dar sempre uma oportunidade a quem ataca. Convém tentar sempre entender o motivo da acusação. Pode pensar-se, por isso, que o homem inteligente aprecia a complexidade, porque quase nada se escreve com uma só cor ou se desenha com ausência de matizes. Alardear com voz estridente que “tudo é simples” não agrada aos temperamentos que temem que o diáfano, o transparente se convertam em véu da superficialidade. Assim, ante a afirmação “o cristão é alegre”, aparecerão gestos de insatisfação: não pode ser tão simples.

E não o é. O fato de o cristianismo ter sido tão atacado de posições diversas e opostas demonstra, pelo menos, que a realidade cristã é difícil de abarcar com um só olhar. Simples não é o mesmo que simplório. Falar de simplicidade não é simplificar: simples é aquilo que não se oculta, mas isso que não se oculta pode ser uma realidade complexa. È precisamente isso que sucede no cristianismo. E na alegria do cristão de forma singular.

O gozo, a alegria, é o resultado de possuir um bem, e precisamente um bem grande que só de graça se pode receber.

A palavra clássica para alegria é gozo, o gaudium dos latinos. Gaudium traduz praticamente sempre, na versão da Vulgata, o xáQtg grego, e este termo grego serve também para designar oferta, esmola e graça. Graça é o que se obtém sem esforço por parte daquele que o recebe, por isso, agradecer é reconhecer essa gratuidade. O gozo, a alegria, é o resultado de possuir um bem, e precisamente um bem grande que só de graça se pode receber. Entre todos estes bens, há um de qualidade superior, o amor. O arquétipo do bem gratuitamente recebido é o amor. Por isso o enamorado, se ama e é amado, se dá e é objeto do dom, está alegre, goza, canta. Por isso também nas crianças a alegria acontece de uma maneira particular: porque a sua vida é receber sempre, ser objeto de amor, especialmente por parte dos pais, mas também de quase todos, que olham com benevolência (volendo bene, como se diz em italiano) as crianças.

Dá-Lhe graças por tudo, porque tudo é bom

Caminho, alimentado nas raízes cristãs, não poderia estar longe deste entramado rico da alegria. No ponto 268 pode ler-se: “Dá-Lhe graças por tudo, porque tudo é bom.” Parece-me ser este o texto fundamental sobre a alegria. Deste graças por tudo chega-se a uma alegria grande, como o Evangelho tem gosto em dizer: os anjos anunciam, no Nascimento de Cristo, uma grande alegria (Lc 2, 10); os discípulos, confortados pela bênção de Cristo, que voltou para o Pai, experimentam uma grande alegria (Lc 24, 50-52).

Por tudo isto, o cristão tem de ser definitivamente alegre. O otimismo do cristão radica em que se lhe abriu um caminho amplo em direção ao Ótimo, e o Ótimo é Deus. Por isso não pode ser cristão um espírito irreversivelmente desesperado. Pensar que tudo está tão mal, que o coração humano está tão corrompido que “nem Deus pode salvá-lo” é pura e simplesmente uma forma da soberba, isto é, da mítica adoração ao próprio eu. Um reflexo dessa soberba dá-se também nas relações humanas: o triste crônico é alguém que não se deixa ajudar, que lhe parece que a sua “complexidade” é tal que nunca ninguém lhe poderá dar solução. E, no lado oposto: nada de mais agradável que o caráter da pessoa que se deixa ajudar, não de um modo servil, mas com toda a simplicidade: “Olha, não sei isto, podes ensinar-me?”.

Por outro lado, houve pensadores como Kierkegaard ou Unamuno, e todos os outros que de uma forma ou outra falaram do “sentimento trágico da vida”, que intuíram mais ou menos obscuramente, que aqui e agora, a alegria do homem nunca pode ser completa. A alegria é consequência da obtenção de um bem; de um bem, para mais, gratuito, outorgado por pura liberalidade. Mas na história, não existe, para ser fruído, nenhum bem eterno (entre as criações dos homens ou os bens da natureza); e o único bem eterno, Deus, não pode ser “visto” nem, por consequência, gozado completamente nesta vida. Estamo-nos aproximando, uma vez mais, do paradoxo. E neste caso o paradoxo foi apontado por Mons. Escrivá com a frase “a alegria tem as suas raízes em forma de Cruz” (1).

Para chegar a entender melhor isto, torna-se necessário juntar algumas ideias que já foram aparecendo. Por exemplo, a relação entre alegria e infância. Não tem nada de estranho, agora, que em Caminho a raiz da alegria esteja nesse saber-se filho de Deus, relacionado com os dois capítulos em que se fala da “infância espiritual”. É possível ler o ponto 659 à luz do ponto 860. “A alegria que deves ter não é essa que poderíamos chamar fisiológica, de animal são, mas uma outra, sobrenatural, que procede de abandonar tudo e te abandonares a ti mesmo nos braços amorosos do nosso Pai-Deus.” “Diante de Deus, que é Eterno, tu és uma criança menor do que, diante de ti, um garotinho de dois anos. E, além de criança, és filho de Deus. – Não o esqueças.”

Em Caminho, a alegria está relacionada com a aceitação da vontade de Deus, mas não com passividade fria.

