Santa Maria, o atalho que conduz a Deus

Um “retrato mariano” de São Josemaria, publicado por D. Javier Echevarría. "Por questões de espaço, tenho de me conformar só com esboçar o tema. Confio em que Nossa Senhora e Mons. Escrivá despertem na alma de todos, desejos ardentes de ter uma vida mais mariana..."

Necessariamente, por questões de espaço, tenho de me conformar apenas em esboçar o tema. Confio em que Nossa Senhora, a quem Mons. Escrivá tão apaixonadamente amou, e este sacerdote de Deus, a quem Santa Maria com tanto desvelo cuidou, despertem, na alma de todos, desejos mais ardentes de ter, daqui em diante, uma vida mais mariana.

A eficácia de uma alma fiel

Há dias, lia mais uma vez aquelas palavras do Apóstolo aos moradores de Corinto: ...conheço um homem que crê em Jesus Cristo”[1] e, com grande rapidez, surgiu no meu pensamento a figura do Fundador do Opus Dei. Pareceu-me, além de lógica, uma reação natural que não quis que se atenuasse, e que agradeci ao Senhor.

Lembrei-me então daquele conselho que, para nos ajudar a ir por caminhos de vida interior que levam ao Senhor, nos repetia com tanta frequência porque desejava que conhecêssemos sempre mais intimamente o nosso Deus, porque gostava que os cristãos, os filhos de Deus, aprendessem a participar das cenas do Evangelho, fixando-se detidamente no divino Mestre, por um lado, para assimilar a fundo os seus ensinamentos; e por outro, contemplando as reações dos que eram amigos do Deus feito Homem, ou simples espectadores, para ter intimidade com Ele, com o afeto que provocava prodígios da misericórdia divina.

E também me veio ao pensamento, em um encadeamento de ideias, o interesse tão intenso do Padre, em imaginar como seria o olhar do Senhor, como seria o seu tom de voz, como seria o seu sorriso franco e contagioso, como seriam os traços do seu rosto… Por isso, considerei que, com a boa lógica desse mesmo conselho, um atalho claro para chegar a Deus, revela-se para nós pela conduta deste sacerdote tão amigo do Criador, com tanta intimidade com o Salvador. E atrevo-me a sugerir que meditar com profundidade a sua vida, que só tem um propósito que é Deus, vai nos aproximar a passos de gigante da vida da graça.

Não pretendo fazer afirmações gerais, como se, pela minha condição de filho seu, tivesse de deixar escrito que o Padre soube terminar bem a sua carreira. Ele não necessita de qualquer espécie de panegíricos, porque já goza da visão beatífica e era esse tesouro o que ele procurava. Nem nós, que somos seus filhos, apoiados em sons que nada dizem, poderíamos continuar na terra a Obra que o nosso fundador começou: a Santíssima Trindade e a humanidade inteira esperam, como sucedeu no caminho do Padre, afirmações que se tornaram realidade nas circunstâncias quotidianas, nas que são próprias do homem corrente, da mulher do nosso tempo. Iria se enganar quem visse nestas considerações uma postura altiva, porque o Céu e a terra esperam de todos uma conduta coerente com a sua missão pessoal.

De pouco serviria também que me limitasse a dizer que o Padre percorreu com passo divino a sua peregrinação terrena. Se aqui na Terra ele não foi atrás de glórias humanas, sobram-lhe – e não estou me repetindo – lá no Céu elogios que já nada acrescentam à sua proximidade de Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, em união com a Virgem Santíssima, com S. José, e com toda a corte celestial. Sim, o Padre gastou heroicamente os seus dias, um a um, minuto a minuto, lutando, combatendo tenazmente, também contra si próprio, isto é, amando sem cansaço a amabilíssima e justíssima Vontade de Deus para a sua existência concreta, se bem que em determinadas ocasiões o corpo se fatigasse e curvasse pelo cansaço.

Durante os anos em que, por bondade do Senhor, convivi com o Padredesejei acreditar como acreditava o Padre, esperar como esperava o Padre, amar como amava o Padre.

Durante os anos em que, por bondade do Senhor, convivi com o Padre, ao contemplar as suas respostas tão verdadeiramente cristãs perante as situações mais díspares em que o Senhor o colocava com certa frequência, desejei, para todas as almas e para mim, acreditar como acreditava o Padre, esperar como esperava o Padre, amar como amava o Padre. E esta minha petição continua a ser válida, agora com novos contornos, porque a sua conduta se converteu em exemplo seguro, e porque o seu zelo sacerdotal – o seu sacerdócio eterno –tornou-se um caudal abundantíssimo de graças. Continua a ser válida, talvez com uma pequena modificação: que amemos como o Padre viveu o amor e, seguramente, ainda o vive, para que saibamos acreditar e esperar em Deus, aconteça o que acontecer, sem desalento nem covardia.

Realmente este pedido não é mais que um eco do clamor que, nos cinco continentes, se eleva ao Céu, entoado por pessoas de todos os ambientes que se acolhem à intercessão deste sacerdote que consideram santo.

Com fidelidade mariana

O Padre impôs a si mesmo uma alta meta: chegar aqui na terra a uma intimidade especial com o Senhor, em meio às tarefas habituais, para, depois, desfrutar de Sua Presença eternamente. E, no seu esforço de santificação quotidiana, revela com evidência um sinal que é a regra de ouro perene do seu caminhar: a sua devoção a Maria Santíssima.

No meu conhecimento da vida do Padre, as balizas são enquadradas por dois acontecimentos marcados pelo seu conteúdo mariano. Na mesma tarde em que o cumprimentei como seu filho, acompanhei-o a um centro de retiros espirituais – Molinoviejo -, ainda em fase de construção; estávamos em novembro de 1948. Além dos muitos pormenores, em que era patente a dimensão sobrenatural com que sempre atuava, capturou fortemente a nossa atenção que, ao entrar no oratório, ocupado nessa altura por pintores, outros membros do Opus Dei, dirigiu-se com passo rápido em direção ao presbitério para contemplar e fazer um cumprimento à Nossa Mãe, fitando a recém pintada imagem no retábulo. Depois, enquanto dava sugestões aos artistas, elogiava o seu trabalho e nos animava a sonhar com os milhares de almas que ali se encontrariam com Deus…, aproximou-se dos bancos e, com o tom de quem faz um elogio sincero e sentido, foi lendo os diversos louvores dedicados à Nossa Senhora, gravados com adornos nos encostos dos bancos corridos. Sem nos darmos conta, penso que cada um dos presentes ia se unindo interiormente àquele diálogo vivo, entre o filho agradecido e a mais generosa Mãe. Assim foi sempre o modo de atuar do Padre: ensinar, fazendo; e ensinar, apertando seguramente a mão de Santa Maria.

Dom Javier, São Josemaria e Dom Álvaro, no santuário mariano de Luján (Argentina).

A última vez que o vi com vida, poucos segundos antes de nos deixar na manhã do dia 26 de junho de 1975, fixou com ternura o seu olhar na imagem da Virgem de Guadalupe, Nela!, que estava ansiosa à sua espera para o acompanhar na passagem que separa a Terra do Céu. Dando a mão à Nossa Senhora, o Padre entrou na morada eterna para receber de Deus o abraço interminável que, com tanto ardor, desejou desde a sua adolescência. Santa Maria ocupou-se de tornar realidade, a partir de então com novas e definitivas caraterísticas, a jaculatória que, para descobrir a Vontade divina, o fundador do Opus Dei compôs: “Domina, ut videam!” Após esse meio-dia romano, a Nossa Mãe abriu para sempre o olhar de quem tão incansavelmente esperou contemplar o rosto de Deus.

O atalho que conduz a Deus

Só com o que presenciei, tenho a certeza mais absoluta de que o itinerário mariano do Padre encerra uma intensidade de vida extraordinariamente superior ao que se possa imaginar com a mais ilimitada fantasia, e contando para mim como princípio aquela viagem por Castela, comprovei que ele cumpria literalmente aquela afirmação que escreveu: “O princípio do caminho, que tem por fim a completa loucura por Jesus, é um confiado amor a Maria Santíssima[2]”.