Em Caminho, a alegria está relacionada com a aceitação da vontade de Deus, mas não com passividade fria. Essa vontade é a de um Pai, e sabemos até que ponto, de certo modo, na medida do que é bom para o filho, o pai mais que mandar sente-se inclinado a comprazer. Na medida do que é bom para o filho: é esta chave. O homem sente-se continuamente inclinado a criar um mundo segundo os seus gostos, o âmbito sombrio do seu egoísmo. Por isso não consegue dar-se conta do verdadeiro estatuto da alegria aqui na terra, esse que em Caminho está plasmado com traços bem claros: “A alegria dos pobrezinhos dos homens, ainda que tenha um motivo sobrenatural, deixa sempre um ressaibo de amargura. – Que julgavas? – Aqui em baixo, a dor é o sal da nossa vida.” (n. 203). E, de outro ponto de vista, a penitência é “alegria, embora trabalhosa” (n. 548). Por isso deve receber-se a tribulação com garbo: “Se recebes a tribulação de ânimo encolhido, perdes a alegria e a paz (…)” (n.696).

Pouco a pouco vai surgindo a relação íntima e inseparável entre a alegria e a Cruz, tendo em conta acima de tudo que nas obras de Mons. Escrivá é patente, com profundidade teológica, a conveniência de reservar o termo Cruz para a única Cruz, a de Cristo. Este tema aparece em muitos textos de Caminho: “Se as coisas correm bem, alegremo-nos, bendizendo a Deus que dá o incremento. – Correm mal? – Alegremo-nos, bendizendo a Deus que nos faz participar da sua doce Cruz.” (n.658). E alcança talvez o ponto mais alto no capítulo A vontade de Deus: “A aceitação rendida da Vontade de Deus traz necessariamente a alegria e a paz: a felicidade na Cruz. - Então se vê que o jugo de Cristo é suave e que o seu fardo não é pesado” (n. 758). Por quê? Porque o primeiro que aceita até ao fundo a Vontade do Pai é Cristo, e essa aceitação leva-o à morte e morte de Cruz. Ele, o Filho, o Verbo. Por isso, o cristão, filho de Deus no Filho de Deus, necessita de passar pela Cruz para se dar conta das raízes da alegria; então ele dá-se conta que o jugo não é jugo, que a carga não é carga, sem deixar de ser carga e jugo. E temos necessariamente de recordar de novo a força do paradoxo.

Como não é possível segurar simultaneamente todos os fios da visão cristã da vida, quando nos referimos anteriormente à conexão filiação divina-Cruz, não se fez referência a outra realidade inseparável: o amor. Só o amor torna possível a aceitação da Cruz. Como Santa Teresa escreve nas Fundações: “Tem esta força o amor, se é perfeito: que esquecemos o nosso contentamento para contentar quem amamos.” É a antiga experiência humana que não tem razão para mudar no que toca ao amor divino. Mons. Escrivá apreciava aquela canção de Juan del Enzina que diz: “mais vale trocar/ prazer por dores/ que estar sem amores”. O amor nunca está tranquilo, porque o coração está sempre vigilante, conforme se lê no Cantar dos Cantares, que Frei Luís de Léon glosou belamente: “O cuidado de amor é tão grande e vigia tanto o que deseja, que a mil passos o sente, entre sonhos o escuta e através dos muros o vê.”

Figura do amor divino

O amor humano é realidade certa e, ao mesmo tempo figura ou analogia do amor divino. Talvez para entender a alegria cristã seja preciso ter em conta a alegria do enamorado, não por causa das dores, mas precisamente nas dores, nas inquietações, na contínua vigilância. Trata-se, pois, de uma alegria apartada da superficialidade, de um contentamento que nada tem a ver com a frivolidade; é uma alegria sentida, um cuidado em que a pessoa se realiza.

Talvez se entenda melhor neste momento a razão porque apresentar o cristianismo como algo de triste é falsear a realidade sobrenatural da fé. “A verdadeira virtude não é triste nem antipática, mas amavelmente alegre.” (657), isto é, com a alegria que procede de amar, porque só é amável aquele que ama. Em outro lugar do livro fala-se do olhar “do olhar amabilíssimo” de Cristo. Por isso entende-se o que se segue: “Caras compridas..., maneiras bruscas..., aspecto ridículo..., ar antipático... Desse jeito esperas animar os outros a seguir Cristo?” (n. 661). Ou noutro lugar: “Não estejas triste. – Tem uma visão mais... “nossa” – mais cristã – das coisas”. (n.664).

Caminho, como todos os grandes livros de espiritualidade que glosaram a realidade cristã, não se enquadra na fácil dicotomia otimismo-pessimismo, nas simplificações do “melhor dos mundos possíveis” (Leibnitz) ou no “pior dos mundos possíveis” (Schopenhauer). Neste mundo existiu e existe, com estranha eficácia, o pecado, a ofensa a Deus que se traduz em usar de modo terrível as criaturas. Mas o pecado não é o fim, nem o definitivo. O fim é a Ressurreição pela Cruz, a suprema dor redentora que abre as portas à alegria, agora como anúncio, depois como posse perfeita. As dores da Cruz são uma vitória, laboriosa vitória que se prolonga pela história, claro-escuro da liberdade humana, que é o próprio claro-escuro da alegria.

Rafael Gómez Pérez, em: Estúdios sobre Camino, 1ª edição, Madrid, Rialp, 1988

(1) Expressão muito corrente na pregação do fundador do Opus Dei; como por exemplo, em Cristo que passa, n. 43.