Mais do que uma vez, ao falar-nos da Providência de Deus, ouvimos do Padre uma consideração muito fascinante - ele gostava de saborear tudo que é divino, e quando se referia diretamente às criaturas, tornava-se ainda mais humano. E fazia notar que, mesmo sendo inteiramente sobrenatural o amor de Santa Maria por Nosso Senhor, não é possível imaginar um amor mais humano que aquele que era abrigado por Ela em seu coração. Maria, ao participar no mistério da Encarnação por aquele fiat!, que cumpriu ao longo de toda a sua passagem pela terra, dedica a Deus o seu corpo, sentidos e potências, todo o seu ser. E a Segunda Pessoa da Trindade encarna, servindo-se da resposta sobrenatural e humana da Virgem, também para nos dar a entender que quanto mais sobrenaturais formos, mais capacidade teremos de nos aproximar de todas as criaturas.

Perante o panorama imenso que nos foi aberto pela fidelidade de Santa Maria, o Padre rejeitou a possibilidade de uma vida sem amor, árida, escrava do pobre egoísmo inútil. Também não o desejou para ninguém, e empenhou-se sempre para contagiar as pessoas com sua descoberta inesgotável de felicidade e de amor, encaminhando-as pela senda da alegria de viver, mas à maneira cristã, na graça de Deus. Desta ambição apostólica brotava o seu afã de ensinar, a todos que o rodeavam, a senda segura, sempre praticável, para ir e voltar para Jesus: a relação com Maria. Nossa Senhora, Mãe de Jesus e nossa Mãe, é o atalho para chegar a Deus.

Em cada dia

Com que entusiasmo diário o Padre percorria pessoalmente esse trajeto! Mal começava a sua manhã, depois de um serviam! em que se rendia à Trindade, nós o víamos pegar cuidadosamente uma imagem de Nossa Senhora, que tinha à cabeceira da cama, e com ela nas mãos – com um beijo de devoção – dava já o seu primeiro passo, podia dizer-se que coincidia com o primeiro passo físico, porque imediatamente avançava para a colocar de volta ao seu lugar. A seguir, em um ritmo sereno, recordando orações aprendidas dos pais, renovava para aquele dia o oferecimento de todo o seu ser e afazeres, aceitando o que o Senhor determinasse.

Como era a sua devoção à Virgem, expressa sem interrupção, contando com Ela para tudo já desde manhãzinha? Terna e forte, profunda e sincera, alegre e serena, entusiasta e piedosa, cada vez com mais renovado amor de namorado apaixonado. Não era possível ouvi-lo falar da Mãe de Deus sem ficar tocado, ou, pelo menos, ficar convencido de que A amava loucamente.

Nas suas palavras uniam-se uma piedade filial que desarmava qualquer resistência e uma sabedoria teológica, que atraía pela força convincente da sua luz.

A conduta do Padre foi sempre humana, entranhadamente humana, porque todas as suas ações brotavam da superabundância de sua união com Deus, sempre ao amparo de Santa Maria. Impregnava-o até à sua raiz mais profunda que a Virgem Santíssima, “a obra-prima de Deus”[3], foi sempre a criatura que esteve mais próxima à Trindade, um relacionamento de tal proximidade que preparou o seu coração para ser Mãe de toda a humanidade, e para ocupar-se de cada um, como se só cada um de nós existisse para Ela.

O Padre manteve sempre gravado em sua alma e inteligência que, para agir com o devido sentido cristão, nesta Terra não encontraria melhor Mestra que Maria, nem ninguém mais disposto a ensinar-nos como Ela, e aproveitou ao máximo as lições de uma Mestra tão segura.

O Padre transmitia esse modo de pensar aos outros com a força de sua própria conduta, ou seja, aconselhava a todos essa proximidade à Maria– às suas filhas, filhos, a quem estivesse por perto – com a convicção de quem sempre a experimentou. Para chegar a formar em nós esse alter Christus, o ipse Christus, que cada um deve ser, o Padre costumava procurar no trabalho, quando se deslocava de um lugar para outro, nas suas orações vocais, na sua conversa habitual…, a sempre procurar o recurso mariano - talvez olhando para uma imagem -, e pensava como Ela se comportaria nessa ocupação específica: “Faça assim”, repetia-nos com uma insistência incansável, “vão comprovar que com a Virgem até o que é difícil se torna fácil, e o que parece monótono adquire um relevo diferente e atrativo”. Na mesa em que trabalhava, tinha um quadro pintado sobre madeira de uma Virgem Dolorosa. Sem qualquer recato, beijava-a piedosamente muitas vezes, também quando o peso da fadiga se fazia sentir, e a seguir dirigia de novo a sua atenção os papéis, que saíam das suas mãos com a certeza de que Ela tinha presidido esse estudo e de que o Senhor tinha orientado a decisão.

Pregava com a palavra e com obras (mais com obras do que com a palavra, e o certo é que falou sempre e muito de Deus), o que escrevera tempos antes:

“Gosto de voltar com a imaginação àqueles anos em que Jesus permaneceu junto de sua Mãe, e que abarcam quase toda a vida de Nosso Senhor neste mundo (...). Com quanta ternura e com quanta delicadeza Maria e o Santo Patriarca se ocupariam de Jesus (...). Por isso a Mãe – e, depois dEla, José – conhece como ninguém os sentimentos do Coração de Cristo, e os dois são o melhor caminho – eu afirmaria que o único – para chegar ao Salvador[4]”.

Maria nos atende e nos entende

Torna-se muito difícil descrever, dar uma ideia exata da segurança com que o Fundador do Opus Dei se abandonava em Santa Maria. Aquela oração confiada, que o deixou totalmente imóvel diante de Nossa Senhora de Guadalupe, ajoelhado com firmeza durante um longo período, é disso apenas uma pincelada. E quando depois lhe perguntavam as suas impressões sobre o Novo Continente, respondia logo, sem vacilar um momento, que tinha atravessado o oceano* só para ver Ela, e para aprender com as pessoas que ali a veneravam.

Não tenho a mais pequena dúvida de que essa confiança com que o Padre invocou perseverantemente a Virgem brotava da persuasão mais absoluta de que a sua vida inteira interessava a Maria e nada leva tanto as criaturas a amar – o Senhor criou-nos assim, com esta ordem – com a certeza de saber que somos amados.

Maria, que na sua limitação humana abarcou com o seu amor a Trindade, é uma Mãe que derrama o seu carinho sobre nós. Por isso, o Padre gozava relembrando, meditando, cantando e pregando as caraterísticas desse amor maternal: que não leva em conta os nossos desafetos, quando recorremos a Ela; que perdoa antecipadamente; que não nos considera egoístas, mesmo se a procurarmos sobretudo nas dificuldades, que nos entrega o seu Filho, para nos aproximarmos de uma vez por todas da verdadeira felicidade.

Nunca se apagará da nossa memória a expressão tão acalorada do rosto do Padre, quando um amigo quis saber como se venerava Nossa Senhora no Opus Dei. Voltou-se para nós, que o acompanhávamos e perguntou-nos: “Quantas imagens da Nossa Mãe pusemos pelo mundo?”. Não nos deu tempo para responder, e o próprio Padre se adiantou. Mas mais do que o número - bem grande, por certo, era importante e representativo o júbilo de sua alma que lhe subiu à face, pensando que tantos filhos de Maria Santíssima, nos mais diferentes países, a invocavam como Mãe, com a persuasão e prova de serem escutados.

Que a Virgem Santíssima nos ouve é uma realidade que Mons. Escrivá expunha com todo o vigor de sua fé operativa: porque desde muito pequeno - e depois, ao longo da vida - se fiou nela com inteira confiança, acreditou e abandonou-se à sua proteção como as crianças acreditam e se abandonam nos braços da mãe, e Nossa Senhora sempre lhe encheu o coração com uma medida bem repleta, como só Ela sabe fazer.

Ao longo do seu ministério sacerdotal, os ensinamentos do Padre sobre a Mãe de Deus manifestavam sabedoria, fruto de sua contemplação transbordante de piedade e produto de um amor sem limites. É verdade que é necessário um conhecimento prévio para poder amar, e que esse conhecimento desperta o amor; mas, depois, a verdadeira sabedoria, a que chega a profundidades insuspeitadas, nasce do querer intenso e extenso da vontade que procura mais, que indaga mais e em todas circunstâncias, para amar decididamente sempre e a toda a hora.

Vem-me agora à memória o dia da proclamação do dogma da Assunção: com que fervor esperou o Padre esse reconhecimento solene! Em Roma, longe do bulício da Praça de São Pedro, muito recolhido em oração, ouviu com suma piedade e atenção, meditou e agradeceu as palavras do Papa, enquanto promulgava a nova verdade de fé. Com a alegria de saber que Ela está em Corpo e Alma nos Céus, na sua mente tornava-se ainda mais profunda a convicção de que Maria não é uma criatura excelsa que já passou, e muito menos uma figura histórica a deixar-nos uma esteira de luz ou uma magnífica recordação: a Virgem vive, com o seu Corpo e a sua Alma, e com todas aquelas delicadezas – autênticas virtudes – que cultivou para cuidar de Deus encarnado; com aquela participação total – sempre atual – na Redenção que nos salva; com o poder sobre Céus e Terra que lhe foi concedido por Deus. Com toda esta bagagem de riqueza infinita, ocupa-se agora de nós. Todos os privilégios de Maria encantavam o Padre, e cumulou-o de um gozo maior essa definição pontifícia da Assunção aos Céus, porque sempre considerou e tratou Nossa Senhora como uma Mãe cheia de vida e de amor, da Vida e do Amor de Deus que nunca perecem.

Na conduta do Padre, a certeza de que Maria nos atende era uma afirmação constante, manifestada como algo conatural. Pela confiança e pela espontaneidade com que falava, via-se – entrava pelos olhos dentro – que existia um diálogo permanente; e aos que estávamos à sua volta nos parecia lógico o recurso imediato do Padre à Virgem, e consequentemente a paz inalterável que transparecia no seu comportamento. Diariamente, escutávamos a recitação de muitas Ave Marias, que nos seus lábios soavam muito diferentes: o ênfase familiar e pausado com que pronunciava cada frase, e especialmente o agora, trazia-nos à mente a demonstração palpável de que aquelas palavras eram o prolongamento, em voz alta, de uma conversa que não cessava nunca.

Penso também que quando nos convidou a recordar, em terras mexicanas, o primeiro encontro consciente com a nossa Mãe do Céu, esclarecendo que tinha perfeitamente claro na cabeça aquele instante de sua infância, se produziu uma dupla reação nos que o ouvíamos: de surpresa e de completo entendimento. De surpresa, porque ampliávamos o conhecimento dessa intimidade invejável, que tanto bem nos causava na alma; sem qualquer estranheza, porque estávamos habituados a meditar que o começo de um verdadeiro amor não se pode esquecer. Essa primeira petição do Padre deve ter sido muito confiada, e o seu convite não procurava senão provocar em nós una confiança maior em Santa Maria.

A verdadeira paz nesta terra

O Fundador do Opus Dei gastou a sua vida inteira a mover as almas para o amor de Deus. Desde muito novo, conhecia o fogo ardente que o carinho e a devoção à Nossa Senhora tinham provocado no seu coração e no coração de muitos outros. Por isso, com insistência sempre nova e segurança completa, recomendava uma e outra vez aquele conselho que uma manhã o Espírito Santo lhe soprou, enquanto dava graças depois de ter recebido o Senhor: para chegar à loucura do amor de Deus, o melhor é começar por um confiado amor a Santa Maria.

Imagino o Padre, naquela ação de graças, urgido pelos seus anseios de amor, em uma inquietação serena e alvoroçada, porque as palavras, os gestos, tudo o daqui de baixo se torna insuficiente para se mostrar agradecimento ao Deus que se nos entrega. E no meio dessa dor de amor, causada pela insignificância humana, sentiria a doce ajuda da Virgem Imaculada, que se ocupava de apresentar a Deus Pai, a Deus Filho, a Deus Espírito Santo, o que nós, as criaturas, mesmo querendo, não somos capazes de exprimir.

Sejamos lúcidos – recuperemos a lucidez cristã, se a perdemos –, e não nos cansemos em vão, consumindo as nossas forças em uma corrida estafante para alcançar só alegrias caducas, quando nos é oferecida a intimidade com Deus, no meio dos afazeres quotidianos, ou seja, no meio dessas mesmas ocupações que Nossa Senhora santificou, porque a sua casa era a própria de uma família comum. Assim, com essa decisão de a imitar, saborearemos por antecipação o Céu na terra.

Se lançarmos um olhar ao mundo, comprovaremos como a humanidade avança nesta época, frequentemente desassossegada, com um esforço, estenuante, atrás do que pouco vale e mal dura, esquecendo o que é verdadeiramente valioso. Convém que nos detenhamos em uma paragem responsável, para subir das coisas da terra até ao Amor que sacia sem saciar, como o Padre conseguiu ao fixar-se precisamente em Santa Maria.

Não podemos esquecer que Jesus veio à terra para cumprir a justiça[5]: para restaurar a ordem que a criatura desprezou e desfez– e que ainda se obstina em desprezar –; para encher este mundo de um Amor que não havia e que se empenha em desconhecer. Mas, acima de tudo, não esqueçamos que Ele deseja que os seus filhos de todas as épocas, os cristãos – nós – continuemos a alimentar no nosso tempo essa fogueira que cauteriza as feridas do universo.

Maria, escolhida por graça especialíssima para nos trazer esse Jesus instaurador da nova ordem, contribuiu na totalidade com o que estava nas suas mãos: a humildade, virtude que facilita de raiz o cumprimento eficaz de toda a justiça. Foi tão grande a submissão da Virgem, que além de secundar a Vontade divina, sem se opor nem sequer o menor detalhe, lhe valeu o louvor das gerações pelos séculos dos séculos. O Padre revisitou diariamente esta lição soberana de Maria, que Ela viveu segundo a segundo, e que lhe causou um impacto indelével, até escolher como norma ocultar-se e desaparecer; e assim, através da vida do Padre, com o sabor novo e velho do Evangelho, se propagou à outra geração o fogo de felicidade inextinguível que Jesus Cristo, por Maria, comunicou à terra morta e apagada.

O Padre olhava diariamente para Santa Maria, e não se cansou de insistir às suas filhas e filhos, a todos os que recorriam ao seu conselho, que puséssemos os olhos Nela, de modo que sua presença fosse constante e inquestionável no nosso dia; porque com Ela, ao possuir o Senhor, infinita fonte de paz e de alegria, trataríamos de que só Deus brilhasse e de que as almas (a nossa também) se aproximassem desta paz, paz que o mundo não pode dar.

Com a audácia do amor

“Se em alguma coisa quero que me imiteis, é no meu amor a Nossa Senhora”. Esta foi a única exceção que o Padre dava de si mesmo como exemplo. Bastava um bocadinho de conversa com o Fundador do Opus Dei, para compreender que esse comentário nascia, como consequência lógica da sua experiência para se colocar em Deus. Sem o amor divino, quando não estamos com Deus, nós os homens – todos, embora tantos não o queiram reconhecer – encontramo-nos destroçados, inquietos, infelizes e, sozinhos, não sabemos sair dos limites reduzidos da nossa miséria: “Antes, sozinho, não podias... – Agora, recorreste à Senhora, e, com Ela, que fácil!”[6]. “Confia. – Torna. – Invoca Nossa Senhora e serás fiel[7].

Mons. Escrivá de Balaguer era muito agradecido, e nunca esqueceu quanto devia à Virgem. No ano de 1970 (no México), enquanto fazia uma novena à Nossa Mãe de Guadalupe, pedindo pela Igreja Santa, pelo Romano Pontífice, pela Hierarquia, pelas almas todas, ofereceu-lhe a dedicação de um mosaico da imagem gadalupense no Santuário de Torreciudad, que seria colocada em uma das capelas dos confessionários. Tinha grandes sonhos de amor, e estava persuadido de que com a ajuda da Virgem – “a Omnipotência suplicante” – tudo se alcançava. “Este é o propósito», dizia à Nossa Mãe: “Um mosaico em Torreciudad, um bom mosaico, para que dure perenemente através dos séculos, com essa imagem tua, tão bonita! Este mês de maio, que agora estamos vivendo –, resplandecerá sempre. Ofereço-te um futuro de amor, com muitas almas. Eu – que não sou nada, que sozinho não posso nada– atrevo-me a oferecer-te muitas almas, ondas de almas, em todo o mundo e em todos os tempos, decididas a entregar-se ao teu Filho, e ao serviço dos outros, para os levar até Ele[8]. No dia 28 de junho de 1977, D. Álvaro del Portillo, sucessor de Mons. Escrivá de Balaguer, dirigia-se a Torreciudad para cumprir, com o mesmo fervor mariano herdado do Padre, esta ordem do Fundador do Opus Dei. Lá está bem à vista o mosaico da Virgem de Guadalupe, em uma das capelas de confessionários onde diariamente a Senhora multiplica os milagres invisíveis operados nos penitentes.

Deus cumula sempre estes sonhos de amor agradecido que a Nossa Mãe apresenta como realidade ao Senhor. Como fruto do exemplo e dos ensinamentos de Mons. Escrivá de Balaguer elevam-se no mundo – e aumentarão em progressão divina – milhões de atos de amor à Nossa Senhora, que continua a aproximar os seus filhos de Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo.

Atrevo-me a sugerir ao leitor que peça a Santa Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, que coloque, nas almas de todos, esses sonhos de amor que encheram o coração de Mons. Escrivá de Balaguer; e acrescentaria ainda: que essa petição seja mais intensa ao referir-se aos sacerdotes, para que só saibamos falar de Deus, constantemente ensinados pelo exemplo de Maria.

No próximo mês de outubro, dentro em breve, o Opus Dei celebra o 50º aniversário de sua fundação. Foram cinquenta anos percorridos sob a proteção da Santíssima Virgem. Por isso, o modo como o estimado D. Álvaro del Portillo quis que este aniversário decorresse, consistiu em pedir a todas as suas filhas e filhos que o vivam como um ano mariano. Um ano para agradecer a Nossa Senhora tanto amparo e um auxílio, tão contínuo, que continuará a proteger o trabalho apostólico porque a Ela se dirige – com a mesma devoção do nosso Fundador – a piedade da pessoa que agora governa a Obra.


[1] 2 Cor 12, 2.

[2] J. Escrivá, Santo Rosário, prólogo.

[3] J. Escrivá, Amigos de Deus, n. 292.

[4] J. Escrivá, Amigos de Deus, n. 281.

[5] Cf. Mt 3, 15.

[6] J. Escrivá, Caminho, n. 513.

[7] Ibid., n. 514.

[8] J. Escrivá, México, 1970.


* N.T: em espanhol coloquial, no original: el charco, modo de designar o Oceano Atlântico .

Este artigo foi publicado na Revista Palabra, nºs. 156-157, (1978), pp. 341-345, na coleção de “Folletos MC”, n. 19, Madrid, 1978, com o título “El amor a María Santísima en las enseñanzas de Mons. Josemaría Escrivá de Balaguer”. Quando o autor escreve “o Padre” refere-se a São Josemaria, fundador do Opus Dei, que tinha falecido três anos antes. Por fidelidade ao original, mantiveram-se essas referências.